sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

PERCALÇOS DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ










Pe. João Inácio Kolling

PRÓLOGO
CAPÍTULO I – O QUE É, AFINAL, UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
CAPÍTULO II – PARA QUE SERVE UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
CAPÍTULO III - ATALHOS QUE SE CONFUNDEM COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
3.1– Esoterismo
3.2– Yoga e meditação
3.3– Religiosidade

CAPÍTULO IV – FORMAS PARCIAIS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
            4.1 - Espiritualidade que cega
            4.2– Espiritualidade do “EU” conquistador
4.3 - Espiritualidade de Ascensão
4.4– Espiritualidade midiatizada
4.5 – Espiritualidade do espelho
4.5.1 – Efeitos da espiritualidade do espelho
4.5.2 Venenos que matam a espiritualidade cristã
CAPÍTULO V – ESPIRITUALIDADE DA PEQUENEZ INTERIOR
CAPÍTULO VI – ESPIRITUALIDADE DA MISERICÓRDIA

  VII – ECO-ESPIRITUALIDADE

  VIII – CRISES E DESENCANTOS COM A ESPIRITUALIDADE CRISTà     
8.1– Acídia
8.2 - Acídia em tempos antigos
8.3 – Acídia - crise maior que tristeza e preguiça
8.4– Acídia e seu alcance
         Epílogo
                                                            ************
Prólogo

         Nossa pequena abordagem sobre o tema requer, de imediato, um esclarecimento:
a)     Porque percalços?

                  Como tantos bons estados de ânimo, de bom humor e de vitalidade com coisas boas e desejadas, a busca de uma espiritualidade cristã também envolve uma dupla dimensão: de um lado, envolve expectativas de rendimentos, de vantagens e de proventos; já por outro lado, o desejo do alcance de uma qualidade, condição, acréscimo ou vantagem em algo a ser adquirido, implica em algumas evidentes dificuldades, com variados estorvos e transtornos.

b)    Um triângulo amoroso

            Espiritualidade cristã não é coisa de outro mundo, ou além do alcance humano.
            O Papa Francisco salienta na Exortação Gaudete et Exsultate, que espiritualidade, santidade e alegria envolvem uma mesma realidade no seguimento de Jesus. Para segui-lo, precisamos crescer na santidade, que, por sua vez, equivale a uma espiritualidade dinâmica para produzir alegria na vida. Não a alegria persuasiva das aparências, mas, uma alegria que emerge do interior, e, que sempre advém de outras pessoas. Não é uma conquista pessoal. É algo manifestado que repercute espontaneamente e que eleva a momentos de exultação ou de explosão repentina de alegria. Basta lembrar que Isabel exultou de alegria quando percebeu a chegada da sua prima Maria, que veio servi-la...
            Segundo a referida exortação do Papa, a alegria não nos livra de muitas e variadas dificuldades, nem de sofrimentos não desejados, mas é uma realidade que brota da esperança do que Jesus Cristo nos assegurou. A promessa do Reino, feita por Ele, torna-se razão de alegria.

c)     Espiritualidade e missionariedade.

            A espiritualidade cristã certamente não despertaria interesse algum se ela não apontasse para muitos bons proventos e para largas vantagens às pessoas interessadas em alcançar um nível de fé aprofundado, e, capaz de propiciar experiências gratificantes e amplamente proveitosas para a vida.
            Por isso, um importante medidor da espiritualidade é o do efeito de obras e serviços, - costumeiramente assimilados como ação missionária, - ou seja, uma espiritualidade cristã não pode ser mera busca subjetiva, mas deve repercutir simultaneamente em outras pessoas, como um fermento que melhora as interações humanas.
            No entanto, a busca desta espiritualidade também pode levar a estorvos e a desvios, através dos atalhos oferecidos, ou, de espiritualidades parciais que não levam ao jeito de Jesus Cristo. Até mesmo as que levam ao jeito dele não estão isentas da acídia, ou seja, podem envolver decepções diante dos resultados das expectativas alimentadas.
            Especialmente quando se idealiza muito a espiritualidade e quando lideranças prometem muitos benefícios do que querem passar a seguidores, surge a natural e evidente frustração diante da constatação do não alcance do que fora prometido.
             Nosso tempo vem sendo marcado por muitas misturas sincréticas de diferentes tipos de espiritualidade que, facilmente, se confundem com a espiritualidade cristã.
             Elementos de outras formas religiosas não cristãs e até de pensamentos filosóficos, podem, ao invés de facilitar o alcance de um nível satisfatório e eficaz de espiritualidade cristã, obstruir o alcance desta tradição católica.
            Desta situação ambígua decorrem afirmações que até chegam a ser contraditórias: existem pessoas que se dizem ser de profunda espiritualidade, mas, objetivamente, manifestam-se mesquinhas, rígidas, autoritárias, intransigentes e com ares de superioridade.
             Por outro lado, escuta-se com frequência pessoas afirmando que sua espiritualidade as leva a receber tudo quanto pedem de Deus, o que, no mínimo, é intrigante: será que Deus privilegia algumas pessoas, e lhes concede, de forma paternalista e dependente, tudo quanto lhe pedem?
             Ao mesmo tempo, não faltam pessoas queixosas que vivem se lamentando a respeito de que Deus não lhes ajuda em nada. Dizem que rezam fervorosamente, que fazem novenas, participam de eventos religiosos especiais de cura e libertação, mas, que Deus não lhes demonstra a mínima atenção para o atendimento do que pedem.
            Ainda outro perfil de pessoas se considera muito espiritualizado, mas desanda em manifestações fanáticas, fundamentalistas e descontroladas, a ponto de mostrar indícios doentios.
            Tais pretensos “gurus” acham que entendem tudo, tanto do céu quanto da terra, mas, apresentam conselhos sem consistência e sem graça para qualquer situação, e não percebem que sua vida se torna progressivamente mais mesquinha.
            Em razão destes mal-entendidos em torno da espiritualidade cristã, optamos por apresentar algumas noções elementares e gerais que, eventualmente, poderão despertar algumas motivações para um discernimento em torno de um caminho que alargue a vida através da espiritualidade cristã.
            Trata-se de uma abordagem de modestas noções introdutórias.
    Como a espiritualidade cristã envolve realidades muito diversas e, não necessariamente canalizadas para o mesmo fim, convém que o tema dos percalços da espiritualidade cristã estimule a escolha de um caminho que se aproxime de Jesus Cristo, e, - o que mais importa, - que as ações e obras do agir de cada dia possam aproximar-se mais Dele do que de quaisquer outros caminhos atraentes.
            Quando se deseja cultivar uma espiritualidade cristã, sempre importa que ela não se confundida com meras piedades ou com práticas exteriores, embora estas possam constituir-se em ricos meios para alguma “experiência hierofânica”, isto é, podem levar a produzir condições capazes de fazer experimentação de algo divino, sobrenatural, indizível, através de fatos e de coisas muito pequenas, simples e ordinárias da nossa vida.
            De uma espiritualidade cristã espera-se, em sentido muito geral, que ajude a lidar com problemas pessoais e com os que se manifestam no entorno da lida de amizade, de trabalho e de lazer.
            A busca de forças que ajudem a mudar os rumos da vida, ao lado do encantamento, tende a aumentar medos e mecanismos de fuga ou de abandono. Por isso, contata-se uma frágil persistência de muita gente de boa vontade, que tenta aprofundar-se na espiritualidade cristã, mas, abandona sem demora a iniciação diante das dificuldades que aparecem.
            Este texto é constituído de oito pequenos capítulos. No primeiro, aborda-se mais o aspecto conceitual em torno do que é uma espiritualidade cristã. No capítulo II pondera-se sobre a serventia da espiritualidade cristã. O capítulo III salienta alguns caminhos atraentes que parecem encurtar o tempo e o espaço diante do que se deseja alcançar com o cultivo da espiritualidade cristã, especialmente o esoterismo, a Yoga, a meditação e a religiosidade.
            O capítulo IV apresenta algumas direções da espiritualidade cristã como caminhos atraentes, mas, que não necessariamente levam ao fim desejado, como a espiritualidade que cega; a espiritualidade conquistadora, a espiritualidade da ascensão idealizada, e a espiritualidade midiatizada, a espiritualidade do espelho.  Na sequência, realçou-se a espiritualidade para a interioridade das fraquezas, das tentações e das paixões que atormentam o psiquismo e o mundo subjetivo: é a espiritualidade da pequenez interior. Na sequência, no capítulo VI é realçada a espiritualidade da misericórdia, e o capítulo VII apresenta um indicativo para a eco-espiritualidade.
            No capítulo VIII, enfatizam-se algumas decepções e frustrações que geralmente acometem pessoas que querem avançar num bom caminho da espiritualidade. Trata-se do que os orientadores de monges e monjas da Igreja antiga abordavam como acídia.
            Para eles, a acídia envolvia muito mais do que tristeza e preguiça, pois, designava o tédio com as coisas de Deus diante da constatação de que os ideais muito retos e bem elevados, não produziam a qualidade da vida almejada.
            Por fim, no epílogo, destacou-se um elemento fundamental para um aporte de inovação na espiritualidade cristã: “andar com a cama”, que desencadeia na vida um processo de cura.

 CAPÍTULO I
O QUE É, AFINAL, ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?

            A palavra “espiritualidade cristã” deriva do termo hebraico ‘Ruach’ com o significado de espírito, sopro, hálito, vento, fôlego, etc., como expressões simbólicas para expressar a força que anima a vida de uma pessoa e a impulsiona e a sustenta na busca de algo valioso com vistas a uma experiência satisfatória.
            A tão conhecida oração do Pai Nosso destaca que “seja feita a Vossa vontade”, fornece uma primeira dimensão central da espiritualidade cristã, pois, implica na busca da vontade de Deus para o agir humano. Este aspecto também indica a perspectiva ampla de que não se “faça a minha vontade”.
            Assim, a espiritualidade cristã constitui a escolha de uma direção na vida em que se procura crescer diariamente na aproximação dos traços genuínos, peculiares e originais de Jesus Cristo.
            Sintonizado com o espírito de Jesus Cristo, quer-se conduzir a vida sob o mesmo bom espírito de Deus que moveu a vida deste que chamamos de redentor.
            De maneira diferente do que praticar exercícios piedosos diários para o alcance de um estado de graça, a espiritualidade cristã procura, na afinidade com a vida de Jesus Cristo, um alargamento da qualidade de vida, a fim de encontrar equilíbrio no trabalho, na atividade lúdica, no repouso e na interação de lidas com as outras pessoas.
            Deste modo, a espiritualidade impregna o conjunto da vida para alargar uma qualidade de crescimento na humanidade (capacidade de ser profundamente humano e elevar o sentido de ser humano).
            A “espiritualidade cristã” está esvaziada de referências da tradição em variadas práticas religiosas, - nem sempre vinculadas a Jesus Cristo, - e que, mesmo assim, são propagadas como sendo espiritualidade.    
            Em primeiro lugar, confunde-se espiritualidade com “espiritualismo”, conceito de origem filosófica para designar o que é do campo da mente humana.
            Sob esta conotação, de que o espiritual é o que é distinto da matéria, pode-se cair na tentação de restringir o entendimento da espiritualidade a tudo quanto não é material e, então, se incorre num dualismo de pensar que espiritualidade cristã seja abstração das coisas materiais da terra e uma fixação nas coisas divinas e transcendentes do nosso dia-a-dia.
            Segundo a filosofia antiga os sentidos humanos captam apenas as coisas sensíveis e materiais, enquanto que, o intelecto, captaria o que não é sensível, como os valores e as coisas culturais.
            Ao se confundir com a espiritualidade cristã esta noção de cunho filosófico, significa buscar coisas não materiais, ou, os valores da cultura, de modos que, o plantar, colher, construir, consertar e praticar gestos de amizade ficam diminuídos em favor da noção de viver de algo abstrato.
            Outro aspecto é o de entender espiritualidade como equivalente a “espiritismo”, corrente religiosa que visa perfeição do indivíduo através da captação do que espíritos ou almas de antepassados, desencarnadas e vagantes, seriam capazes de comunicar e revelar a médiuns e facilitar reencarnações para estágios mais elevados de qualidade humana.
            Um terceiro aspecto tentador de desvio da espiritualidade cristã é o de identifica-la como piedade popular, e que, facilmente pode afastar de Jesus Cristo, devido a um cultivo que não leva a crescer no discipulado de Jesus Cristo.
            Diante destes riscos de desvio de entendimento da espiritualidade cristã, convém enfatizar que, fundamentalmente, a espiritualidade cristã consiste em seguir Nosso Senhor Jesus Cristo e o conjunto dos seus gestos e ensinamentos.
            Tal seguimento visa sensibilizar-se ante o grande bem-querer do amor de Deus e que convida ao seu sentimento de amparo.
            Esta elevação da grandeza perante a bondade de Deus, por sua vez, visa santificação no seguimento e na imitação de Jesus Cristo.
            Na busca de crescimento da espiritualidade cristã aparecem com facilidade algumas distorções equivocadas, como a busca de soluções intimistas, ou devoções meramente contemplativas; ou de práticas especulativas; ou de escrupulosas defesas de argumentações teológicas e doutrinárias em torno de detalhes exteriores; ou de busca de satisfações verticalistas de ambição meramente pessoal.
            Uma espiritualidade cristã certamente implica num bom senso de viver de modo saudável, equilibrado e que amplia a capacidade de uma cosmovisão humanitária, respeitosa e que se integra para harmonizar e alargar o conjunto da vida neste planeta.
            Por outro lado, mais do que praticar momentos e exercícios rotineiros de piedade a espiritualidade cristã precisa contemplar a totalidade da vida que apresenta muitos desafios tanto ecológicos, quanto éticos, sociais e humanitários. Ocorrem mazelas de toda natureza e que requerem gestos de compaixão.
            Deste modo, a espiritualidade cristã sempre remete a fazer algo que ajude a transformar a realidade envolvente para melhores níveis de entendimento, o que, por sua vez, implica em missão, não a de espetáculos, muito barulho de mídia, de chavões e de intensos emocionalismos, nem mesmo das categóricas verdades declaradas como exercício de um poder dominador, mas, como um modo de viver a fé cristã a fim de encontrar no Cristo como caminho,  verdade e vida...
            Em suma, é importante que se entenda que espiritualidade cristã não constitui um “estado de vida”, mas, um “modo de vida”.
             Mesmo que a vida cristã esteja diretamente afetada por valores culturais, tradicionais, geográficos e ambientais, ela pode desencadear, neste meio, um modo de colocar em prática uma série de valores e de ações humanitárias que caracterizam a busca do modo de ser de Jesus Cristo.
            Mesmo sendo uma questão pessoal, íntima, não se restringe ao campo meramente intimista e sempre implica em um jeito peculiar e original de lidar com as pessoas, com a natureza e o meio-ambiente.
            Por isso, a espiritualidade cristã estabelece estreito vínculo com a humanidade de Jesus.
            Quando alguém busca plasmar a sua vida com a de Jesus de Nazaré precisa, necessariamente, acolher a sua profunda humanidade. Ele rezou em muitos momentos da sua vida; procurava lugares ermos e silenciosos para melhor se sintonizar com Deus; lutou contra males do seu tempo que causavam sofrimentos e injustiças; encantava-se com crianças e ambientes; revelava compaixão e misericórdia; apontava um sentido para o existir humano...

