Pe. João Inácio Kolling
PRÓLOGO
CAPÍTULO I – O QUE É, AFINAL, UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
CAPÍTULO II – PARA QUE SERVE UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
CAPÍTULO III - ATALHOS QUE SE CONFUNDEM COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
3.1– Esoterismo
3.2– Yoga e meditação
3.3– Religiosidade
CAPÍTULO IV – FORMAS PARCIAIS DE ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
4.1 - Espiritualidade
que cega
4.2–
Espiritualidade do “EU” conquistador
4.3 - Espiritualidade de Ascensão
4.4– Espiritualidade midiatizada
4.5 – Espiritualidade do espelho
4.5.1 – Efeitos da espiritualidade do
espelho
4.5.2 Venenos que matam a
espiritualidade cristã
CAPÍTULO V – ESPIRITUALIDADE
DA PEQUENEZ INTERIOR
CAPÍTULO VI – ESPIRITUALIDADE DA MISERICÓRDIA
VII – ECO-ESPIRITUALIDADE
VIII – CRISES E DESENCANTOS COM A
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
8.1– Acídia
8.2 - Acídia em tempos
antigos
8.3 – Acídia - crise maior que tristeza e preguiça
8.4– Acídia e seu alcance
Epílogo
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Prólogo
Nossa
pequena abordagem sobre o tema requer, de imediato, um esclarecimento:
a)
Porque percalços?
Como tantos bons
estados de ânimo, de bom humor e de vitalidade com coisas boas e desejadas, a
busca de uma espiritualidade cristã também envolve uma dupla dimensão: de um
lado, envolve expectativas de rendimentos, de vantagens e de proventos; já por
outro lado, o desejo do alcance de uma qualidade, condição, acréscimo ou
vantagem em algo a ser adquirido, implica em algumas evidentes dificuldades,
com variados estorvos e transtornos.
b)
Um triângulo amoroso
Espiritualidade cristã não é coisa de
outro mundo, ou além do alcance humano.
O Papa Francisco salienta na
Exortação Gaudete et Exsultate, que espiritualidade, santidade e alegria
envolvem uma mesma realidade no seguimento de Jesus. Para segui-lo, precisamos
crescer na santidade, que, por sua vez, equivale a uma espiritualidade dinâmica
para produzir alegria na vida. Não a alegria persuasiva das aparências, mas,
uma alegria que emerge do interior, e, que sempre advém de outras pessoas. Não
é uma conquista pessoal. É algo manifestado que repercute espontaneamente e que
eleva a momentos de exultação ou de explosão repentina de alegria. Basta
lembrar que Isabel exultou de alegria quando percebeu a chegada da sua prima
Maria, que veio servi-la...
Segundo a referida exortação do
Papa, a alegria não nos livra de muitas e variadas dificuldades, nem de
sofrimentos não desejados, mas é uma realidade que brota da esperança do que
Jesus Cristo nos assegurou. A promessa do Reino, feita por Ele, torna-se razão
de alegria.
c)
Espiritualidade e missionariedade.
A espiritualidade cristã certamente
não despertaria interesse algum se ela não apontasse para muitos bons proventos
e para largas vantagens às pessoas interessadas em alcançar um nível de fé aprofundado,
e, capaz de propiciar experiências gratificantes e amplamente proveitosas para
a vida.
Por isso, um importante medidor da
espiritualidade é o do efeito de obras e serviços, - costumeiramente assimilados
como ação missionária, - ou seja, uma espiritualidade cristã não pode ser mera
busca subjetiva, mas deve repercutir simultaneamente em outras pessoas, como um
fermento que melhora as interações humanas.
No entanto, a
busca desta espiritualidade também pode levar a estorvos e a desvios, através
dos atalhos oferecidos, ou, de espiritualidades parciais que não levam ao jeito
de Jesus Cristo. Até mesmo as que levam ao jeito dele não estão isentas da
acídia, ou seja, podem envolver decepções diante dos resultados das
expectativas alimentadas.
Especialmente
quando se idealiza muito a espiritualidade e quando lideranças prometem muitos benefícios
do que querem passar a seguidores, surge a natural e evidente frustração diante
da constatação do não alcance do que fora prometido.
Nosso tempo vem sendo marcado por muitas
misturas sincréticas de diferentes tipos de espiritualidade que, facilmente, se
confundem com a espiritualidade cristã.
Elementos de outras formas religiosas não
cristãs e até de pensamentos filosóficos, podem, ao invés de facilitar o
alcance de um nível satisfatório e eficaz de espiritualidade cristã, obstruir o
alcance desta tradição católica.
Desta
situação ambígua decorrem afirmações que até chegam a ser contraditórias:
existem pessoas que se dizem ser de profunda espiritualidade, mas, objetivamente,
manifestam-se mesquinhas, rígidas, autoritárias, intransigentes e com ares de
superioridade.
Por outro lado, escuta-se com frequência
pessoas afirmando que sua espiritualidade as leva a receber tudo quanto pedem
de Deus, o que, no mínimo, é intrigante: será que Deus privilegia algumas
pessoas, e lhes concede, de forma paternalista e dependente, tudo quanto lhe
pedem?
Ao mesmo tempo, não faltam pessoas queixosas
que vivem se lamentando a respeito de que Deus não lhes ajuda em nada. Dizem
que rezam fervorosamente, que fazem novenas, participam de eventos religiosos
especiais de cura e libertação, mas, que Deus não lhes demonstra a mínima
atenção para o atendimento do que pedem.
Ainda outro
perfil de pessoas se considera muito espiritualizado, mas desanda em
manifestações fanáticas, fundamentalistas e descontroladas, a ponto de mostrar
indícios doentios.
Tais pretensos
“gurus” acham que entendem tudo, tanto do céu quanto da terra, mas, apresentam
conselhos sem consistência e sem graça para qualquer situação, e não percebem
que sua vida se torna progressivamente mais mesquinha.