CAPÍTULO II

PARA QUE SERVE UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?

            Diante das muitas desilusões com buscas de espiritualidade que envolve idolatria ou egolatria de certos gurus afamados que, de forma geral, submetem muitas pessoas e as tornam altamente dependentes, convém salientar suscintamente sobre o alcance da espiritualidade cristã.
            Do que se sabe da Bíblia, não ocorre nenhuma menção de que Jesus Cristo tenha desfrutado e abusado da fragilidade emocional de pessoas que o procuraram.
            Mesmo mergulhado numa cultura machista, ele nunca se valeu da perspectiva ascendente de quem está totalmente acima do bem e do mal.
            Embora visto como salvador, curador e mestre, pelo seu modo de pensar, ele não transformou a atenção às carências humanas em meio para o engrandecimento de si mesmo, mas, promoveu as pessoas ao melhor das suas virtualidades. Não se valeu de fanatismo pelo que executava, e nem mesmo se arrogou ares de solenidade no entorno com tronos, retratos e muita publicidade.
            Outra característica destacável dos procedimentos de Jesus Cristo foi a do distanciamento total da espetacularização dos seus gestos. Mostrava-se discreto, humilde e desprendido no serviço humanitário.
            Em outras palavras, Jesus amava intensamente, através do serviço gratuito, da ajuda efetiva aos pobres e doentes e no apontar dignidade para as condições de trabalho e de vida.
            Todo este bom ”espírito” que moveu Jesus, vinha do profundo, do peculiar e do seu irradiante mundo interior, e, despertava encantamento e uma curiosidade imediata: de onde vem esta capacidade esperta e boa para ajudar as pessoas no que mais precisam?
            Os textos bíblicos indicam que Jesus cultivava uma intimidade profunda com a totalidade da vida para harmonizar-se com o amor maior de Deus.
            Os cristãos, como discípulos, são chamados a aproximar-se deste mesmo itinerário de Jesus Cristo. Dali decorre a importância de cultivar-se para que os traços que o tornaram tão peculiar, também se alarguem no modo de buscar sintonia com a totalidade do amor de Deus e o consequente modo de olhar e de tratar as pessoas com extraordinária bondade, compaixão, dignidade e bem-querer.
            Os textos dos evangelhos tornam-se, deste modo, uma referência para cultivar a capacidade progressiva dos traços mais marcantes de Jesus Cristo.
            Afinal, quem não deseja estar na proximidade de uma pessoa amiga, próxima, acolhedora e cortês? Uma pessoa assim produz um clima humano completamente distinto da rispidez de uma pessoa mal humorada, arrogante e pretensiosa.
            É por isso que a prática do seguimento de Jesus Cristo abre um vasto caminho para uma aproximação da vida sensível e de bons sentimentos. Conhecer e aprofundar-se no contexto da vida de Jesus, contido na Bíblia, oferece esta inspiração valiosa para a espiritualidade cristã.
            A possibilidade de atualizar o modo de ser de Jesus Cristo, com toda a riqueza do seu empenho para reverter manifestações da maldade humana, que causaram pobreza, exclusão, injustiça e exploração, remete automaticamente a desejar que algo similar a Jesus Cristo produza os mesmos bons efeitos nas fragilidades humana dos dias atuais.
            Assim, a espiritualidade cristã se presta para ampliar uma grande variedade de virtudes humanas, que, por sua vez, requerem empenho e cultivo ao longo de toda a vida.
            Como os efeitos da espiritualidade cristã não dependem apenas de desejos interesseiros com imediatas e mágicas soluções torna-se praticamente necessário:
a)     Cultivar com zelo a fé a fim de que possa aproximar-se da sensibilidade de Jesus Cristo;
b)    Cultivar momentos regulares de oração para melhor inserir-se no jeito de Jesus Cristo, com progressiva capacidade de amar mais e tornar-se melhor com as pessoas;
c)     Cultivar momentos de sensibilização para captar melhor e interpretar de forma mais adequada a realidade envolvente.
d)    A leitura orante da Palavra de Deus também alarga a capacidade de ver as coisas com a sensibilidade de Jesus Cristo, a fim de que o coração fale mais alto do que os preconceitos, que as posturas categóricas, rígidas e inflexíveis, que tanto atrapalham as relações humanas.

            Enfim, a prática da espiritualidade cristã      tem uma importância fundamental para a qualidade da saúde. Além da força curativa das motivações boas, a espiritualidade cristã também oferece uma visão mais completa em que a sintonia com o cosmos, com a sociedade e com o “todo” da existência fornece uma leveza maior do que o ar carrancudo e rancoroso que tanta gente manifesta neste mundo de Deus.
            A espiritualidade cristã igualmente facilita amar a vida e facilita a criação de laços de amizade e de solidariedade. Devolve o sentimento de prazer de constatar que algo feito de bom para alguém, sempre retorna com o agradável sentimento de “cesto cheio”.
            Outro aspecto não menos importante da espiritualidade cristã é o de alargar a capacidade de indignar-se, de perdoar e de alegrar-se mais com o que está à frente da vida, e, sem remoer tanto as mágoas e as perdas do passado.
            A espiritualidade cristã, em suma, expande a vida: abre o leque de novas possibilidades, aumenta os anticorpos de defesa e reforça o complexo quadro de energias regenerativas.
            Quando alguém se sente nas mãos de Deus, evidentemente se torna mais saudável porque alarga o sentido do existir: assim, potencializa a inteligência, a libido, o afeto e tantas outras dimensões da vida.
            A espiritualidade cristã é, portanto, valiosíssima para elevar o nível da autêntica liberdade, porque ao invés de atrelar à submissão e dependência de controles religiosos, leva ao que o apóstolo Paulo já escrevia à comunidade dos Gálatas: “vós fostes chamados à liberdade, irmãos!” (5,13).
            Por outro lado, a espiritualidade cristã fornece consistência para que o testemunho da vida cristã permita que muitas pessoas experimentem um Deus bom e, não aquele inventado dos medos, dos pavores, das vinganças, dos castigos e dos exércitos de maus espíritos...

CAPÍTULO III

ATALHOS QUE SE CONFUNDEM COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

Nas buscas da experimentação de Deus,
Incontáveis são os caminhos apontados,
                Que, como as exterioridades de fariseus,
Deixam os anelantes bem desorientados.

            O termo “espiritualidade” é de uso recente e moderno. O cristianismo, ao longo da história usou outros termos equivalentes ao significado que hoje se dá à palavra espiritualidade.
            Em épocas se falou de Teologia Espiritual; em ascese (elevação da vida); em mística (como cultivo da fé para perceber sinais da grandeza e da bondade de Deus). No entanto, o significado mais comum e fácil de ser entendido, foi o de que espiritualidade significava “vida cristã”.
             Sob este sentido, ressalta-se algo muito significativo: espiritualidade não é um privilégio raro de alguém, mas, todos os batizados ao seguimento de Jesus Cristo são convidados a se aprofundar nas características centrais e marcantes de Jesus Cristo.
            Espiritualidade com o significado de vida cristã coerente constitui uma noção muito valiosa e simpática para o entendimento da espiritualidade nos dias atuais.
            Paulo apóstolo, na carta aos Coríntios (3,10) já destacava que muitas tentações emergem na vida humana, mas, que o cultivo de fidelidade a Deus não permitiria que as tentações se tornassem maiores do que a capacidade de lidar com elas, de suportá-las e de sair delas. Paulo lembrava, assim, a dimensão dinâmica da espiritualidade cristã.
            Atualmente vive-se a tentação de deixar a noção de “vida cristã” de lado e a de se enveredar por significados mais vagos, evasivos e imprecisos.
            Um significado, que muito se difunde, equivale à identidade de grupos religiosos que querem ser portadores do espírito de Jesus Cristo com capacidade superior aos demais grupos religiosos.
            Tendem a centralizar a afirmação da identidade do grupo com a suposição de que seu caminho é o melhor para equilibrar a lida com os próprios limites.
            Da raiz judaico-cristã herdamos um sentido de espírito e de espiritualidade como capacidade de auscultar o que vem de Deus. Por isso, o desejo de captar o Espírito de Deus, que os cristãos denominaram de Espírito Santo, não pretendia negar a materialidade da condição da vida, mas, impregná-la da presença do amor maior de Deus.
            Com o passar dos anos, desencadearam-se outros modos de assimilar a espiritualidade.
            Primeiramente, o caminho mais valorizado era o do martírio para imitar Jesus Cristo em seus sofrimentos; com as grandes perseguições aos cristãos foi amadurecendo, aos poucos, o ideal da vida ascética e da virgindade.
            Talvez pela influência grega, que cultivava uma ascética de afastamento do mundo material, procuraram captar, pela reminiscência (recordação antiga) as coisas puras do mundo de Deus, pois, os seres humanos estariam na Terra para expiar alguma maldade, feita lá no céu, quando estavam no âmbito de Deus.
            A virgindade, por sua vez constituía uma realidade mais ampla do que evitar relações genitais. Como em outras manifestações religiosas antigas, significava a abertura da totalidade da existência ao acolhimento de Deus para Nele tornar-se fecundo em grandezas para a vida humana.
            A partir de Orígenes, que foi um influente pensador cristão, mas, marcado pelo pensamento grego, introduziu-se a conotação contemplativa à espiritualidade e contemplação significava elevar-se acima das paixões e fraquezas humanas para alegrar-se com coisas divinas.
            Tempos depois, o enfoque dado à espiritualidade cristã apontava para a profunda humanidade de Jesus e convidava as pessoas a fazer algo similar através da atenção esmerada aos sofrimentos, com serviços de caridade e desvelo à vida de pessoas que passavam por carências e necessidades variadas.
            A partir do século cinco, com o surgimento dos monastérios (grandes casas com monges ou monjas), foi se alargando uma nova síntese para o significado de espiritualidade.
             Consistia na fuga do mundo cheio de problemas e de dificuldades para a convivência comunitária, a fim de morar em lugares afastados, solitários e que permitissem cultivar uma intimidade profunda com Deus, através da clássica noção de trabalhar, rezar e ler muito.
             A espiritualidade ficou conhecida pela expressão latina de “Ora et Labora” (Reza e trabalha).
            Depois de mais uns séculos, já na Idade Média, assimilou-se a espiritualidade mais pelo horizonte psicológico, no qual se deu primazia aos laços afetivos, cordiais e de boa vizinhança. Deixou-se de lado a busca de elevados níveis espirituais de cunho mais intelectualizado e mental.
            Nesta perspectiva, São Francisco de Assis tornou-se referência deste novo modo de vivenciar a espiritualidade cristã, e, que foi sintetizada na expressão “paz e bem” e na bela oração da paz, atribuída a ele, que ressalta a harmonização do ser humano com as outras criaturas e com o cosmos.
            O jeito de São Francisco alastrou-se amplamente na Igreja e a renovou profundamente para melhor. Suplantou o modo clássico de austeridade, resignação, renúncia e abnegação. Por isso, sua perspectiva mais psicológica da espiritualidade ecoa com bela repercussão na atualidade da Igreja católica.
            Os seres humanos tem a peculiaridade de selecionar valores e projetos. Possuem, igualmente, a capacidade de escolher caminhos que possam preencher suas expectativas espirituais. Mesmo que vivam bombardeados por informações e veiculação de mundos religiosos, tendem a escolher a partir de referenciais conhecidos por alguém que lhes é simpático.
            Desta pessoa de confiança aceitam-se argumentos e indicações sem muito senso crítico e sem muita desconfiança da seguridade dos dados que ela apresenta. Inicialmente não se percebem seus interesses ideológicos, sua visão mais aberta ou fundamentalista, e passa-se a assimilar o que ele nos sugere.
            Deste modo, muitas orientações para a espiritualidade cristã insinuam algo muito propenso aos desejos: encontrar superação, êxito e prosperidade.
            Sob o encantamento da Teologia da prosperidade, fica-se induzido a precisar, mais do que os outros, de graças, de bênçãos e de curas para que se possa sentir muita bênção e muito aconchego da parte de Deus. E assim, vai-se ao caminho da espiritualidade da mesma forma como uma pessoa capitalista ambiciosa parte para novas conquistas.
            Tal foco tende a amenizar e até a abafar qualquer necessidade de corresponsabilidade pelo bem comunitário ou do bem comum, pois, importa que um “eu” conquistador dobre Deus para que lhe seja mais favorável do que vem se manifestando aos demais.
            Assim, a barganha do poder pessoal, tende a comprar tudo, até o céu, e a valer-se de chantagens e de tentativas de corromper Deus para favores especiais e avantajados.
            Por outro lado, mesmo que a busca seja humilde, reta e honesta, o caminho não costuma ser similar ao de pistas bem sinalizadas e belamente ornamentadas. Trata-se muito mais de um tateio numa estrada que, a cada pouco, apresenta atalhos, entradas e saídas sem sinalização, que tornam insegura a trajetória.
            Quando se anda num lugar desconhecido e aparece insegurança a respeito do caminho que conduz ao lugar onde se deseja chegar, sempre aparece simpática a indicação de um caminho de atalho.
            Parece que o atalho aproxima em menos tempo do alvo desejado. Além disso, os informantes dão tantas explicações que despertam a imaginação para uma rota maravilhosa, e, já na primeira estrada de desvio, não mencionada, volta-se ao velho impasse.
            Na busca da espiritualidade, que é este abrir-se para algo novo, que, de um lado atrai, mas que, de outro, traz insegurança e até incertezas sobre o real alcance do novo, os indicativos que encurtam a distância, geralmente apresentados com detalhes minuciosos, constituem um alívio simpático, porque levam a antecipar a proximidade de quem se deseja visitar. Assim, também existem itinerários de cultivo, que, no entanto, confirmam aquele ditado popular de que o atalho, normalmente, faz o caminho tornar-se longo, difícil e imprevisível.
            A busca da sensibilização para sentir e captar o Espírito de Deus, em vez de aprofundar o caminho das Sagradas Escrituras, leva a atalhos de esoterismo, meditação e yoga, religiosidade, etc.
            Isso não significa que estes caminhos não levem ao fim desejado. Eles abrem perspectivas benéficas, mas podem não constituir o caminho mais seguro para aprofundar-se na espiritualidade.
            Um primeiro aspecto que requer uma atenção especial é o do esoterismo.