Em razão destes mal-entendidos em torno
da espiritualidade cristã, optamos por apresentar algumas noções elementares e gerais
que, eventualmente, poderão despertar algumas motivações para um discernimento
em torno de um caminho que alargue a vida através da espiritualidade cristã.
Trata-se de
uma abordagem de modestas noções introdutórias.
Como a espiritualidade cristã
envolve realidades muito diversas e, não necessariamente canalizadas para o
mesmo fim, convém que o tema dos percalços da espiritualidade cristã estimule a
escolha de um caminho que se aproxime de Jesus Cristo, e, - o que mais importa,
- que as ações e obras do agir de cada dia possam aproximar-se mais Dele do que
de quaisquer outros caminhos atraentes.
Quando se
deseja cultivar uma espiritualidade cristã, sempre importa que ela não se
confundida com meras piedades ou com práticas exteriores, embora estas possam
constituir-se em ricos meios para alguma “experiência hierofânica”, isto é, podem
levar a produzir condições capazes de fazer experimentação de algo divino,
sobrenatural, indizível, através de fatos e de coisas muito pequenas, simples e
ordinárias da nossa vida.
De uma
espiritualidade cristã espera-se, em sentido muito geral, que ajude a lidar com
problemas pessoais e com os que se manifestam no entorno da lida de amizade, de
trabalho e de lazer.
A busca de forças
que ajudem a mudar os rumos da vida, ao lado do encantamento, tende a aumentar medos
e mecanismos de fuga ou de abandono. Por isso, contata-se uma frágil
persistência de muita gente de boa vontade, que tenta aprofundar-se na
espiritualidade cristã, mas, abandona sem demora a iniciação diante das
dificuldades que aparecem.
Este texto é
constituído de oito pequenos capítulos. No primeiro, aborda-se mais o aspecto
conceitual em torno do que é uma espiritualidade cristã. No capítulo II
pondera-se sobre a serventia da espiritualidade cristã. O capítulo III salienta
alguns caminhos atraentes que parecem encurtar o tempo e o espaço diante do que
se deseja alcançar com o cultivo da espiritualidade cristã, especialmente o
esoterismo, a Yoga, a meditação e a religiosidade.
O capítulo
IV apresenta algumas direções da espiritualidade cristã como caminhos atraentes,
mas, que não necessariamente levam ao fim desejado, como a espiritualidade que
cega; a espiritualidade conquistadora, a espiritualidade da ascensão
idealizada, e a espiritualidade midiatizada, a espiritualidade do espelho. Na sequência, realçou-se a espiritualidade
para a interioridade das fraquezas, das tentações e das paixões que atormentam
o psiquismo e o mundo subjetivo: é a espiritualidade da pequenez interior. Na
sequência, no capítulo VI é realçada a espiritualidade da misericórdia, e o
capítulo VII apresenta um indicativo para a eco-espiritualidade.
No capítulo
VIII, enfatizam-se algumas decepções e frustrações que geralmente acometem
pessoas que querem avançar num bom caminho da espiritualidade. Trata-se do que
os orientadores de monges e monjas da Igreja antiga abordavam como acídia.
Para eles, a
acídia envolvia muito mais do que tristeza e preguiça, pois, designava o tédio
com as coisas de Deus diante da constatação de que os ideais muito retos e bem
elevados, não produziam a qualidade da vida almejada.
Por fim, no
epílogo, destacou-se um elemento fundamental para um aporte de inovação na
espiritualidade cristã: “andar com a cama”, que desencadeia na vida um processo
de cura.
CAPÍTULO I
O QUE É, AFINAL, ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
A palavra “espiritualidade cristã” deriva do termo hebraico ‘Ruach’ com o
significado de espírito, sopro, hálito, vento, fôlego, etc., como expressões
simbólicas para expressar a força que anima a vida de uma pessoa e a impulsiona
e a sustenta na busca de algo valioso com vistas a uma experiência
satisfatória.
A tão conhecida
oração do Pai Nosso destaca que “seja feita a Vossa vontade”, fornece uma
primeira dimensão central da espiritualidade cristã, pois, implica na busca da
vontade de Deus para o agir humano. Este aspecto também indica a perspectiva
ampla de que não se “faça a minha vontade”.
Assim, a
espiritualidade cristã constitui a escolha de uma direção na vida em que se
procura crescer diariamente na aproximação dos traços genuínos, peculiares e
originais de Jesus Cristo.
Sintonizado
com o espírito de Jesus Cristo, quer-se conduzir a vida sob o mesmo bom
espírito de Deus que moveu a vida deste que chamamos de redentor.
De maneira
diferente do que praticar exercícios piedosos diários para o alcance de um
estado de graça, a espiritualidade cristã procura, na afinidade com a vida de
Jesus Cristo, um alargamento da qualidade de vida, a fim de encontrar
equilíbrio no trabalho, na atividade lúdica, no repouso e na interação de lidas
com as outras pessoas.
Deste modo,
a espiritualidade impregna o conjunto da vida para alargar uma qualidade de
crescimento na humanidade (capacidade de ser profundamente humano e elevar o
sentido de ser humano).
A “espiritualidade
cristã” está esvaziada de referências da tradição em variadas práticas
religiosas, - nem sempre vinculadas a Jesus Cristo, - e que, mesmo assim, são
propagadas como sendo espiritualidade.
Em primeiro
lugar, confunde-se espiritualidade com “espiritualismo”, conceito de origem
filosófica para designar o que é do campo da mente humana.
Sob esta
conotação, de que o espiritual é o que é distinto da matéria, pode-se cair na
tentação de restringir o entendimento da espiritualidade a tudo quanto não é
material e, então, se incorre num dualismo de pensar que espiritualidade cristã
seja abstração das coisas materiais da terra e uma fixação nas coisas divinas e
transcendentes do nosso dia-a-dia.
Segundo a
filosofia antiga os sentidos humanos captam apenas as coisas sensíveis e
materiais, enquanto que, o intelecto, captaria o que não é sensível, como os
valores e as coisas culturais.
Ao se
confundir com a espiritualidade cristã esta noção de cunho filosófico,
significa buscar coisas não materiais, ou, os valores da cultura, de modos que,
o plantar, colher, construir, consertar e praticar gestos de amizade ficam
diminuídos em favor da noção de viver de algo abstrato.
Outro
aspecto é o de entender espiritualidade como equivalente a “espiritismo”,
corrente religiosa que visa perfeição do indivíduo através da captação do que
espíritos ou almas de antepassados, desencarnadas e vagantes, seriam capazes de
comunicar e revelar a médiuns e facilitar reencarnações para estágios mais
elevados de qualidade humana.
Um terceiro
aspecto tentador de desvio da espiritualidade cristã é o de identifica-la como
piedade popular, e que, facilmente pode afastar de Jesus Cristo, devido a um
cultivo que não leva a crescer no discipulado de Jesus Cristo.
Diante
destes riscos de desvio de entendimento da espiritualidade cristã, convém
enfatizar que, fundamentalmente, a espiritualidade cristã consiste em seguir
Nosso Senhor Jesus Cristo e o conjunto dos seus gestos e ensinamentos.
Tal
seguimento visa sensibilizar-se ante o grande bem-querer do amor de Deus e que
convida ao seu sentimento de amparo.
Esta
elevação da grandeza perante a bondade de Deus, por sua vez, visa santificação
no seguimento e na imitação de Jesus Cristo.
Na busca de
crescimento da espiritualidade cristã aparecem com facilidade algumas
distorções equivocadas, como a busca de soluções intimistas, ou devoções
meramente contemplativas; ou de práticas especulativas; ou de escrupulosas
defesas de argumentações teológicas e doutrinárias em torno de detalhes
exteriores; ou de busca de satisfações verticalistas de ambição meramente
pessoal.
Uma
espiritualidade cristã certamente implica num bom senso de viver de modo
saudável, equilibrado e que amplia a capacidade de uma cosmovisão humanitária,
respeitosa e que se integra para harmonizar e alargar o conjunto da vida neste
planeta.
Por outro
lado, mais do que praticar momentos e exercícios rotineiros de piedade a
espiritualidade cristã precisa contemplar a totalidade da vida que apresenta
muitos desafios tanto ecológicos, quanto éticos, sociais e humanitários.
Ocorrem mazelas de toda natureza e que requerem gestos de compaixão.
Deste modo,
a espiritualidade cristã sempre remete a fazer algo que ajude a transformar a
realidade envolvente para melhores níveis de entendimento, o que, por sua vez,
implica em missão, não a de espetáculos, muito barulho de mídia, de chavões e
de intensos emocionalismos, nem mesmo das categóricas verdades declaradas como
exercício de um poder dominador, mas, como um modo de viver a fé cristã a fim
de encontrar no Cristo como caminho,
verdade e vida...
Em suma, é
importante que se entenda que espiritualidade cristã não constitui um “estado
de vida”, mas, um “modo de vida”.
Mesmo que a vida cristã esteja diretamente
afetada por valores culturais, tradicionais, geográficos e ambientais, ela pode
desencadear, neste meio, um modo de colocar em prática uma série de valores e
de ações humanitárias que caracterizam a busca do modo de ser de Jesus Cristo.
Mesmo sendo
uma questão pessoal, íntima, não se restringe ao campo meramente intimista e
sempre implica em um jeito peculiar e original de lidar com as pessoas, com a
natureza e o meio-ambiente.
Por isso, a
espiritualidade cristã estabelece estreito vínculo com a humanidade de Jesus.
Quando
alguém busca plasmar a sua vida com a de Jesus de Nazaré precisa, necessariamente,
acolher a sua profunda humanidade. Ele rezou em muitos momentos da sua vida;
procurava lugares ermos e silenciosos para melhor se sintonizar com Deus; lutou
contra males do seu tempo que causavam sofrimentos e injustiças; encantava-se
com crianças e ambientes; revelava compaixão e misericórdia; apontava um
sentido para o existir humano...
CAPÍTULO II
PARA QUE SERVE UMA
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ?
Diante das
muitas desilusões com buscas de espiritualidade que envolve idolatria ou
egolatria de certos gurus afamados que, de forma geral, submetem muitas pessoas
e as tornam altamente dependentes, convém salientar suscintamente sobre o
alcance da espiritualidade cristã.
Do que se
sabe da Bíblia, não ocorre nenhuma menção de que Jesus Cristo tenha desfrutado
e abusado da fragilidade emocional de pessoas que o procuraram.
Mesmo
mergulhado numa cultura machista, ele nunca se valeu da perspectiva ascendente
de quem está totalmente acima do bem e do mal.
Embora visto
como salvador, curador e mestre, pelo seu modo de pensar, ele não transformou a
atenção às carências humanas em meio para o engrandecimento de si mesmo, mas,
promoveu as pessoas ao melhor das suas virtualidades. Não se valeu de fanatismo
pelo que executava, e nem mesmo se arrogou ares de solenidade no entorno com
tronos, retratos e muita publicidade.
Outra
característica destacável dos procedimentos de Jesus Cristo foi a do
distanciamento total da espetacularização dos seus gestos. Mostrava-se
discreto, humilde e desprendido no serviço humanitário.
Em outras
palavras, Jesus amava intensamente, através do serviço gratuito, da ajuda
efetiva aos pobres e doentes e no apontar dignidade para as condições de
trabalho e de vida.
Todo este
bom ”espírito” que moveu Jesus, vinha do profundo, do peculiar e do seu
irradiante mundo interior, e, despertava encantamento e uma curiosidade
imediata: de onde vem esta capacidade esperta e boa para ajudar as pessoas no
que mais precisam?
Os textos
bíblicos indicam que Jesus cultivava uma intimidade profunda com a totalidade
da vida para harmonizar-se com o amor maior de Deus.