3.2 – Esoterismo

            O termo ‘esoterismo’ tende a ser entendido a partir da sua raiz grega ‘esotero’, com o significado do que está dentro, ou, do que está no interior. Existe também a palavra grega ‘exotero’ (com ‘x’ no lugar do ‘s’) que significa o contrário, o que é exterior e acessível a todos.
            Feita esta distinção, ainda resta um pequeno alerta de que esoterismo não é a mesma coisa do que espiritualidade. Pode, no entanto, estar misturado e até confundir-se com a espiritualidade.
            O esoterismo geralmente está relacionado com tradições filosóficas e religiosas antigas, reveladas como novidades e segredos para a vida plena, mas, apenas repassados para algumas poucas pessoas que são escolhidas ou às que mostram muito interesse pela aquisição de conhecimentos falados ou escritos destes gurus ou líderes.
             São despertadas pela vontade de entrar neste encantado mundo de novidades e de mistérios ocultos. Por isso, facilmente se mesclam elementos do ocultismo.
            No caminho do esoterismo cria-se uma espécie de mistério em torno de realidades ocultas, que somente os iniciados teriam capacidade de captar ou acessar.
            Por isso, cria-se uma graduação, como a de escada ascendente para os iniciados e eles somente poderão aprofundar-se no conhecimento das realidades ocultas ou divinas, subindo progressivamente estas etapas em que segredos da vida lhes são revelados, aos poucos, e na medida em que avançam no discipulado.
            O peculiar do esoterismo é que os mais iniciados afirmam que conseguem contatos com o sobrenatural ou com leis e segredos do universo, e que, segundo eles, não seriam alcançáveis pelas outras pessoas comuns. Destes segredos, revelados, aos poucos, e somente para algumas pessoas que fazem a iniciação, estariam em condições de alcançar um sentido mais profundo para a vida e as coisas que a rodeiam. As outras pessoas não seriam capazes de captar estas realidades superiores.
            Há, portanto, um pressuposto no esoterismo a respeito da possibilidade de captar segredos e mistérios raros, apenas para quem segue os passos de um mestre, guia ou guru.
            Além de aspectos importantes que podem melhorar a qualidade da vida com este seguimento, este caminho também pode envolver alguma malandragem e magia, a fim de permitir aos líderes esotéricos a possibilidade de elevar-se socialmente acima dos demais através da incorporação de elementos de curandeirismo e mistura de elementos de diferentes religiões e filosofias.
            Tal processo, chamado de sincrético, facilmente abre caminho para especulações um tanto fantasiosas, sem comprovação real, objetiva e empírica ou prática daquilo que se sustenta e se aponta.
            A tentação de alguém elevar-se diante dos membros do seu grupo de relações através de acessos diretos e ocultos aos segredos divinos ou da natureza é muito grande em nossos dias.
            Os que se dizem iniciados, insistem na sua superioridade, mediante treinamentos, exercícios, leituras e práticas de ritos, alcançados por meio de condições especiais, mas que acabam misturando ritos mágicos para obtenção de forças ocultas.
            Mesmo em comunidades cristãs muito religiosas, certos membros atribuem a si mesmos ares especiais de superioridade, porque se acham portadores de poderes divinos como os de cura e libertação, de exorcismo, de línguas e de vidência ou pré-cognição do que vai acontecer.
            Neste assunto, facilmente apelam a segredos de práticas religiosas e espiritualistas, mas que, na verdade, nem são coisas tão ocultas, secretas e privilegiadas.
            Podemos constatar que, numa religião também se fazem ritos e orações para um diálogo como o divino (Deus, o sobrenatural ou o além), mas, tem um fundamento, e uma doutrina, que é aberta e acessível a qualquer pessoa, e não somente a um pequeno e seleto grupo de pessoas iniciadas no seguimento de uma determinada pessoa privilegiada que se apresenta como guru.
            Está ali uma diferença básica, pois, religião e espiritualidade tendem a abrir-se ao mundo e às pessoas, enquanto que o esoterismo cultiva segredos e os revela apenas a pequena parcela de seguidores.
            Geralmente o esoterismo se constitui num caminho fácil e atraente para pessoas que se sentem excluídas ou pouco valorizadas no ambiente social e que, através do esoterismo, procuram afirmar-se socialmente com seus poderes especiais de previsibilidades, exorcismos e expulsões demoníacas.
            Todavia, a limitação mais visível do esoterismo está no exclusivismo de poucas pessoas, enquanto que a espiritualidade cristã é um caminho aberto a qualquer pessoa e a todas as pessoas.
            Num nível parecido ao do esoterismo encontra-se a Yoga e a meditação. Têm raízes e práticas milenares, mas, não necessariamente se afiguram como equivalentes à espiritualidade cristã.

3.3 – Yoga e Meditação

            Tanto a yoga quanto a meditação constituem atividades que podem ser altamente benéficas para a qualidade de vida das pessoas. Entretanto, existem muitas formas e muitas orientações canalizadas para diferentes práticas religiosas e facilitam uma mistura de crenças que pode mais atrapalhar do que ajudar na organização da vida cristã.
            Yoga e meditação têm como objetivo geral uma harmonização de todos os campos da vida, seja na lida diária, na consciência, na estabilidade emocional e no modo de solidificar a personalidade.
            A busca de harmonia e de estabilidade normalmente implica em ajustar-se bem ao entorno das pessoas e do lugar onde se vive.
             Esta capacidade de dar-se bem com as pessoas próximas, como os membros de parentesco, de vizinhança ou os de ambientes de trabalho, sempre é muito valorizada porque gera bem-estar e bom humor na convivência.
            Uma das suposições básicas da Yoga é a de que existe uma harmonia na organização do universo e que, através da meditação e de exercícios de concentração, uma pessoa consegue captar esta harmonia e inserir-se nesta bela organização do cosmos.
            Hoje existem dúvidas a respeito desta suposição porque o universo pode ser visto pelo contrário da harmonia e da estabilidade, uma vez que há uma constante mudança e muita movimentação cruel como as forças que desfazem um planeta e criam outro; e, mesmo se olharmos para a Terra: quanta violência e quanta morte decorrente de vulcões, terremotos, guerras, entre humanos, entre animais e entre forças da natureza.
            A própria e encantadora beleza de ambientes naturais revela que está cheia de agressividades, como a da água disputando espaços com a terra, as plantas valendo-se de tudo para sobreviver e afastar outras que ameacem sua expansão; animais que matam para sobreviver e perseguem a todos os outros que ameaçam seu ambiente de reserva.
            Até os múltiplos tipos de passarinhos, que tanto nos encantam pela beleza e pelos seus maravilhosos gorjeios, demonstram agressividade cruel por conquistas de domínio e de espaço.
            Certamente é importante uma boa sintonia com o ambiente natural que envolve a condição humana, porque mergulhados neste mundo de lutas pela sobrevivência, - em meio a grandes mobilizações, sejam as do ar ou dos muitos eco-sistemas de vida, - podem complementar-se de uma forma razoavelmente equilibrada.
            Isto ajuda a perceber que, real e objetivamente, nem tudo é tão romântico e poético como facilmente se pressupõe.
            A proximidade com pessoas e com os ambientes cósmicos certamente não é igual ao de um monte de pedras. Estas podem estar próximas e até amontoadas, sem estarem conectadas entre si, por algum vínculo vital, afetivo ou de sobrevivência. Entre os seres humanos, manifesta-se carência de proximidade com outras pessoas.
            Se uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais, uma pessoa que morre, ou se afasta por algum motivo, pode perturbar e causar impactos significativos na organização da vida pessoal das pessoas próximas.
            Os seres humanos também carecem de relações de outra natureza e de um sentido para o que fazem. Mesmo com as enormes diferenças de grupos humanos raciais, sociais e culturais, ecoa um grito forte que revela necessidade de vínculos de proximidade e de interação com outras pessoas, com animais e com plantas.
            Enquanto que uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais que estão amontoadas, nos seres humanos, por exemplo, se um órgão não funciona bem, ele acaba afetando diretamente os demais órgãos.
            Da mesma forma, na convivência, algum desequilíbrio, seja por doença, por tensão, conflito ou desencontro, afeta o psiquismo e a afetividade.
            Pode ferir a auto-estima, pode causar decepção profunda e desencantamento com as coisas; e pode mudar os projetos e as mediações para o alcance dos objetivos, em vista de um sentido que dê razão à vida.
            O físico Fridjof Capra, afirma que o nosso corpo é uma miniatura do universo: é um grande sistema que organiza sub-sistemas.
             Assim, podemos perceber que, o mesmo alimento ingerido e o mesmo ar que respiramos, alimenta e oxigena os diferentes sistemas como o respiratório, o ósseo, o muscular, o digestivo, o circulatório, o neurológico, o urinário, etc.
            Cada um destes sistemas é autônomo, mas, ao mesmo tempo está estreitamente interligado com os outros. O sistema central, que para Capra é o emocional, permite um equilíbrio razoável para que nenhum sistema seja prejudicado.
            No entanto, quando o estado emocional não está bem, pode algum órgão não receber bem as necessárias enzimas ou desequilibrar o mundo dos micro-organismos que o mantêm. Com isso, os anticorpos de defesa não conseguem evitar que um tipo tome o lugar de outros e provoque o que chamamos de doença, infecção ou enfermidade.
            Como a consciência humana é capaz de estender-se para além do corpo, o que uma pedra certamente não consegue fazer, meditação e yoga teriam esta função de vincular melhor aos cosmos.
             Diferentes estágios de meditação e de exercícios de concentração ajudariam a ampliar esta consciência para uma sintonia com a harmonia do todo, que alguns vão denominar de Deus, ou simplesmente o divino que integra e anima estes cosmos.
            Entrar em harmonia ou em ajuste amplo com o cosmos, independente das variedades de perspectivas religiosas, com certeza, é um caminho que pode fazer bem para as motivações da vida.
             É benéfico todo o recurso que ajude a estar de bem com a própria personalidade, com a auto-estima, com o humor alegre e edificante.
            Sem dúvida, ajuda para que os subsistemas do organismo possam ajustar-se melhor do que mediante um psiquismo agitado, frustrado, pessimista e cheio de ressentimentos e mágoas.
            A captação da grandeza de harmonia, tanto no sistema orgânico quanto no psíquico, torna-se, evidentemente, uma tarefa valiosa para viver bem.
            Por isso, a capacidade de controlar os sentidos e a mente sempre ajuda a desligar fatores que perturbam o bem-estar e o sentimento de melhor integração na amplitude da vida do cosmos.
            Assim, como os exercícios de relax são eficazes perante fatores que causam tensões e mau funcionamento de órgãos, os momentos de meditação predispõem para melhor organizar o rendimento da capacidade física, com boa oxigenação e adequação orgânica.
            A meditação também ajuda a manter a mente mais calma e a produzir maior capacidade de percepção de grandezas interiores, com a recriação de energias e de boas motivações para intuir algo novo que melhore a qualidade da vida.
            A mera capacidade de amenizar os transtornos de ansiedade já constitui fator de reconhecimento à yoga e à meditação pela função muito importante na vida: ajudam a plenificar a vida para mais sentido e alegria de viver.
             Por outro lado, melhoram a concentração para tarefas mentais, aumentam vigor o físico e psíquico, aumentam a liberdade e deixam as pessoas mais criativas diante da pluridimensionalidade de situações imprevistas que seguidamente aparecem na vida.
             Enfim, propiciam também um agradável sentimento de viver a vida com maior inteireza.
            No entanto, parece que a yoga e a meditação deixam uma lacuna no que se refere à construção dinâmica e positiva do Reino que Jesus anunciou. Este requer algo para além de uma harmonia estanque, pois, interpela a agir no meio da organização humana, conturbada, e conflitiva, que não apenas carece de indignação, mas, também do embalo para elevar-se na qualidade.