Os cristãos,
como discípulos, são chamados a aproximar-se deste mesmo itinerário de Jesus
Cristo. Dali decorre a importância de cultivar-se para que os traços que o
tornaram tão peculiar, também se alarguem no modo de buscar sintonia com a
totalidade do amor de Deus e o consequente modo de olhar e de tratar as pessoas
com extraordinária bondade, compaixão, dignidade e bem-querer.
Os textos
dos evangelhos tornam-se, deste modo, uma referência para cultivar a capacidade
progressiva dos traços mais marcantes de Jesus Cristo.
Afinal, quem
não deseja estar na proximidade de uma pessoa amiga, próxima, acolhedora e
cortês? Uma pessoa assim produz um clima humano completamente distinto da rispidez
de uma pessoa mal humorada, arrogante e pretensiosa.
É por isso
que a prática do seguimento de Jesus Cristo abre um vasto caminho para uma
aproximação da vida sensível e de bons sentimentos. Conhecer e aprofundar-se no
contexto da vida de Jesus, contido na Bíblia, oferece esta inspiração valiosa
para a espiritualidade cristã.
A
possibilidade de atualizar o modo de ser de Jesus Cristo, com toda a riqueza do
seu empenho para reverter manifestações da maldade humana, que causaram
pobreza, exclusão, injustiça e exploração, remete automaticamente a desejar que
algo similar a Jesus Cristo produza os mesmos bons efeitos nas fragilidades
humana dos dias atuais.
Assim, a
espiritualidade cristã se presta para ampliar uma grande variedade de virtudes
humanas, que, por sua vez, requerem empenho e cultivo ao longo de toda a vida.
Como os
efeitos da espiritualidade cristã não dependem apenas de desejos interesseiros
com imediatas e mágicas soluções torna-se praticamente necessário:
a)
Cultivar
com zelo a fé a fim de que possa aproximar-se da sensibilidade de Jesus Cristo;
b)
Cultivar
momentos regulares de oração para melhor inserir-se no jeito de Jesus Cristo,
com progressiva capacidade de amar mais e tornar-se melhor com as pessoas;
c)
Cultivar
momentos de sensibilização para captar melhor e interpretar de forma mais
adequada a realidade envolvente.
d)
A
leitura orante da Palavra de Deus também alarga a capacidade de ver as coisas
com a sensibilidade de Jesus Cristo, a fim de que o coração fale mais alto do
que os preconceitos, que as posturas categóricas, rígidas e inflexíveis, que
tanto atrapalham as relações humanas.
Enfim, a prática da espiritualidade
cristã tem uma importância
fundamental para a qualidade da saúde. Além da força curativa das motivações
boas, a espiritualidade cristã também oferece uma visão mais completa em que a
sintonia com o cosmos, com a sociedade e com o “todo” da existência fornece uma
leveza maior do que o ar carrancudo e rancoroso que tanta gente manifesta neste
mundo de Deus.
A espiritualidade cristã igualmente
facilita amar a vida e facilita a criação de laços de amizade e de
solidariedade. Devolve o sentimento de prazer de constatar que algo feito de
bom para alguém, sempre retorna com o agradável sentimento de “cesto cheio”.
Outro aspecto não menos importante
da espiritualidade cristã é o de alargar a capacidade de indignar-se, de
perdoar e de alegrar-se mais com o que está à frente da vida, e, sem remoer
tanto as mágoas e as perdas do passado.
A espiritualidade cristã, em suma,
expande a vida: abre o leque de novas possibilidades, aumenta os anticorpos de
defesa e reforça o complexo quadro de energias regenerativas.
Quando
alguém se sente nas mãos de Deus, evidentemente se torna mais saudável porque
alarga o sentido do existir: assim, potencializa a inteligência, a libido, o
afeto e tantas outras dimensões da vida.
A espiritualidade cristã é,
portanto, valiosíssima para elevar o nível da autêntica liberdade, porque ao
invés de atrelar à submissão e dependência de controles religiosos, leva ao que
o apóstolo Paulo já escrevia à comunidade dos Gálatas: “vós fostes chamados à
liberdade, irmãos!” (5,13).
Por outro lado, a espiritualidade
cristã fornece consistência para que o testemunho da vida cristã permita que
muitas pessoas experimentem um Deus bom e, não aquele inventado dos medos, dos
pavores, das vinganças, dos castigos e dos exércitos de maus espíritos...
CAPÍTULO III
ATALHOS QUE SE
CONFUNDEM COM ESPIRITUALIDADE CRISTÃ
Nas buscas da
experimentação de Deus,
Incontáveis são os caminhos apontados,
Que, como as exterioridades de
fariseus,
Deixam os
anelantes bem desorientados.
O termo “espiritualidade” é de uso recente e moderno. O cristianismo, ao
longo da história usou outros termos equivalentes ao significado que hoje se dá
à palavra espiritualidade.
Em épocas se
falou de Teologia Espiritual; em ascese (elevação da vida); em mística (como cultivo
da fé para perceber sinais da grandeza e da bondade de Deus). No entanto, o
significado mais comum e fácil de ser entendido, foi o de que espiritualidade
significava “vida cristã”.
Sob este sentido, ressalta-se algo muito
significativo: espiritualidade não é um privilégio raro de alguém, mas, todos
os batizados ao seguimento de Jesus Cristo são convidados a se aprofundar nas
características centrais e marcantes de Jesus Cristo.
Espiritualidade
com o significado de vida cristã coerente constitui uma noção muito valiosa e
simpática para o entendimento da espiritualidade nos dias atuais.
Paulo
apóstolo, na carta aos Coríntios (3,10) já destacava que muitas tentações
emergem na vida humana, mas, que o cultivo de fidelidade a Deus não permitiria
que as tentações se tornassem maiores do que a capacidade de lidar com elas, de
suportá-las e de sair delas. Paulo lembrava, assim, a dimensão dinâmica da
espiritualidade cristã.
Atualmente
vive-se a tentação de deixar a noção de “vida cristã” de lado e a de se
enveredar por significados mais vagos, evasivos e imprecisos.
Um
significado, que muito se difunde, equivale à identidade de grupos religiosos que
querem ser portadores do espírito de Jesus Cristo com capacidade superior aos
demais grupos religiosos.
Tendem a
centralizar a afirmação da identidade do grupo com a suposição de que seu caminho
é o melhor para equilibrar a lida com os próprios limites.
Da raiz
judaico-cristã herdamos um sentido de espírito e de espiritualidade como
capacidade de auscultar o que vem de Deus. Por isso, o desejo de captar o
Espírito de Deus, que os cristãos denominaram de Espírito Santo, não pretendia
negar a materialidade da condição da vida, mas, impregná-la da presença do amor
maior de Deus.
Com o passar
dos anos, desencadearam-se outros modos de assimilar a espiritualidade.
Primeiramente,
o caminho mais valorizado era o do martírio para imitar Jesus Cristo em seus
sofrimentos; com as grandes perseguições aos cristãos foi amadurecendo, aos
poucos, o ideal da vida ascética e da virgindade.
Talvez pela
influência grega, que cultivava uma ascética de afastamento do mundo material,
procuraram captar, pela reminiscência (recordação antiga) as coisas puras do
mundo de Deus, pois, os seres humanos estariam na Terra para expiar alguma
maldade, feita lá no céu, quando estavam no âmbito de Deus.
A
virgindade, por sua vez constituía uma realidade mais ampla do que evitar
relações genitais. Como em outras manifestações religiosas antigas, significava
a abertura da totalidade da existência ao acolhimento de Deus para Nele
tornar-se fecundo em grandezas para a vida humana.
A partir de
Orígenes, que foi um influente pensador cristão, mas, marcado pelo pensamento
grego, introduziu-se a conotação contemplativa à espiritualidade e contemplação
significava elevar-se acima das paixões e fraquezas humanas para alegrar-se com
coisas divinas.
Tempos
depois, o enfoque dado à espiritualidade cristã apontava para a profunda
humanidade de Jesus e convidava as pessoas a fazer algo similar através da
atenção esmerada aos sofrimentos, com serviços de caridade e desvelo à vida de
pessoas que passavam por carências e necessidades variadas.
A partir do
século cinco, com o surgimento dos monastérios (grandes casas com monges ou
monjas), foi se alargando uma nova síntese para o significado de
espiritualidade.
Consistia na fuga do mundo cheio de problemas
e de dificuldades para a convivência comunitária, a fim de morar em lugares
afastados, solitários e que permitissem cultivar uma intimidade profunda com
Deus, através da clássica noção de trabalhar, rezar e ler muito.
A espiritualidade ficou conhecida pela
expressão latina de “Ora et Labora” (Reza e trabalha).
Depois de
mais uns séculos, já na Idade Média, assimilou-se a espiritualidade mais pelo
horizonte psicológico, no qual se deu primazia aos laços afetivos, cordiais e
de boa vizinhança. Deixou-se de lado a busca de elevados níveis espirituais de
cunho mais intelectualizado e mental.
Nesta
perspectiva, São Francisco de Assis tornou-se referência deste novo modo de
vivenciar a espiritualidade cristã, e, que foi sintetizada na expressão “paz e
bem” e na bela oração da paz, atribuída a ele, que ressalta a harmonização do
ser humano com as outras criaturas e com o cosmos.
O jeito de
São Francisco alastrou-se amplamente na Igreja e a renovou profundamente para
melhor. Suplantou o modo clássico de austeridade, resignação, renúncia e
abnegação. Por isso, sua perspectiva mais psicológica da espiritualidade ecoa
com bela repercussão na atualidade da Igreja católica.
Os seres
humanos tem a peculiaridade de selecionar valores e projetos. Possuem,
igualmente, a capacidade de escolher caminhos que possam preencher suas
expectativas espirituais. Mesmo que vivam bombardeados por informações e
veiculação de mundos religiosos, tendem a escolher a partir de referenciais
conhecidos por alguém que lhes é simpático.
Desta pessoa
de confiança aceitam-se argumentos e indicações sem muito senso crítico e sem
muita desconfiança da seguridade dos dados que ela apresenta. Inicialmente não
se percebem seus interesses ideológicos, sua visão mais aberta ou
fundamentalista, e passa-se a assimilar o que ele nos sugere.
Deste modo,
muitas orientações para a espiritualidade cristã insinuam algo muito propenso
aos desejos: encontrar superação, êxito e prosperidade.
Sob o
encantamento da Teologia da prosperidade, fica-se induzido a precisar, mais do
que os outros, de graças, de bênçãos e de curas para que se possa sentir muita
bênção e muito aconchego da parte de Deus. E assim, vai-se ao caminho da
espiritualidade da mesma forma como uma pessoa capitalista ambiciosa parte para
novas conquistas.
Tal foco
tende a amenizar e até a abafar qualquer necessidade de corresponsabilidade
pelo bem comunitário ou do bem comum, pois, importa que um “eu” conquistador
dobre Deus para que lhe seja mais favorável do que vem se manifestando aos
demais.
Assim, a barganha
do poder pessoal, tende a comprar tudo, até o céu, e a valer-se de chantagens e
de tentativas de corromper Deus para favores especiais e avantajados.
Por outro
lado, mesmo que a busca seja humilde, reta e honesta, o caminho não costuma ser
similar ao de pistas bem sinalizadas e belamente ornamentadas. Trata-se muito
mais de um tateio numa estrada que, a cada pouco, apresenta atalhos, entradas e
saídas sem sinalização, que tornam insegura a trajetória.
Quando se
anda num lugar desconhecido e aparece insegurança a respeito do caminho que
conduz ao lugar onde se deseja chegar, sempre aparece simpática a indicação de
um caminho de atalho.