3.4 – Religiosidade

            Religiosidade constitui mais um campo da vida que facilmente se mistura ou se confunde com a espiritualidade. Geralmente a religiosidade não alcança os objetivos da espiritualidade, porque prende pessoas a piedades e a ritos exteriores que as acomodam e as levam a fazer sempre mais as mesmas coisas.
            Uma característica muito presente e visível da religiosidade é a do dogmatismo, isto é, uma forte insistência em normas, regras, regimentos e apelos à repetição de exercícios, que até esvaziam a fé porque as pessoas são levadas a observar preceitos e detalhes de rituais religiosos que não causam mudanças na vida, mas apenas aprofundam os hábitos e costumes.
            Outro traço marcante da religiosidade é o do sectarismo, que também está presente em outros modos de pertença a grupos, sejam eles de cunho religioso, político, ou meramente social.
             Na verdade, o sectarismo é um fenômeno humano que se manifesta em qualquer organização.
             Sectarismo vem da palavra latina “sectare”, que significa separar uma parte do todo. Num exemplo prático, seria como pegar um abacaxi, cortar uma pequena parte da casca e começar a sustentar que esta pequena parte é muito melhor do que o resto do abacaxi.
             É uma tendência de formar guetos no interior de um grupo maior de pertença. Envolve certa intuição de começar algo novo e mais valioso para as pessoas do que aquilo que vem sendo feito e oferecido no grupo maior.
            Outra ilustração do sectarismo, no campo religioso, é o da grande ramificação de novas Igrejas evangélicas, e o de tantas congregações religiosas, ordens e movimentos para a criação de grupos novos na Igreja católica, sejam de jovens, de casais ou de interessados numa forma mais exclusivista de fazer algo parecido, mas, muito melhor do que aquilo que vem sendo feito pelo grupo predominante.
            A intenção de querer oferecer algo melhor do que os outros oferecem, tende facilmente para um rigorismo em torno de algumas práticas, o que leva muitos se afastar, sem demora, da pertença ao grupo ou à comunidade, e iniciam a formação de outros grupos, ou saem para procurar algum com o qual mais se identificam.
             Isto gera uma grande migração religiosa e também uma rivalidade acompanhada de intensa propaganda e de marketing para atrair maior número de membros ao novo grupo.
            Ao lado do rigorismo para agregar mais membros, o sectarismo na religiosidade leva a muitas afirmações categóricas. É ‘assim porque é assim’ e ninguém pode questionar nada.
            Nas expressões categóricas também são muito comuns aquelas já conhecidas formas de tratamento diretivo, como: faça isto, feche os olhos, ponha a mão no coração, diga isso a Deus...
            No fundo, é uma forma que infantiliza as pessoas, mesmo adultas, para condições de submissão. Constitui tática sutil de dominação e de imposição a partir dos que estão no comando do grupo.
             Há um ditado popular que ilustra este mecanismo: quanto mais fraco for o argumento a ser apresentado, tanto mais se apela aos gritos, aos rompantes, aos gestos patéticos e enfáticos, que, com os floreios da oratória, visam dominar os membros ouvintes.
            A religiosidade também pode ser constatada pela busca um tanto obsessiva de grandes feitos e obras. Nesta propensão materialista em torno de algo impactante, como obras, eventos e grandes concentrações, facilmente os que muito apelam a uma espiritualidade superior, acabam mesmo esfriando o fervor da fé, porque insinuam demais na execução de orações, de tarefas e atividades programadas.
            Ao lado desta exteriorização, a religiosidade também tende para a centralização do barulho e da agitação.
            Muito grito e muito exagero no volume do som refletem que a aspiração maior é a de conseguir alargar o número de adeptos.
            É por isso que podemos assistir a tanta extravagância em celebrações religiosas, onde o mais importante é a ascensão de quem anima o grupo.
             Dali também decorre a promoção de muitos eventos ostensivos que, na argumentação, são para Deus, mas que, efetivamente, visam o engrandecimento dos promotores.
            Ainda outra perspectiva marcante da religiosidade é a da concepção meramente antropocêntrica, isto é, o fim são conquistas humanas de um grupo ou de uma organização e não o que se almeja como mundo mais integrado no amor de Deus.
            Assim, criam-se normas para os outros e alargam-se orientações para piedades, que precisam ser executadas nos mínimos detalhes exteriores.
            Como se pode observar, a religiosidade apresenta um alto potencial de alienação. Ao invés de alargar direitos e condições dignas, desloca o foco das atividades para muitas obras e eventos que não aproximam da experiência de Deus.

CAPÍTULO IV

FORMAS PARCIAIS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
           
Nas buscas da experimentação de Deus,
Incontáveis são os caminhos apontados,
Que, como as exterioridades de fariseus,
Deixam os anelantes bem desorientados.

            Se a comparação da busca de espiritualidade cristã, feita ao caminho e seus atalhos pode ofuscar, a clareza em torno de um caminho, rápido e seguro, para aproximar-se mais de Deus, pode também efetuar algo parecido diante dos muitos caminhos conhecidos e que, não necessariamente, levam a níveis mais aprofundados de espiritualidade.
            Além dos caminhos variados e das paisagens muito diversificadas, que podem distrair e desviar o foco, muitos detalhes podem mudar o foco almejado e trazer dúvidas, além de incertezas capazes de atrasar e de inviabilizar as expectativas alimentadas.
            Como espiritualidade implica em busca pessoal e dinâmica, é possível que alguns caminhos frustrem e sequer levem ao destino almejado.
            Mesmo a motivação profunda de querer orientar-se para Deus, pode desviar-se da efetiva aproximação, porque a distração com rótulos ideológicos e com indicativos do melhor percurso se confundem com outros pedidos secundários de quem, em troca, quer carona para outro endereço, ou, pede outro favor mediante a informação fornecida. Assim, a necessidade de pedir informações a todo instante para outras pessoas, desvia do programa estabelecido com as melhores esperanças.
            No caminho do discipulado de Jesus Cristo, também não se está livre e isento de dissabores e de muitas decepções. Por isso, o cultivo da vontade de ser melhor e de ser mais humanitário, a exemplo de Jesus Cristo, requer uma disciplina.
            Momentos de silencio, de meditação e de escuta do que se passa nos sentimentos mais profundos, são certamente fundamentais para o avanço no caminho da espiritualidade.
            Do mesmo jeito que um deslocamento através de um caminho já conhecido pode trazer imprevistos e surpresas, tanto agradáveis e prazerosas quanto desconfortáveis e decepcionantes, pois, pode um caminho de espiritualidade, defrontar-se com imprevistos e vacilações que dificultam a segurança no caminho indicado por Jesus Cristo.
            Ainda que o caminho escolhido se apresente seguro, implica em lidar com o humor para que a viagem não se torne um pesadelo.
            A não integração dos sentimentos perturbadores pode distrair e atrapalhar a viagem.
            Assim, a espiritualidade do “eu pecador” que quer elevar-se à grandeza de “Cristo salvador” requer empenho regular.
            Nas buscas de aprofundamento da espiritualidade cristã torna-se valiosa a sensibilidade em torno das expressões empáticas dos que indicam caminhos, quando estes realmente manifestam sentimento de valor à pessoa.
            Esta capacidade de amor empático, de quem realmente quer ajudar, seja a de sentir a inquietação alheia, a dúvida, a incerteza, quanto de valorizar os grandes anseios, é muito valiosa para o êxito do caminho.

4.1 – Espiritualidade que cega

            Na Bíblia católica, consta dentre os livros do primeiro testamento, o livro de Tobias que menciona a cegueira de Tobit. Este texto não faz parte das Bíblias de Igrejas Evangélicas.
            Trata-se de um livro, aparentemente sem maior importância, que apresenta uma história em torno das dificuldades vividas numa família, exilada da região do norte de Israel para a cidade de Nínive, na Assíria.
            Tobit foi homem de profunda piedade, muito reto na observância das prescrições bíblicas, muito caridoso, humanitário, que enterrava os corpos dos judeus que morriam ali no exílio, jogados na rua; também se notabilizava pelo zelo, pela piedade e fiel observância dos costumes judaicos.
            Casou-se com Ana, com quem teve um filho, chamado Tobias, mas, toda esta prática religiosa e ambiente familiar não impediu que se tornasse uma pessoa altamente insatisfeita e lamuriosa. A culminância foi a da cegueira.
            Sem dinheiro e sem condições de trabalho, virou feito um feixe de lamúrias e passou a levar uma vida pessimista e cheia de lamentações.
            Na verdade, o velho Tobit começou a olhar demais para o céu, e muito pouco para as coisas da Terra. A narrativa deixa a impressão de que se tratava de uma pessoa piedosa, mas, pessimista, a tal ponto que não via nada de bom ao seu redor.
            Mesmo sendo uma pessoa altamente piedosa, nutria uma espiritualidade alienante. Segundo o texto, ao ficar olhando demasiadamente para o céu, caiu cocô de andorinha sobre seus olhos e ele ficou cego.
            Sem capacidade de lidar com os problemas do dia-a-dia, e, sem satisfação com as muitas piedades e práticas religiosas, ele, na verdade, ficou cego de sentido para a vida, mais do que de vista, porque não acumulou ‘luz’ em sua vivência religiosa para iluminar e contornar as dificuldades da sua vida.
            Na vivência do vazio interior, o velho Tobit foi se afundando na depressão e na perda de gosto pela vida. Um dia apareceu-lhe uma visita especial de um amigo, que se tornou um anjo, porque foi um intercessor em favor de novas razões para a vida de Tobit. O amigo foi Rafael (Rafael significa que Deus cura). 
            O fechamento de Tobit sobre si mesmo, cedeu lugar, pela mediação de Rafael, a uma alegria contagiante em vista de algo novo, capaz de perceber para além do pessimismo, que o havia esvaziado do gosto pela vida (Tob 5,10: “que alegria ainda posso ter? Estou cego e não posso ver a luz do céu; estou mergulhado nas trevas, como os mortos que não contemplam a luz; vivo como um morto; ouço a voz das pessoas mas não as vejo. Disse-lhe o amigo (que o atendeu como um mensageiro de Deus naquele infortúnio): tem confiança, que Deus em breve te curará. Ele te curará!...).
            Hoje se falaria que Tobit entrou em estado de depressão. Igualmente se pode deduzir que a exterioridade da sua vivência religiosa não lhe deu um suporte seguro e estável para lidar com os momentos difíceis da vida.
             No entanto, graças ao humor alegre de uma pessoa amiga, recuperou o que já havia sumido da sua existência: a confiança.
            Este amigo Rafael desencadeou o processo de saída da depressão: ofereceu-se para acompanhar o filho Tobias a fim de ir ao país vizinho tentar reaver um empréstimo que Tobit havia feito antes de ser levado ao exílio.
            Na viagem, algo inusitado aconteceu com Tobias, filho de Tobit. À noite, acampados na beira do rio Tigre, ele quis lavar os pés e um grande peixe quis morder o pé.
            Peixe grande da profundeza do rio significa o inconsciente da pessoa. Quando uma pessoa está mal integrada e sem controle sobre seu inconsciente, este pode leva-lo a fazer coisas muito piores do que morder o pé.
            Ele pode mover a pessoa para a violência, para a tristeza profunda, para a insatisfação e para literal incapacidade de integrar-se na convivência com os outros.
            O inconsciente desajustado pode induzir a muitos comportamentos doentios de obsessões, rejeições, violências e, até de mecanismos de auto-destruição.
            Naquele ambiente sem graça do velho Tobit, Tobias foi perdendo o gosto pela vida, mas, também o sentido para conquistar algo novo e diferente.
             O amigo pediu que Tobias agarrasse o peixe a fim de extrair-lhe o fel, o coração e o fígado, porque se constituiriam em remédio muito útil. Rafael disse que o coração e o fel teriam a capacidade de expulsar espíritos maus. O fel curaria manchas brancas dos olhos.
            À noite, Rafael sugeriu pernoitar na casa de Ragüel, um parente de Tobias e que tinha uma filha chamada Sara, com quem Tobias poderia vir a casar-se.
             Havia, no entanto, um problema: Sara teria se casado sete vezes e terminado com a vida dos maridos na primeira noite, e, assim continuava sem filhos. Quis suicidar-se pelo distúrbio, mas, não teve coragem.
             Na verdade, o mesmo interesse pelo suicídio também já havia passado pela cabeça de Tobias e só não interrompeu o fluxo da sua vida por falta de coragem.
            Diante das perguntas de Ragüel, Tobias lhe revelou que era filho de Tobit.  Ragüel lamentou profundamente a informação dada sobre a cegueira de Tobit. Na janta, festiva e animada, Tobias criou coragem inusitada e pediu Sara em casamento.
            Mesmo com a informação do que já se sucedera nos sete casamentos anteriores de Sara, Ragüel almejou felicidade aos dois a partir daquela noite, o que transformou o estado de tristeza profunda de Sara em alegria exuberante.
            Ainda naquela noite Sara colocou o fígado e o coração, que Tobias trouxera, sobre brasas.
            O cheiro teria expulsado o demônio que teria tomado conta da vida de Sara. Afinal de contas, que demônio teria perturbado a vida de Sara?
            Para os povos antigos o fígado era considerado como o órgão responsável pelo humor. Tristeza e melancolia, na cultura grega, equivaliam à bílis negra ou intoxicada; e que levava a vômitos, alergias, icterícias, etc. Já na cultura do povo da Bíblia, o fígado era considerado a sede das emoções, tais como as de medo, ciúme e cólera, emoções que eram capazes de impedir e de abafar o brilho da luz vital de uma pessoa.
            Ainda outro significado de fígado, é aquele que procede da língua latina, pois “Ficatum” significava figueira. É neste contexto que podemos entender a estranha expressão de Jesus Cristo, feita a Natanael: ‘ eu te vi sob a figueira!’. Era como dizer: ’eu te vi ocupado em atividades boas, em torno de algo edificante e valioso’.
            Muitas vezes, como ocorreu com Sara, esta luz motivadora da vida desaparece e, então, aparecem mecanismos entrópicos de cegueira e de desgosto com a vida.
             O trabalho do anjo Rafael, ao indicar um sentido novo para Sara com Tobias, mostrou como um gesto simples de fígado no seu bom desempenho, permite a agradável experiência de que ‘Deus Cura’, que é o significado da palavra Rafael.
            Sara mexeu no segredo da bile e conseguiu livrar-se da sua profunda tristeza e, simultaneamente, propiciou uma nova perspectiva para Tobias e seu velho pai Tobit, que, com a aplicação do remédio, preparado por Sara, voltou a enxergar e a viver na alegria...
            O episódio que envolveu tristes momentos na vida de Tobit, e que o levaram à cegueira, teve uma guinada que transformou radicalmente o humor deste velho frustrado: alegria contagiante no lugar da lamúria em torno da cegueira e do fígado azedo, ou, como se diria hoje, cegueira do mau humor.
            A pessoa amiga, - que foi Rafael, - ajudou a mudar a cegueira de Tobit, mas, este anjo articulou, antes disso, o entorno da vida de Tobit, porque agiu com perspicácia e bom senso para a mudança radical na vida de Sara e de Tobias.
            Este belo resultado, decorrente da atenção humanitária de Rafael, foi fundamental para que Tobit pudesse novamente encantar-se com a alegria, no lugar da cegueira pessimista.
            Assim, uma espiritualidade cristã, deve sensibilizar-se com o que Deus revela na contingência desta vida, através de tantas coisas que podem afigurar-se, tal como a ação bondosa de algum anjo Rafael.
             Espiritualidade requer atenção aos sinais sensíveis do entorno humano que nos envolve.
             Do contrário, pode-se cair na tentação de assimilar a espiritualidade como um mero processo ambicioso de grandes conquistas.