Parece que o
atalho aproxima em menos tempo do alvo desejado. Além disso, os informantes dão
tantas explicações que despertam a imaginação para uma rota maravilhosa, e, já
na primeira estrada de desvio, não mencionada, volta-se ao velho impasse.
Na busca da
espiritualidade, que é este abrir-se para algo novo, que, de um lado atrai, mas
que, de outro, traz insegurança e até incertezas sobre o real alcance do novo,
os indicativos que encurtam a distância, geralmente apresentados com detalhes
minuciosos, constituem um alívio simpático, porque levam a antecipar a
proximidade de quem se deseja visitar. Assim, também existem itinerários de
cultivo, que, no entanto, confirmam aquele ditado popular de que o atalho,
normalmente, faz o caminho tornar-se longo, difícil e imprevisível.
A busca da
sensibilização para sentir e captar o Espírito de Deus, em vez de aprofundar o
caminho das Sagradas Escrituras, leva a atalhos de esoterismo, meditação e
yoga, religiosidade, etc.
Isso não
significa que estes caminhos não levem ao fim desejado. Eles abrem perspectivas
benéficas, mas podem não constituir o caminho mais seguro para aprofundar-se na
espiritualidade.
Um primeiro
aspecto que requer uma atenção especial é o do esoterismo.
3.2 – Esoterismo
O termo
‘esoterismo’ tende a ser entendido a partir da sua raiz grega ‘esotero’, com o
significado do que está dentro, ou, do que está no interior. Existe também a
palavra grega ‘exotero’ (com ‘x’ no lugar do ‘s’) que significa o contrário, o
que é exterior e acessível a todos.
Feita esta
distinção, ainda resta um pequeno alerta de que esoterismo não é a mesma coisa
do que espiritualidade. Pode, no entanto, estar misturado e até confundir-se
com a espiritualidade.
O esoterismo
geralmente está relacionado com tradições filosóficas e religiosas antigas,
reveladas como novidades e segredos para a vida plena, mas, apenas repassados
para algumas poucas pessoas que são escolhidas ou às que mostram muito
interesse pela aquisição de conhecimentos falados ou escritos destes gurus ou
líderes.
São despertadas pela vontade de entrar neste
encantado mundo de novidades e de mistérios ocultos. Por isso, facilmente se
mesclam elementos do ocultismo.
No caminho
do esoterismo cria-se uma espécie de mistério em torno de realidades ocultas,
que somente os iniciados teriam capacidade de captar ou acessar.
Por isso,
cria-se uma graduação, como a de escada ascendente para os iniciados e eles
somente poderão aprofundar-se no conhecimento das realidades ocultas ou
divinas, subindo progressivamente estas etapas em que segredos da vida lhes são
revelados, aos poucos, e na medida em que avançam no discipulado.
O peculiar
do esoterismo é que os mais iniciados afirmam que conseguem contatos com o
sobrenatural ou com leis e segredos do universo, e que, segundo eles, não
seriam alcançáveis pelas outras pessoas comuns. Destes segredos, revelados, aos
poucos, e somente para algumas pessoas que fazem a iniciação, estariam em
condições de alcançar um sentido mais profundo para a vida e as coisas que a rodeiam.
As outras pessoas não seriam capazes de captar estas realidades superiores.
Há,
portanto, um pressuposto no esoterismo a respeito da possibilidade de captar
segredos e mistérios raros, apenas para quem segue os passos de um mestre, guia
ou guru.
Além de
aspectos importantes que podem melhorar a qualidade da vida com este
seguimento, este caminho também pode envolver alguma malandragem e magia, a fim
de permitir aos líderes esotéricos a possibilidade de elevar-se socialmente
acima dos demais através da incorporação de elementos de curandeirismo e
mistura de elementos de diferentes religiões e filosofias.
Tal processo,
chamado de sincrético, facilmente abre caminho para especulações um tanto fantasiosas,
sem comprovação real, objetiva e empírica ou prática daquilo que se sustenta e se
aponta.
A tentação
de alguém elevar-se diante dos membros do seu grupo de relações através de
acessos diretos e ocultos aos segredos divinos ou da natureza é muito grande em
nossos dias.
Os que se
dizem iniciados, insistem na sua superioridade, mediante treinamentos,
exercícios, leituras e práticas de ritos, alcançados por meio de condições
especiais, mas que acabam misturando ritos mágicos para obtenção de forças
ocultas.
Mesmo em
comunidades cristãs muito religiosas, certos membros atribuem a si mesmos ares
especiais de superioridade, porque se acham portadores de poderes divinos como
os de cura e libertação, de exorcismo, de línguas e de vidência ou pré-cognição
do que vai acontecer.
Neste
assunto, facilmente apelam a segredos de práticas religiosas e espiritualistas,
mas que, na verdade, nem são coisas tão ocultas, secretas e privilegiadas.
Podemos
constatar que, numa religião também se fazem ritos e orações para um diálogo
como o divino (Deus, o sobrenatural ou o além), mas, tem um fundamento, e uma
doutrina, que é aberta e acessível a qualquer pessoa, e não somente a um
pequeno e seleto grupo de pessoas iniciadas no seguimento de uma determinada
pessoa privilegiada que se apresenta como guru.
Está ali uma
diferença básica, pois, religião e espiritualidade tendem a abrir-se ao mundo e
às pessoas, enquanto que o esoterismo cultiva segredos e os revela apenas a
pequena parcela de seguidores.
Geralmente o
esoterismo se constitui num caminho fácil e atraente para pessoas que se sentem
excluídas ou pouco valorizadas no ambiente social e que, através do esoterismo,
procuram afirmar-se socialmente com seus poderes especiais de previsibilidades,
exorcismos e expulsões demoníacas.
Todavia, a
limitação mais visível do esoterismo está no exclusivismo de poucas pessoas,
enquanto que a espiritualidade cristã é um caminho aberto a qualquer pessoa e a
todas as pessoas.
Num nível
parecido ao do esoterismo encontra-se a Yoga e a meditação. Têm raízes e
práticas milenares, mas, não necessariamente se afiguram como equivalentes à
espiritualidade cristã.
3.3 – Yoga e Meditação
Tanto a yoga
quanto a meditação constituem atividades que podem ser altamente benéficas para
a qualidade de vida das pessoas. Entretanto, existem muitas formas e muitas
orientações canalizadas para diferentes práticas religiosas e facilitam uma
mistura de crenças que pode mais atrapalhar do que ajudar na organização da
vida cristã.
Yoga e
meditação têm como objetivo geral uma harmonização de todos os campos da vida,
seja na lida diária, na consciência, na estabilidade emocional e no modo de
solidificar a personalidade.
A busca de
harmonia e de estabilidade normalmente implica em ajustar-se bem ao entorno das
pessoas e do lugar onde se vive.
Esta capacidade de dar-se bem com as pessoas
próximas, como os membros de parentesco, de vizinhança ou os de ambientes de
trabalho, sempre é muito valorizada porque gera bem-estar e bom humor na
convivência.
Uma das
suposições básicas da Yoga é a de que existe uma harmonia na organização do
universo e que, através da meditação e de exercícios de concentração, uma
pessoa consegue captar esta harmonia e inserir-se nesta bela organização do
cosmos.
Hoje existem
dúvidas a respeito desta suposição porque o universo pode ser visto pelo
contrário da harmonia e da estabilidade, uma vez que há uma constante mudança e
muita movimentação cruel como as forças que desfazem um planeta e criam outro;
e, mesmo se olharmos para a Terra: quanta violência e quanta morte decorrente
de vulcões, terremotos, guerras, entre humanos, entre animais e entre forças da
natureza.
A própria e
encantadora beleza de ambientes naturais revela que está cheia de
agressividades, como a da água disputando espaços com a terra, as plantas
valendo-se de tudo para sobreviver e afastar outras que ameacem sua expansão;
animais que matam para sobreviver e perseguem a todos os outros que ameaçam seu
ambiente de reserva.
Até os
múltiplos tipos de passarinhos, que tanto nos encantam pela beleza e pelos seus
maravilhosos gorjeios, demonstram agressividade cruel por conquistas de domínio
e de espaço.
Certamente é
importante uma boa sintonia com o ambiente natural que envolve a condição
humana, porque mergulhados neste mundo de lutas pela sobrevivência, - em meio a
grandes mobilizações, sejam as do ar ou dos muitos eco-sistemas de vida, -
podem complementar-se de uma forma razoavelmente equilibrada.
Isto ajuda a
perceber que, real e objetivamente, nem tudo é tão romântico e poético como
facilmente se pressupõe.
A
proximidade com pessoas e com os ambientes cósmicos certamente não é igual ao
de um monte de pedras. Estas podem estar próximas e até amontoadas, sem estarem
conectadas entre si, por algum vínculo vital, afetivo ou de sobrevivência. Entre
os seres humanos, manifesta-se carência de proximidade com outras pessoas.
Se uma pedra
tirada de um monte de pedras não afeta as demais, uma pessoa que morre, ou se
afasta por algum motivo, pode perturbar e causar impactos significativos na
organização da vida pessoal das pessoas próximas.
Os seres
humanos também carecem de relações de outra natureza e de um sentido para o que
fazem. Mesmo com as enormes diferenças de grupos humanos raciais, sociais e
culturais, ecoa um grito forte que revela necessidade de vínculos de proximidade
e de interação com outras pessoas, com animais e com plantas.
Enquanto que
uma pedra tirada de um monte de pedras não afeta as demais que estão
amontoadas, nos seres humanos, por exemplo, se um órgão não funciona bem, ele
acaba afetando diretamente os demais órgãos.
Da mesma
forma, na convivência, algum desequilíbrio, seja por doença, por tensão,
conflito ou desencontro, afeta o psiquismo e a afetividade.
Pode ferir a
auto-estima, pode causar decepção profunda e desencantamento com as coisas; e
pode mudar os projetos e as mediações para o alcance dos objetivos, em vista de
um sentido que dê razão à vida.
O físico
Fridjof Capra, afirma que o nosso corpo é uma miniatura do universo: é um
grande sistema que organiza sub-sistemas.
Assim, podemos perceber que, o mesmo alimento
ingerido e o mesmo ar que respiramos, alimenta e oxigena os diferentes sistemas
como o respiratório, o ósseo, o muscular, o digestivo, o circulatório, o
neurológico, o urinário, etc.
Cada um
destes sistemas é autônomo, mas, ao mesmo tempo está estreitamente interligado
com os outros. O sistema central, que para Capra é o emocional, permite um
equilíbrio razoável para que nenhum sistema seja prejudicado.
No entanto,
quando o estado emocional não está bem, pode algum órgão não receber bem as
necessárias enzimas ou desequilibrar o mundo dos micro-organismos que o mantêm.
Com isso, os anticorpos de defesa não conseguem evitar que um tipo tome o lugar
de outros e provoque o que chamamos de doença, infecção ou enfermidade.
Como a
consciência humana é capaz de estender-se para além do corpo, o que uma pedra
certamente não consegue fazer, meditação e yoga teriam esta função de vincular
melhor aos cosmos.
Diferentes estágios de meditação e de
exercícios de concentração ajudariam a ampliar esta consciência para uma
sintonia com a harmonia do todo, que alguns vão denominar de Deus, ou
simplesmente o divino que integra e anima estes cosmos.
Entrar em
harmonia ou em ajuste amplo com o cosmos, independente das variedades de perspectivas
religiosas, com certeza, é um caminho que pode fazer bem para as motivações da
vida.
É benéfico todo o recurso que ajude a estar de
bem com a própria personalidade, com a auto-estima, com o humor alegre e edificante.
Sem dúvida,
ajuda para que os subsistemas do organismo possam ajustar-se melhor do que
mediante um psiquismo agitado, frustrado, pessimista e cheio de ressentimentos
e mágoas.