4.2 – Espiritualidade do “EU” conquistador

            Assim como o sistema capitalista induz a conquistar a felicidade pela superação e pelo acúmulo de bens, ocorre sedução pela conquista, num processo similar, de níveis, de estágios e de parâmetros mais elevados de espiritualidade.
            Com isso, ao invés de alguém se tornar melhor em gestos e nos modos de ser, preocupa-se, eminentemente, pelo alcance de graças, de milagres, de curas, a fim de alargar o poder pessoal e conquistador.
            Deste modo, o forte e poderoso já não é mais Deus, mas, quem quer convencê-lo e dobrá-lo para que atenda seus pedidos e súplicas.
            Na verdade, esta perspectiva de espiritualidade, transforma a lida da perfectibilidade em grande ocasião de negócios e de conquistas para aumentar o poder espiritual.
            Trata-se de uma espiritualidade ascendente, que deseja elevação, reconhecimento e status diante de Deus.
            Como vem ocorrendo convencimento intenso em favor de uma sociedade de consumo corre-se o risco de entender algo parecido com a espiritualidade cristã. Quando o fascínio indica a espiritualidade consumista, não interessa muito o empenho para superar certos efeitos negativos dos transtornos psíquicos, nem mesmo preocupação com as dificuldades das pessoas do entorno, porque o estímulo consumista leva a pensar obstinadamente nas metas, nas estratégias e nos prazos estabelecidos para o alcance da realização dos desejos pessoais.
            Com esta atenção cegamente focada para o consumo de níveis ou quadros de maior felicidade, acaba não sobrando muito espaço para as questões sociais, e, nem tampouco, para as interpelações do Evangelho de Jesus Cristo. Importa mais o alcance do desejo pessoal e o seu devido reconhecimento.
            A espiritualidade conquistadora centraliza o desejo de felicidade, mas, leva a buscar a instância divina para ampliar o poder de auto-afirmação e, para tal fim, importa quem facilita os interesses de forma simpática. Assim, muitas pessoas santas são veneradas com maior intensidade, de acordo com seus supostos créditos de fornecimento das presumidas graças que estão sendo esperadas. Como nas lidas políticas, quer-se do campo da espiritualidade um meio de obtenção de vantagens.
            Sob este perfil de espiritualidade, tem-se diante da vida uma imensa oferta de propostas de êxito para o alcance dos segredos espirituais.
            Na facilitação dos atalhos, esperam-se acessos impregnados de magia e de intimismo a fim de favorecer larga prosperidade material.
             Nesta ótica, não atrai a proposta de um eventual caminho de solidariedade, a ser penosamente construído, e nem tampouco uma cordialidade capaz de gestar experiências humanas gratificantes.
            Na perspectiva conquistadora também não interessa eventual caminho de espiritualidade que ajude a lidar com as próprias fraquezas.
             Esta dimensão da vida tende a ser abafada e ocultada pelas couraças de auto-defesa em função do privilégio das metas a serem conquistadas.
            Com tal quadro, impõe-se a espiritualidade egocêntrica do sujeito isolado que quer ser feliz, mas que, em nada se compromete pela elevação da justiça e de condições mais dignas para tantos seres vítimas de espoliação.
            O resultado desta espiritualidade conquistadora equivale ao que se costuma observar no macaco que mete a mão na cumbuca de nozes e enche tanto a mão que não consegue mais tirá-la e sequer desconfia que se pegasse uma ou duas nozes, poderia tranquilamente comer muitas e saciar sua fome.
            A espiritualidade na perspectiva bíblica cristã interpela para uma capacidade que melhore o nível de solidariedade com as pessoas do entorno.
            Por isso, é valioso o lembrete do escritor francês Marc Auger relativo à importância do empenho pela boa interação com outras pessoas: alguém somente consegue aumentar sua auto-estima e o bem-estar consigo mesmo, quando se dá conta de que se amplia o número de pessoas que lhe manifestam sentimentos de estima e de bem-querer.

  
4.3 – Espiritualidade de ascensão


            Muitas pessoas que desejam crescer na espiritualidade cristã partem de uma questão desviada do foco: inquietam-se em torno do que querem saber e conhecer, mas, não se perguntam como poderiam ser melhores na convivência com os outros e com o mundo frágil das próprias limitações.
            O risco desta espiritualidade é o do cultivo excessivo de ideais.
            Muitas pessoas vivem de idealizações em torno do que querem atingir e dos níveis de santidade que querem viver.
            Até se envolvem com belos sonhos de heroísmo e de virtudes de grandiosa santidade com vistas a sentir elevação através de admiração e encantamento por parte de outras pessoas.
            Esta perspectiva de espiritualidade traz o risco de produzir ‘espiritualidade amouca’, isto é, leva as pessoas a não viverem seus próprios sentimentos, mas, movem-se por intensa paixão pelo que lhes foi repassado por certos gurus.
             Por isso, são capazes de brigar, de perseguir e de odiar, simplesmente para defender ideias alheias e ofender muitas outras pessoas, somente, pela defesa de uma orientação nem sempre merecedora de consideração.
             Amoucos brigam por ideias produzidas por outras pessoas, e, em torno delas, agridem, humilham, destratam e partem para as múltiplas formas de agressão e de violência, - especialmente a simbólica, - através da qual atacam os símbolos de valor das outras pessoas.
            A repressão da própria identidade para brigar e até matar por causa da defesa de ideias alheias, geralmente reflete uma divisão interior doentia.



4.4 – Espiritualidade midiatizada


            Constitui certamente mais uma forma de espiritualidade vistosa, atraente, que advém do novo jeito oferecido para o contato entre o fiel e o sagrado, por meio da mídia eletrônica.
             É um simpático atalho que encurta caminhos de cultivo pessoal e leva a experiências emocionais intensas e entusiasmadas.
             O clima emotivo, com muito contraste de cores, de cenários e de traços ornamentais dos gurus produz uma sensação festiva e alegre para uma agradável experiência de Deus e desencadeia rápidos estágios de êxtase e de alucinação eufórica.
            Os apresentadores, como as agências de turismo, apresentam roteiros atraentes, insinuantes e com promessa de muita alegria e felicidade.
            Esta nova ambiência religiosa, sem genuflexórios, sem inclinações humildes para expressar arrependimento, sem a dureza das longas horas de oração, de motivação, de meditação e de escuta do que se passa no interior, tende para o clima festivo, exuberante e irradiador para o auge de um transbordamento do agir divino.
            É como um baile bem animado que arrasta grande número de casais para a pista de dança.
            Esta nova modalidade de prática religiosa conta com o fantástico recurso “off-line” para que mensagens sejam veiculadas e os espertos gurus rezam em favor da pessoa fiel em dificuldades, como balconistas que tem atrás de si prateleiras entulhadas com todas as ofertas que pobres pedintes possam esperar de Deus.
            Ampliam-se ao infinito as ofertas de mensagens religiosas, devocionais e com garantias de efeitos imediatos para todos os gostos e necessidades.
            Assim, oração e cultivo de fé, viram sinônimo de marketing de grupos religiosos, com exposição ao vivo da execução dos milagres e das curas (normalmente meros rituais de transe, magia e indução sugestiva).
             Da mesma novidade, mobilizam-se as capelas virtuais com as mais atraentes ofertas de sagrado, com variadas orações em “off-line”, de modos que uma pessoa em dificuldades já nem precisa rezar.
            Basta que envie um valor ao guru, e o esperto rezador já negocia com Deus, em favor desta pessoa, e lhe assegura, em meio à intensa bajulação, a realização do milagre.
            No entanto, os presumidos gurus colocam uma condição: que esta pessoa continue a colaborar com uma causa maior do apresentador, e, igualmente se disponha a ajuda-lo e a promovê-lo diante de outras pessoas, como alguém extraordinário, superior e poderoso no ajeitamento das mediações espetaculares da parte de Deus.
            Assim, o meio comunicacional da mídia eletrônica produz nas pessoas fiéis uma vivência de fé muito distinta daquela que veio da tradição cristã. A razão principal é a de querque a midiatização constrói mundos sociais de pessoas e as induz a uma lógica de religião que não tem nada a ver com penosa construção de comunidade, de cordialidade e de superação de problemas sociais.
            Bastam buscas individuais que abasteçam o intimismo do “eu” através do “meu Jesus Cristinho”, ou as da cega obstinação de invocação de santos e santas protetoras, a fim de que, através destas figuras galãs e divinas, Deus se dobre aos seus pedidos insistentes.
            O resultado desta suposta espiritualidade é um nítido distanciamento de Jesus Cristo, ou numa fixação em frases, procedimentos e aspectos isolados em torno de Jesus Cristo, sem aderir ao conjunto do que ele fez e ensinou.
            Cria-se, deste modo, uma nova religião, onde o sujeito se torna a referência e o centro da religião. Ele não tem caminho difícil a percorrer e nem a aprender para ser melhor, pois a sua religião é o que ele pensa e o que ele produz a partir deste pensamento.
            A lenta, vagarosa e difícil ascese, cultivada ao longo de tantos séculos, cede, progressivamente, lugar à rapidez dos signos da informática com vistas a oferecer, com muita velocidade e, de imediato, o suprimento dos desejos subjetivos.
            Por isso, o quarto de uma pessoa passa a ser o lugar que equivalia ao espaço da Igreja comunitária. Ali, no quarto, através do celular ou do computador, escolhe-se, altera-se, combina-se a gosto e “deleta-se” o indesejado.
            Sobra somente uma espiritualidade que depende do humor da pessoa fiel.
            No meio deste mundo de interesses fragmentados, tanto na oferta quanto na procura, as antigas tradições litúrgicas e os programas de vida para uma elevação do nível da espiritualidade, passam a ser substituídas pelas escolhas, que são feitas de acordo com as simpatias, com os tipos de gurus que animam programas religiosos, e o perfil ideológico de quem orienta a vida.
            Aquilo que interessa é gravado, compartilhado, difundido e recomendado como o melhor para a obtenção de grandes bênçãos, graças, milagres, curas ou intervenções especiais da parte de Deus.
            Como se torna quase evidente de se concluir, o aporte, ou alcance desta espiritualidade se distancia cada dia mais do âmago da mensagem de Jesus Cristo e deixa uma dúvida crucial: todos estes rituais “off-line”, educam para maior qualidade de vida? Eles levam a constatar que o nível de satisfação com a espiritualidade buscada é dinâmico e crescente?
            Talvez se deva tirar pano novo do meio das coisas velhas do baú da vida que, com certeza poderá conduzir a um estágio mais elevado da qualidade de vida.



4.5 – Espiritualidade do espelho


            Existem espelhos para variadas funções. Eles se prestam bem para iluminar ambientes escuros. Podem igualmente constituir-se em instrumentos mágicos, com a perspectiva de comprar uma roupa e ver-se diante de uma imagem desejada... Espelhos podem igualmente produzir, em ambientes pequenos e apertados, a sensação de maior amplitude do espaço.
            Entre as múltiplas funções dos espelhos, destaca-se a de mostrar tudo, especialmente como somos.
            Bem sabemos que nem todos os espelhos são totalmente confiáveis, pois, muitos, de má qualidade ou côncavos, deformam e distorcem as imagens reais.
            Existe até uma superstição mundial para que se evite a quebra de espelho, especialmente quando a imagem refletida mostra uma feição nada bem humorada: quebrar um espelho daria sete anos de azar. Esta superstição procede do antigo mito grego em torno de Narcizo: ao ver sua imagem refletida na água de um lago, teria morrido de inanição de tanto desejar acariciar sua própria imagem.
            O que um espelho teria a ver com espiritualidade cristã?
            Em nossos tempos, o espelho, tal como a espiritualidade cristã, podem facilitar o auto-conhecimento, mas, ao mesmo tempo, podem prestar-se para o cultivo de um excessivo amor próprio.
            O Papa Francisco passou a usar a expressão “espiritualidade do espelho” para mostrar que o espelho vem sendo buscado como meio de iluminar a vida de cristãos, quando, na verdade, é a oração quem deveria constituir a pilha iluminadora da vida.
            O uso intenso do espelho pode levar as pessoas ao desejo similar na busca de espiritualidade: querem iluminar a si mesmas, enquanto que o genuíno valor da auto-estima, e o sentido para a vida, advém de boas obras. Por isso, o Papa sugere que a luz das boas obras é que deve resplandecer diante dos outros.
            O referido Papa sugere um “não” à espiritualidade do espelho porque decorre do intenso cultivo dos interesses consumistas. Basta observar que as empresas globais e a ambição do crescimento contínuo dos países, produz uma verdadeira paranoia nas pessoas, porque seus desejos alargados ao infinito, as leva a desejar níveis cada dia mais elevados de ascensão, de auto-afirmação e de ampliação do sucesso econômico.
            Com o foco central da espiritualidade para a própria pessoa que a busca, ocorre uma tentadora atração para uma caracterização mesquinha da espiritualidade, e, nesta condição, os interesses religiosos mal orientados – porque não são para outros, mas para si mesmo – remetem a uma figura ilustrativa da Bíblia, que é Jonas (4,1-11).
            Ele sentiu-se chamado a anunciar um caminho de redenção para a cidade de Nínive, uma cidade estrangeira, mas, logo revelou sua mesquinhez: odiava estrangeiros e estava convencido de que somente judeus recebiam a dignidade da salvação.
            Se Jonas sentia, de um lado, a apelo de Deus, resolveu optar pelo caminho inverso, muito mais cômodo e favorável aos seus interesses pessoais.
            O fechamento de Jonas sobre si mesmo – uma espiritualidade do espelho - fez com que ele não percebesse as verdadeiras dimensões missionárias da sua fé em Deus. Bastou uma pequena decepção, pois o arbusto que lhe deu sombra, ao fugir do compromisso, havia secado, e isso já serviu de motivo para irritar-se com Deus e desejar a morte. Em resumo, azedou intensamente a vida por uma coisa de nada.
            Muito particularismo religioso de nossos dias revela-se muito parecido com esta espiritualidade do espelho que moveu a Jonas. Ele não suportou a hipótese de que Deus era misericordioso com seus declarados inimigos, os estrangeiros de Nínive. Ele mesmo perdeu de vista a noção de que Deus é misericordioso pelo fechamento sobre si mesmo. Por isso, criou ideias e pensamentos desejando o mal para os outros, mas, ambicionava muitos benefícios em nome de Deus.
            Como Jonas muitas pessoas cristãs acham que a ação de Deus precisa encaixar-se necessária e precipuamente em favor do interesse que ela cultiva em torno da demonização de tudo quanto não gosta.
            Deste desvio do foco fundamental da finalidade de cultivo espiritual, decorre a tentação de cultivar piedades que não levam a fazer nenhuma experiência da bondade de Deus. Ao mesmo tempo, tampouco deixa que os membros da comunidade expressem seu estado de alma diante de Deus.
            A espiritualidade do espelho, ilustrada no procedimento de Jonas, nos remete a admirar a espiritualidade dos primeiros cristãos, que despertavam encantamento intenso e profundo pelo seu modo de ser e de rezar em tempos extremamente adversos e difíceis.

4.5.1 – Efeitos da espiritualidade do espelho


            A espiritualidade do espelho produz um primeiro efeito muito marcante na condução da vida cristã, que o Papa Francisco denominou de Alzheimer espiritual: é uma progressiva diminuição da faculdade espiritual que leva a ignorar toda a história da salvação e o encontro com Cristo, e que faz com que pessoas da Igreja se esqueçam do encontro com Deus. Esperam coisas grandiosas e sensacionalistas e perdem a sensibilidade de constatar que, tudo quanto vem de Deus é extremamente simples e objetivo.
            A espiritualidade do espelho faz com que muitas pessoas, convencidas de serem pessoas de muita fé, corram atrás de consultórios, psicólogos, terapeutas, videntes, benzedores e as incontáveis terapias para problemas existenciais, mas, não rompem o fechamento sobre si mesmo.
            Por outro lado, tendem a comercializar os dons gratuitos de Deus e se envolvem num mundo de “bobeirinhas subjetivas”. Acham tempo para tudo, menos para meditar, rezar e ler algo edificante. Por fim, sucumbem na vivência rala de valores universais, sem quaisquer propósitos que movam a práticas para o bem de outras pessoas.
            Por fim, a espiritualidade do espelho leva a uma construção de muros e de hábitos ao redor da própria pessoa e ela acaba ficando escrava do que produz com as próprias mãos e enche sua vida com manhas, caprichos e paixões. Na verdade. A espiritualidade do espelho rouba a capacidade do bom e saudável senso de humor.
            Segundo Marígina Bruno, diversos indícios apontam o avanço do Alzheimer espiritual:
a)     Perda da relação pessoal com Deus e a sensação de que sequer precisa desta relação;
b)    Tudo começa a parecer rotineiro e obrigatório;
c)     Os pecados já não doem mais porque a pessoa se acostumou com eles;
d)    Ausência de nutrição com a Palavra de Deus;
e)     Vontade de esconder, reduzir e ocultar a fé para não ser discriminado.

            Neste endurecimento mental as pessoas acabam se transformando a si mesmas em máquinas de práticas e não em pessoas de Deus. Por isso, facilmente lhes aflora o complexo de eleitos, em que o narcisismo as leva a olhar somente para a sua pessoa e sequer percebem imagem de Deus em pobres e necessitados.
            O que sobra desta espiritualidade, é “cara de enterro”, como dizia o Papa Francisco, porque o rosto extravasa melancolia e o trato com as outras pessoas se caracteriza por rigidez e arrogância, sem alegria e sem humor saudável.


4.5.1 – Venenos que matam a espiritualidade cristã


            O místico alemão, Anselm Grün salientou no livro Reconciliar-se com Deus (Vozes, 2014) que existem dois venenos que matam a espiritualidade: fanatismo e fundamentalismo.
            O termo fanatismo vem de Fanum, que significa entusiasmo arrebatado, mas cego para a realidade. Decorre do medo de ameaças internas e externas relacionadas a fantasias megalomaníacas de grandeza e poder, geralmente violentas.
            O fanatismo tende a ocorrer em pessoas tímidas, inseguras e de baixa auto-estima, que escondem sua pequenez em fantasias de grandeza. Criam inimigos e os perseguem, sem o menor respeito a regras existentes.
            As pessoas fanáticas também tendem a abusar da religião para confirmar sua própria grandiosidade, e são extremamente “cabeçudas” para admitir que existam ideias melhores que as suas. Por isso, tornam-se pregadoras do ódio e, facilmente, incitam outras pessoas a se tornarem agressivas contra seus pressupostos inimigos.
            Como estas pessoas tem medo de tudo quanto é novo e diferente do que pensam, costumam projetar sua própria obscuridade sobre outras pessoas que elas consideram como inimigas. Geralmente veem diabo em tudo e em todos e querem constituir-se em grandes vencedoras do diabo.
            O outro veneno, tão ostensivo em nossos dias, é o do fundamentalismo. Procede da palavra “Fundus”, que significa fundamento, solo. Geralmente é constituído por pessoas fanáticas que desejam colocar a fé sobre os verdadeiros fundamentos. O problema é que não estabelecem o fundamento sobre fatos históricos e concretos, mas o fundamento que eles mesmos pensam e gostam.
            Pelo fato dos fundamentalistas enxergarem apenas o seu fundamento, tendem ao rigorismo e acabam confundindo Deus com os seus próprios dogmas sobre Deus. Na prática tendem para um interesse meramente ideológico.
            Como os fanáticos, os fundamentalistas farejam diabo em tudo e em todos; e acham que as outras pessoas estão sendo controladas pelo diabo. Por outro lado, escondem seu lado pessoal sombrio de muitas dúvidas, medos e inseguranças, mas projetam sobre os perseguidos, toda limitação que não enxergam na sua vida pessoal e real.
            Em consequência disso, os fundamentalistas geralmente incidem em quatro traços muito evidentes e marcantes:
a)     Moralização – vivem repetindo o que as outras pessoas precisam fazer e exploram o sentimento de culpa;
b)    Absolutização – Apresentam Deus como se eles soubessem com absoluta exatidão o que Deus quer para os outros (mas não para eles). É necessária uma relativização quando alguém prega, usando a terceira pessoa dos verbos: “você deve fazer isso”; “façam isso e mais aquilo”...
c)     Demonização – fazem uma leitura doentia do ser humano, porque nada está bom. Eles, no entanto, pregam seu próprio pessimismo.
d)    Banalização – apresentam um Deus totalmente desvirtuado como se fosse um mero “vovozinho querido”, já sem capacidade de ajudar algo nas experiências humanas reais.
            Pelo que se evidencia, esta espiritualidade passa longe das interpelações do Evangelho.

CAPÍTULO VI

ESPIRITUALIDADE DA PEQUENEZ INTERIOR

            É caminho difícil como descer uma ladeira íngreme, com muitas pedras, valetas e empecilhos, que impedem deslocamento suave, fácil e agradável.
            Implica em descer ao mundo interior e lidar com as próprias paixões, com as fantasias e com as ideias obsessivas que seguidamente voltam a perturbar a mente.
            O difícil caminho da descida rumo ao interior de si mesmo tende a assustar e a despertar mecanismos de desvio, como o da distração, o do pavor de ter que confrontar-se com as fragilidades, e com os tantos outros traumas e desencantos que se cruzam no fundo do poço do próprio psiquismo.
            Ali, geralmente afloram em abundância as muitas experiências fracassadas, as decepções que feriram os sentimentos, os erros reais que foram cometidos, além das muitas opções feitas na vida que não levaram aos resultados almejados.
            Lidar com as feridas da própria existência facilmente leva a uma constatação: mesmo com todas as próprias forças engajadas, ajeitar-se consigo mesmo, e com os próprios problemas é tarefa que excede as forças pessoais.
            Emergem os sentimentos de fragilidades, carência de algum amparo, de algum interlocutor, enfim, de algum “TU” a mostrar que, mesmo tendo um longo e penoso o caminho pela frente, pode-se alcançar a meta que o próprio coração aponta: a de sentir-se bem, e a de ser capaz de amar e de se sentir amado.
            Segundo o renomado místico alemão Anselm Grün, quando se consegue entrar neste abismo de desconforto, que é o mundo interior, já se entra no pátio de Deus e, ali mesmo, já se pode bater na sua porta.
            Basta bater, pois, Ele se encontra ali no meio deste mundo frágil, e, disposto a ajudar para que se consiga conviver com o marasmo que se produziu na intimidade dos sentimentos.
            Por isso, o caminho de cultivo da “espiritualidade para baixo” leva a rezar, não as conquistas e as grandes façanhas, as espertezas, as astúcias, bem como as obras e ações exteriores, mas, exatamente, o desconforto com os fracassos e com as feridas que continuam a produzir mal-estar.
            Esta espiritualidade que mexe no baixo mundo dos porões do interior é, precisamente, a que leva a rezar, a fim de que a ajuda de Deus permita que se integre o passado ferido e, mesmo com um pouco de complacência, que se aprenda a ajeitar-se com ele, a fim de torna-lo fonte de brincadeira e de bom humor.
             Em outras palavras, é aprender a reconciliar-se com as próprias paixões e aprender a escutar os ecos das raivas que ainda ecoam nos sentimentos feridos.
            Então, emerge o evidente: a carência da misericórdia de Deus e a necessidade de perdoar o passado mal integrado. Neste avanço pode-se liberar o fluxo do que eleva no gosto pela vida.
            Por vezes este caminho difícil implica em desvencilhar-se de outra pessoa que é trazida negativamente para dentro deste mundo das paixões.
            Esta pessoa, mesmo distante ou já falecida, pode ser reavivada na memória e manter-se incrustada no melhor espaço do “eu” para causar um grande mal.
            Então, vem a difícil tarefa de dar a mão a esta pessoa, declarada inimiga para que deixe de ser adversária ferrenha ou perseguidora sem tréguas.
             Mais do que bater o olho no olho desta pessoa, torna-se necessário estender a mão à ideia que se produziu a seu respeito e que, interiorizada, continua a ser repetida, constantemente, de modos a reavivar os irritantes sentimentos desagradáveis ou de mágoa de tempos longínquos e que já não deveriam causar qualquer mal-estar.
            Aprender a viver com os limites, com todos os defeitos de fábrica das nossas predisposições para certas doenças, permite encontrar verdadeiros tesouros nestes vasos de barro amontoados no mundo interior, mas, que contêm joias preciosas do valor da vida e que enfeitam os traços peculiares e genuínos da personalidade.
            Esta consciência é altamente recriadora e permite perceber que diante das portas que se fecharam outras, já podem estar escancaradas para acolher ou se encontram acessíveis para serem abertas e permitir novas descobertas da grandeza de Deus, independente da constatação desta frágil pequenez da condição pessoal.
            Afinal, quem não deseja estar na proximidade de uma pessoa amiga, próxima, acolhedora e cortês? Uma pessoa assim produz um clima humano completamente distinto da rispidez de uma pessoa mal humorada, arrogante e pretensiosa.
            É por isso que a prática do seguimento de Jesus Cristo abre um vasto caminho para uma aproximação da vida sensível e de bons sentimentos. Conhecer e aprofundar-se no contexto da vida de Jesus, contido na Bíblia, oferece esta inspiração valiosa para a espiritualidade cristã.
            A possibilidade de atualizar o modo de ser de Jesus Cristo, com toda a riqueza do seu empenho para reverter manifestações da maldade humana, que causaram pobreza, exclusão, injustiça e exploração, remete automaticamente a desejar que algo similar a Jesus Cristo produza os mesmos bons efeitos nas fragilidades humana dos dias atuais.
            Assim, a espiritualidade cristã se presta para ampliar uma grande variedade de virtudes humanas, que, por sua vez, requerem empenho e cultivo ao longo de toda a vida.
            Como os efeitos da espiritualidade cristã não dependem apenas de desejos interesseiros com imediatas e mágicas soluções torna-se praticamente necessário:
a)     Cultivar com zelo a fé a fim de que possa aproximar-se da sensibilidade de Jesus Cristo;
b)    Cultivar momentos regulares de oração para melhor inserir-se no jeito de Jesus Cristo, com progressiva capacidade de amar mais e tornar-se melhor com as pessoas;
c)     Cultivar momentos de sensibilização para captar melhor e interpretar de forma mais adequada a realidade envolvente.
d)    A leitura orante da Palavra de Deus também alarga a capacidade de ver as coisas com a sensibilidade de Jesus Cristo, a fim de que o coração fale mais alto do que os preconceitos, que as posturas categóricas, rígidas e inflexíveis, que tanto atrapalham as relações humanas.

            Enfim, a prática da espiritualidade cristã      tem uma importância fundamental para a qualidade da saúde. Além da força curativa das motivações boas, a espiritualidade cristã também oferece uma visão mais completa em que a sintonia com o cosmos, com a sociedade e com o “todo” da existência fornece uma leveza maior do que o ar carrancudo e rancoroso que tanta gente manifesta neste mundo de Deus.
            A espiritualidade cristã igualmente facilita amar a vida e facilita a criação de laços de amizade e de solidariedade. Devolve o sentimento de prazer de constatar que algo feito de bom para alguém, sempre retorna com o agradável sentimento de “cesto cheio”.
            Outro aspecto não menos importante da espiritualidade cristã é o de alargar a capacidade de indignar-se, de perdoar e de alegrar-se mais com o que está à frente da vida, e, sem remoer tanto as mágoas e as perdas do passado.
            A espiritualidade cristã, em suma, expande a vida: abre o leque de novas possibilidades, aumenta os anticorpos de defesa e reforça o complexo quadro de energias regenerativas.
            Quando alguém se sente nas mãos de Deus, evidentemente se torna mais saudável porque alarga o sentido do existir: assim, potencializa a inteligência, a libido, o afeto e tantas outras dimensões da vida.
            A espiritualidade cristã é, portanto, valiosíssima para elevar o nível da autêntica liberdade, porque ao invés de atrelar à submissão e dependência de controles religiosos, leva ao que o apóstolo Paulo já escrevia à comunidade dos Gálatas: “vós fostes chamados à liberdade, irmãos!” (5,13).
            Por outro lado, a espiritualidade cristã fornece consistência para que o testemunho da vida cristã permita que muitas pessoas experimentem um Deus bom e, não aquele inventado dos medos, dos pavores, das vinganças, dos castigos e dos exércitos de maus espíritos...


CAPÍTULO VI

ESPIRITUALIDADE DA MISERICÓRDIA


            Enquanto o fanatismo e o fundamentalismo constituem venenos que deterioram a espiritualidade cristã, a espiritualidade da misericórdia, que tanto se realça na boa notícia do Evangelho, desperta para a capacidade do bom samaritano que existe em nós.
            Esta espiritualidade permite que a vida se constitua numa dupla função: captar e emitir bons sinais na interação humana. Torna as pessoas, mais capazes de narrar acontecimentos, sem transformá-los num monte de fofocas. Ao invés da ação semeadora de ciúmes, invejas e de poder controlador – armas mortíferas, - incita-as a semear maior atenção recíproca. Assim, se tornam meios eficazes para lidar com a desolação espiritual de tantos momentos obscuros, de sumiço da esperança, em que desaparece até a vontade de viver, mas, no cultivo do silêncio, auscultam novas motivações para a vida.


CAPÍTULO VII


ECO-ESPIRITUALIDADE


            O termo “Eco” vem do grego, oikos, que significa casa, ou lugar onde se vive.
            Quando se pensa espiritualidade cristã, tende-se a evidenciar facilmente o lugar especial como Igreja, templo, santuário e lugares especialmente erigidos para cultivo da espiritualidade.
            Esta noção de antiga herança tende a diminuir o valor do espaço da casa onde se mora. Por isso, nosso Papa Francisco tanto insiste na “ressacralização das casas”, para salientar que a espiritualidade cristã precisa gerar um modo de relações com o corpo, com o ambiente, com a casa, e a grande casa comum (planeta) para constatar o elo de sintonia que os complementa.
            Faz-se necessário descer do plano das ideias para maior cuidado com a Terra, a fim de se chegar ao coração de um novo jeito de práticas em torno do modo de habitar, do modo de trabalhar, de viajar, de consumir, de cuidar do lixo, etc.
            Este modo integrador e integrado implica em três focos do olhar humano: um olhar amoroso; um olhar cuidadoso e um olhar esperançoso. É um significado encantador e novo para a espiritualidade cristã, porque integra a vida à existência da Mãe-Terra e interpela para a inserção harmoniosa na sua totalidade, com as mesmas relações requeridas numa casa: cuidado e respeito.
            A eco-espiritualidade também interpela a deslocar o antropocentrismo humano, no qual a pessoa é o centro de tudo – para um relacionamento mais ético porque os seres humanos constituem parte importante do grande sistema de vida e não são seus donos, para dele fazer o que sua ambição doentia e obsessiva projeta.
            Por outro lado, esta espiritualidade alarga o dom da cooperação, tanto para diminuir a competição, quanto para salvar a interação com os múltiplos sistemas de vida que são fundamentais à  existência humana. Trata-se de uma espiritualidade que conduz ao humano profundo, que é o da generosidade, da acolhida e da mística do cuidado.
                Eco-espiritualidade, ou, espiritualidade ecológica, aponta um horizonte de esperança,             que é o de outro estilo de vida. Nele, o caminho do coração, certamente indica a possibilidade de vida mais simples, descomplicada e mais cotidiana no aprendizado do caminho de Jesus. Nele também se encontrará a mediação para uma conversão que aponta outro tipo de relação com o mundo, num sentido contrário ao da demolição promovida pela ordem econômica atual, que mobiliza os humanos na obcecada ambição pela vida consumista.
            Uma espiritualidade ecológica evidencia que Deus não age “de fora” para dentro do nosso mundo e nem sobre a natureza, mas está no meio desta profunda interdependência para uma complementariedade. A verdade ainda não está pronta, pois muito dela ainda está por se revelar.






CAPÍTULO VIII

CRISES E DESENCANTOS COM A ESPIRITUALIDADE

Mais do que honras e graus a atingir,
Esperam-se cultivadas sensibilidades,
Capazes de se enternecer sem desistir,
Diante de reais e efetivas dificuldades.

            Para quem se envereda pelos caminhos do crescimento na espiritualidade cristã, não existe uma linearidade de crescimento progressivo e nem uma experiência paulatinamente mais ampla e profunda de Deus.
            Geralmente o entusiasmo inicial não sustenta longo período de perseverança nas buscas, porque ocorre nos seres humanos um fenômeno que os prostra, quando os desejos não são alcançados.
            Quanto mais altas são as expectativas de perfectibilidade, maiores são as decepções. Como diz o ditado popular, quanto mais alto o tombo, tanto maior é o seu efeito...
            Mesmo quem se move pela profunda e reta motivação de aprofundar-se na experiência de Deus, não está isento de um desencantamento com Deus e com a vida que escolheu para ser mais feliz.
            As próprias aspirações implicam em momentos de cansaço, de apatia e de crises, sejam na vida de trabalho, na convivência ou na experiência de maior intimidade com Deus.
            Aparece, então, a sensação pesarosa, uma espécie de torpor, de ausência de iniciativas, com manifesta perda de vontade e até uma literal descrença em torno do que se escolheu como horizonte de alcance.
            Nesta secura, seja de palavra, de ação ou de capacidade de oração e de serviço humanitário, emerge a desagradável experiência da acídia.

8.1 – Acídia

         O termo não costuma ser muito usado em nossos dias, mas, o seu significado é muito conhecido, pois, uma enormidade de sinônimos é associada às suas manifestações.
            A palavra “acídia” vem do grego Kedòs, que significa cuidado. O prefixo “a” colocado antes da palavra significa negação. Assim, acídia pode conotar “o que não é cuidado”, o que é desleixado, desvalorizado... Logo emerge a pergunta: porque algo é descuidado?
            Normalmente porque não se alcançou o que se buscou com tanto cuidado. Se, por exemplo, no campo das buscas de fé, alguém deseja alcançar importantes e valiosos traços de virtude pessoal, e, ao perceber que não pratica estes traços virtuosos, fica insatisfeito consigo mesmo e se desencanta até mesmo com Deus de quem espera o alcance de valiosas virtudes.
            A palavra “acídia” também deriva do termo “ácido”, elemento químico que possui intensa ação corrosiva. Deste modo, pode conotar algo que desmancha o alcance de uma meta estabelecida.

8.2 – Acídia em tempo antigos

            Na história da Igreja católica antiga, acídia tinha outra conotação especial dentro dos itinerários da espiritualidade. Era considerada como um tempero de morbidez que acometia os monges na sua busca de perfeição em Deus.
            Era uma espécie de tédio, que causava um torpor na mente, a ponto de não motivar nada de bom nem para si e, nem para outras pessoas.
             Criava um clima de falta de iniciativas e uma ação muito negativa que boicotava qualquer boa intenção.
            Entre as muitas atribuições feitas à acídia, também se salientava que ela, costumeiramente, vinha acompanhada pela tristeza, pelo enfado, pelo torpor da mente, pela prostração de ânimo, enfim, que afastava qualquer vontade de fazer alguma coisa boa.
             Pode-se imaginar o que isso significava na vida de quem se cultivava intensamente na espiritualidade.
            De repente, sem vontade de rezar, sem vontade de participar de celebrações e eventos, sem vontade de ajudar alguma pessoa carente e necessitada...
            Como salienta o título do livro que trás pregações de São Gaspar Bertoni sobre esta realidade: “Acídia – vírus que mata o amor” parece resumir este significado religioso.
            Nos tempos antigos da Igreja católica ocorreu muita reflexão sobre esta realidade de desencantamento com Deus, experimentada pelos monges, numa certa etapa do seu cultivo de espiritualidade.
            Diversas interpretações se tornaram conhecidas para ajudar os monges a evitar o risco de cair na acídia.
            Uma destas interpretações atribuía a fonte das mazelas aos demônios. Falava-se em demônio do meio-dia, que produzia um vazio na vida do monge e lhe roubava totalmente a energia ou a força para algum procedimento edificante e bom.
            O salmo 19, já mencionava a expressão de ’demônio do meio-dia’, provavelmente, para referir-se ao tédio diante do tempo, ou seja, uma impaciência e inquietude com o próprio tempo, pois, tudo demorava muito para passar.


8.3 – Acídia – crise maior que tristeza e preguiça

            Situada num contexto de experiência religiosa, esta crise dos monges era mais profunda do que uma experiência de tristeza e preguiça, pois, levava a perceber que sua opção profunda por Deus, para uma vida intensamente produtiva do jeito de Jesus Cristo, estava sem produzir frutos.
             Por isso não convém restringir acídia à mera questão de tristeza e preguiça, que, hoje, continua a manifestar-se nas pessoas. Havia, na verdade, uma decepção com o que era intensamente desejado.
            No horizonte da experiência religiosa escolhida, os líderes animadores de monges e monjas foram refletindo e tentando entender o que causava este estado de desmanche das motivações; e, nas muitas ponderações em torno da acídia, chegaram a classificações de parentesco dos fatores que desencadeavam este mal-estar, que envolvia uma crise de aversão aos bens da vida espiritual.
            A tradição monástica, aos poucos, chegou a um consenso de que certos vícios desencadeavam a acídia. Mencionavam especialmente oito vícios: gula, luxúria e cobiça, tristeza e acídia, vaidade e orgulho.
            Gula, luxúria e cobiça constituíam vícios atrelados aos desejos; enquanto que, tristeza, ira e acídia dependiam de estados negativos, pessimistas do humor ou do espírito; e, a vaidade e o orgulho, estavam diretamente relacionados ao campo da ambição de uma pessoa.
            Neste contexto, a acídia – também chamada de demônio do meio-dia - atacava da quarta à oitava hora e dava a impressão de que o sol se movia com excessiva lentidão, ou, até mesmo, que estivesse parado.
            Esta impaciência com o horário, com o lugar onde se estava, e, com a atividade estabelecida a ser feita, antecipava as evidências de futuro: nada mais poderia trazer algum consolo ou gratificação.
            Dali decorria a motivação para fantasiar em torno de outro lugar e de outros modos de vida que, eventualmente, poderiam ser mais fáceis e gratificantes.
            Se a fantasia de outro lugar e de outras experiências causava desconforto com o real da vida vivenciada, havia também mais mecanismos que, segundo Cassiano, causavam este tédio e esta dificuldade de avançar no rumo da vida interior: vontade de dormir, de fugir ou de entrar em agitação intensa.
            Esta distração dispersiva para qualquer coisa distinta do mundo envolvente era entendida como ação demoníaca, que esvaziava um monge do vigor daquilo que ele queria ser como religioso.
            Evágrio Pôntico considerava, por isso, que acídia era um pecado mortal. Portanto, entrar em estado de acídia significava entregar-se à influência diabólica. E a fim de assegurar imunidade diante das rondadas do diabo, necessitaria o monge evitar, em primeiro lugar, os oito vícios, acima mencionados.
            Um pouco mais tarde, Gregório Magno, já menos drástico, situava estes oito vícios no contexto dos pecados capitais e a acídia passou a ser considerada como equivalente a tristeza. Na verdade, era algo muito mais envolvente do que mera tristeza.
            Neste quadro de cosmovisão muito distinta da visão de mundo da atualidade, todo o esforço para evitar a acídia era desencadeado com a finalidade de ajudar os monges a alcançarem resultado positivo na busca da experiência de Deus.
            Disto decorreram muitos alertas a respeito do que ajudaria a ficar distante dos efeitos da acídia, como, por exemplo, afastar-se das filhas e dos parentes da acídia.
            As filhas da acídia seriam: 1 - Tibieza – negligência com as coisas religiosas; 2 – Divagação – ocupar-se com devaneios e coisas supérfluas; 3 – Pusilanimidade -  aumentar muito os problemas e torna-los maiores do que as soluções; 4 – Desespero – perder o controle de si mesmo diante das dificuldades;  5 – Náusea – aversão às coisas espirituais e arrependimento pela escolha feita; 6 – Rancor – especialmente contra alguém que faz coisas boas.
            Além dos cuidados preventivos diante das seis filhas da acídia, recomendava-se vigilância atenta com os parentes da acídia: tepidez, busca de prazer, sonolência, ociosidade, protelação, lentidão, desânimo, descontrole, superficialidade, secura espiritual, descontentamento, amargura e tagarelice exagerada.
            Igualmente se alertava que a acídia se desencadeava no ambiente de três características: amor próprio, negligência e desobediência.
            O amor próprio tornaria a pessoa muito soberba; a negligência implicaria em quedas muito seguidas e constantes no humor diante dos objetivos que se queriam alcançar; e, a desobediência, aparecia como efeito das manifestações anteriores e levaria a duas consequências: hedonismo e nihilismo, que, por sua vez, levariam ao relativismo, ao secularismo, ao agnosticismo e ao ateísmo.

8.4 – Acídia e seu alcance

            Do que acima se destacou, a acídia, certamente, não se relacionava a uma intervenção sedutora do diabo, nem, tampouco, a mero fruto de pecado mortal, mas, envolvia desejos projetados, e, possivelmente, com excesso de idealização.
            Na verdade, acometia pessoas que visavam elevação espiritual – homens e mulheres – mas que, a certa altura do cultivo, se sentiam incapazes de vivenciar o alcance espiritual que almejaram.
            Esta doença paralisante, com certeza, está muito manifesta e evidente, nas pessoas que nos mais variados caminhos de espiritualidade tentam elevar-se a Deus para serem mais felizes e, no meio do caminho constatam a irrelevância dos esforços empreendidos e o não alcance das metas projetadas.
            Tal constatação perpassa também a experiência moderna de vivenciar a ação evangelizadora da fé cristã, e leva a paralisias, a resistências, à preguiça e ao desleixo na atividade evangelizadora.
            A perda da dedicação e da disponibilidade para os outros é compensada pelo olhar focado na própria pessoalidade.
            Assim, vivencia-se hoje o mesmo pecado antigo: resiste-se à interpelação de Jesus Cristo que remete aos outros, e, as expectativas da Boa Notícia do Evangelho também podem causar um verdadeiro torpor diante do que conviria ser transmitido e testemunhado a respeito do amor de Deus.
            De fato, a acídia, ainda hoje, aponta o caminho contrário ao da caridade, da alegria e do encantamento.
            Embora não seja tão costumeiro falar-se em acídia, fala-se de algo equivalente, como depressão, “Burn Out”, desgaste afetivo psíquico, ou, em queimar-se por dentro com todas as coisas boas que ali se produziram.
            Emerge, então, uma sensação de indolência, e, de desconforto diante de qualquer empreendimento bom que possa ser feito.
            Se em tempos antigos da Igreja ocorreu excesso de idealização da santidade e da busca de perfeição em Deus, continua-se, em nossos dias, com o mesmo excesso de idealizações, mas, sob uma orientação não religiosa.
            O sistema social induz a sonhar com perfeição e plena felicidade através do consumo de bens e de objetos.
            Neste itinerário, a santidade, deslocada, produz estados similares ao da acídia como nos tempos iniciais da Igreja. E que indicação terapêutica poderia ser apresentada para não subsumir na acídia?
            Como tantos monges sucumbiram diante dos ideais que escolheram - como os melhores para a felicidade em Deus, - hoje, incontáveis seres humanos, entram em acídia diante da idealização que o sistema econômico apresenta sob a rigidez cruel de um itinerário que frustra no alcance da meta estabelecida.
             Seja na imagem do diabo do meio dia, da noção de pecado mortal ou capital, vivencia-se a experiência de fracasso, precisamente em torno da plenitude que mais se busca.
            Se já não são santos padres e santas mães do deserto a propor regras austeras e rígidas para o alcance de elevação espiritual, o moderno sistema de vida submete a um itinerário mais cruel e frustrante.
            Por outro lado, a fé em Deus não exime ninguém de experiências de vazio, de tédio, de tristeza e de preguiça; e, mesmo os prazeres mais desejados revelam-se altamente provisórios e passageiros, porquanto, o não alcance da satisfação dos desejos, sejam eles sexuais, afetivos, humanitários ou de realização pessoal, vão acarretando sensações de vazio, que, por sua vez, podem levar a depressões e tantos outros estados doentios.
            Ainda hoje, as estimulações multiplicadas à exaustão, para preencher o tempo com felicidade (através de gastronomia, de festas e festanças, de jogos, de viagens, de turismo religioso ou de qualquer outra natureza...) podem intermear-se de acídia em que se perde o cuidado de si mesmo e a alegria de cuidar de outros.
            Com tudo quanto os tempos recentes produzem para evitar o vazio (analgésicos, antidepressivos, psicotrópicos, diversões, festas, eventos, comidas e bebidas, drogas, odores e sabores...) o vazio, no entanto, mistura-se neste caminho. Se já não é chamado de diabo do meio-dia, nem de pecado mortal, ele, todavia, ronda e rouba até o foco religioso do que mais se quer vivenciar, pois, envolve decepção e frustração diante do bem extraordinário, considerado divino, para sentir-se agraciado pelo bem-querer deste amparo superior.

EPÍLOGO

            Com o rico aporte da espiritualidade cristã, pode-se trilhar o caminho dos discípulos de Jesus Cristo. Como fez com o mendigo da piscina de Siloé, Jesus não efetuou nenhum ato mágico, nem hipnótico, nem tampouco induziu a um estado de transe; não fez cura, nem libertação, nem concessão de vantagem e nem sequer jogou o mendigo na piscina, segundo seu desejo, alimentado há décadas.
            Jesus simplesmente indicou um caminho com a cama: pega sua cama e ande! Cama significa o mundo passado, com aquilo que deu certo na infância e nos mecanismos de ajustamento do bloco familiar, mas que, na vida adulta, não produz mais os mesmos efeitos. Muitas manhas, artimanhas, diante de acontecimentos que não deram certo para o alcance de estratégias usadas, apontaram o caminho da cama.
            Frustrações, sentimentos de desamparo e expectativas de afeto, ao lado daquelas dores de mágoas, facilmente induzem alguém a ficar de cama.
            Cama é refúgio tão bom e tão agradável, mas, a permanência prolongada na cama atrofia os músculos e pode tornar uma pessoa dependente e incapaz de andar...
            Além disso, a cama leva a remoer todos os dias os mesmos sentimentos. E quando estes são de ressentimento, de raiva ou de culpa, o psiquismo acaba não despertando nada melhor do que comprar atenção e afeto.
            Aquele mendigo interlocutor de Jesus, socialmente sustentado e rotulado ao nível da mendicância pelos que o acompanhavam há trinta e oito anos, não foi convidado, - pelos religiosos de fervor e zelo que por ele cruzavam, - para sair deste nível de dependência.
            Os religiosos da época nem mesmo se moveram por um singelo e simples gesto caridoso de jogá-lo na piscina e atender seus protelados anseios.
            O ambiente religioso daquele lugar social transformou o mendigo de afeto no papel social de acomodar-se a viver de migalhas dos religiosos, e o transformou em legítimo mendigo.
            Hoje incontáveis mendigos integram as sociedades. Alguns são pedintes de esmola para sobreviver, mas, muito outros são meros mendigos de afeto, movidos pelo sentimento de que merecem dó, compaixão e bajulação.
            Dependentes, submissos e atrelados a opiniões alheias, sobretudo, de lideranças de comunidades cristãs e de orientadores espirituais, não andam na vida, porque esperam soluções de pessoas iluminadas e poderosas. São como lanternas sem bateria.
            Andar com a cama equivale a lidar com as próprias limitações, com feridas expostas que muitas vezes precisam receber um curativo, a fim de permitir que, simultaneamente, se possa ajudar melhor a outras pessoas em dificuldades, e que carecem, geralmente, de muito mais do que de curativo. Elas carecem de sentido para além do que vivenciam.
            Por isso, a espiritualidade da vida cristã permite que a preciosidade do jeito de Cristo, através da fragilidade do vaso que é o dom da existência, mas, com os devidos curativos, ajudar a curar outras fragilidades de pessoas que necessitam de gestos de compaixão e de alguma palavra de esperança.
            A recomendação de Jesus ao mendigo foi a de que andasse com a cama.
            Assim, quando alguém se atrela à cama, ao mundo da lamúria e ao da prostração, - porque não alcançou o desejado, - acaba refém da cama (ao passado) e não ultrapassa o mundo cinzento das lamentações.
            O estímulo para andar com a cama, fez com que o mendigo andasse e retornasse com razões para louvar a Deus.
            Isto é muito diferente do que sessões de louvor meloso, modalidade sutil de compra de afeto e que leva líderes espirituais a almejar multidões de seguidores; mas, com o fito de constituir um fã-clube de bajuladores, que apenas despertam atrelamentos à “cama” da dependência servil, sem andar com a sua cama (com os problemas produzidos no passado).
            A espiritualidade cristã pode ainda hoje alargar duas dimensões que necessitam relacionar-se: a do gratuito amor de Deus e a da contingência e da fragilidade da condição humana.
            Para esta relação tornar-se complementar, não basta o extremismo da entrega resignada à espera de soluções da parte de Deus ou de outras pessoas; e, nem, tampouco, o outro extremo de um “eu” isolado, que conquista o que deseja, e que pretende colocar Deus no seu bolso como moeda de barganha.
            Como joia mantida em vaso de barro, a preciosidade da existência humana está envolvida pela hipersensibilidade alérgica a incontáveis manifestações capazes de despertar reações desproporcionais, impróprias e inadequadas para o bem viver com o mundo interior, e, permitir que dele possam emergir motivações boas para conviver, tanto com a constatação dos estragos no invólucro de marcas afetivas, quanto com as incontáveis situações que atrapalham a convivência normal do dia a dia.
            Enfim, evidencia-se que a espiritualidade cristã requer a condição de humilde caminhante.
            O seguimento de Jesus Cristo, na condição de discípulo aprendiz pela vida afora, levará a integrar o passado com um olhar de gratuidade perante o que foi superado, e, com uma sensibilidade aguçada para auscultar melhor as vozes, as luzes e as interpelações de Deus, em meio às tantas dúvidas, impasses e desencontros que se mesclam na nossa rica consciência humana.

           



Espiritualidade

Vaga no significado,
E evasiva no legado,
Expressa um ensejo,
Do humano desejo.

Não nega o material,
Porque arrosta o real,
E enleva todo finito,
Com seu contradito.

É entrega ao inefável,
Da comunhão amável,
Do meio circundante,
E da beleza diletante.

Não é espiritualismo,
Tampouco espiritismo,
Mas nela está o dom,
De um itinerário bom.

No caminho ascético,
Ao avesso do eclético,
Seu olhar apaixonado,
Capta humano legado.

Nem fuga do humano,
Ou do seu desengano,
Contempla todo real,
E lhe aponta luz vital.


ECO-ESPIRITUALIDADE

Sob o gosto das rezas intimistas,
Fervem sortilégios triunfalistas,
Mas, somem olhares amorosos,
E procedimentos esperançosos.

Cuidado, termo sumido da fala,
Do discurso que tanto propala,
Progresso e avanço ilimitado,
Acaba proliferando um enfado.

Na esperança do agir mágico,
De um Deus neste rol trágico,
Espera-se que mude o estrago,
Feito por um desumano frago.

Esqueceu-se da espiritualidade,
Imbricada com nossa realidade,
Biológica e também sociológica,
Numa inter-atuação pedagógica.

A espiritualidade sem ambiente,
Sem a casa de lar compadecente,
Perde o vínculo com a Mãe-Terra,
E inserção na riqueza que encerra.

Sem o cuidado e devido respeito,
Este antropocentrismo no peito,
Centraliza o indivíduo no mundo,
E torna o entendimento iracundo.

Sumido todo relacionamento ético,
Conta apenas o ostensório estético,
Que, em nada valoriza a cooperação,
Mas, absolutiza a lei da competição.

Assim, a espiritualidade para o além,
Que ao nosso sistema tanto convém,
Não une e em nada reúne no cuidado,
E nem se abre ao diferente inusitado.

Produz fé intimista, nada acolhedora,
Que obcecada numa ação demolidora,
Quer ajuda divina com generosidade,
E desequilibra o planeta à saciedade.




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