A captação
da grandeza de harmonia, tanto no sistema orgânico quanto no psíquico, torna-se,
evidentemente, uma tarefa valiosa para viver bem.
Por isso, a
capacidade de controlar os sentidos e a mente sempre ajuda a desligar fatores
que perturbam o bem-estar e o sentimento de melhor integração na amplitude da
vida do cosmos.
Assim, como
os exercícios de relax são eficazes perante fatores que causam tensões e mau
funcionamento de órgãos, os momentos de meditação predispõem para melhor
organizar o rendimento da capacidade física, com boa oxigenação e adequação
orgânica.
A meditação
também ajuda a manter a mente mais calma e a produzir maior capacidade de
percepção de grandezas interiores, com a recriação de energias e de boas
motivações para intuir algo novo que melhore a qualidade da vida.
A mera
capacidade de amenizar os transtornos de ansiedade já constitui fator de
reconhecimento à yoga e à meditação pela função muito importante na vida:
ajudam a plenificar a vida para mais sentido e alegria de viver.
Por outro lado, melhoram a concentração para
tarefas mentais, aumentam vigor o físico e psíquico, aumentam a liberdade e
deixam as pessoas mais criativas diante da pluridimensionalidade de situações
imprevistas que seguidamente aparecem na vida.
Enfim, propiciam também um agradável
sentimento de viver a vida com maior inteireza.
No entanto,
parece que a yoga e a meditação deixam uma lacuna no que se refere à construção
dinâmica e positiva do Reino que Jesus anunciou. Este requer algo para além de
uma harmonia estanque, pois, interpela a agir no meio da organização humana,
conturbada, e conflitiva, que não apenas carece de indignação, mas, também do
embalo para elevar-se na qualidade.
3.4 – Religiosidade
Religiosidade
constitui mais um campo da vida que facilmente se mistura ou se confunde com a
espiritualidade. Geralmente a religiosidade não alcança os objetivos da
espiritualidade, porque prende pessoas a piedades e a ritos exteriores que as
acomodam e as levam a fazer sempre mais as mesmas coisas.
Uma
característica muito presente e visível da religiosidade é a do dogmatismo,
isto é, uma forte insistência em normas, regras, regimentos e apelos à
repetição de exercícios, que até esvaziam a fé porque as pessoas são levadas a
observar preceitos e detalhes de rituais religiosos que não causam mudanças na
vida, mas apenas aprofundam os hábitos e costumes.
Outro traço
marcante da religiosidade é o do sectarismo, que também está presente em outros
modos de pertença a grupos, sejam eles de cunho religioso, político, ou
meramente social.
Na verdade, o sectarismo é um fenômeno humano
que se manifesta em qualquer organização.
Sectarismo vem da palavra latina “sectare”,
que significa separar uma parte do todo. Num exemplo prático, seria como pegar
um abacaxi, cortar uma pequena parte da casca e começar a sustentar que esta
pequena parte é muito melhor do que o resto do abacaxi.
É uma tendência de formar guetos no interior
de um grupo maior de pertença. Envolve certa intuição de começar algo novo e
mais valioso para as pessoas do que aquilo que vem sendo feito e oferecido no
grupo maior.
Outra
ilustração do sectarismo, no campo religioso, é o da grande ramificação de
novas Igrejas evangélicas, e o de tantas congregações religiosas, ordens e
movimentos para a criação de grupos novos na Igreja católica, sejam de jovens,
de casais ou de interessados numa forma mais exclusivista de fazer algo
parecido, mas, muito melhor do que aquilo que vem sendo feito pelo grupo
predominante.
A intenção
de querer oferecer algo melhor do que os outros oferecem, tende facilmente para
um rigorismo em torno de algumas práticas, o que leva muitos se afastar, sem
demora, da pertença ao grupo ou à comunidade, e iniciam a formação de outros
grupos, ou saem para procurar algum com o qual mais se identificam.
Isto gera uma grande migração religiosa e
também uma rivalidade acompanhada de intensa propaganda e de marketing para
atrair maior número de membros ao novo grupo.
Ao lado do
rigorismo para agregar mais membros, o sectarismo na religiosidade leva a
muitas afirmações categóricas. É ‘assim porque é assim’ e ninguém pode
questionar nada.
Nas
expressões categóricas também são muito comuns aquelas já conhecidas formas de
tratamento diretivo, como: faça isto, feche os olhos, ponha a mão no coração,
diga isso a Deus...
No fundo, é
uma forma que infantiliza as pessoas, mesmo adultas, para condições de
submissão. Constitui tática sutil de dominação e de imposição a partir dos que
estão no comando do grupo.
Há um ditado popular que ilustra este
mecanismo: quanto mais fraco for o argumento a ser apresentado, tanto mais se
apela aos gritos, aos rompantes, aos gestos patéticos e enfáticos, que, com os
floreios da oratória, visam dominar os membros ouvintes.
A
religiosidade também pode ser constatada pela busca um tanto obsessiva de
grandes feitos e obras. Nesta propensão materialista em torno de algo
impactante, como obras, eventos e grandes concentrações, facilmente os que
muito apelam a uma espiritualidade superior, acabam mesmo esfriando o fervor da
fé, porque insinuam demais na execução de orações, de tarefas e atividades
programadas.
Ao lado
desta exteriorização, a religiosidade também tende para a centralização do
barulho e da agitação.
Muito grito
e muito exagero no volume do som refletem que a aspiração maior é a de conseguir
alargar o número de adeptos.
É por isso
que podemos assistir a tanta extravagância em celebrações religiosas, onde o
mais importante é a ascensão de quem anima o grupo.
Dali também decorre a promoção de muitos
eventos ostensivos que, na argumentação, são para Deus, mas que, efetivamente,
visam o engrandecimento dos promotores.
Ainda outra
perspectiva marcante da religiosidade é a da concepção meramente
antropocêntrica, isto é, o fim são conquistas humanas de um grupo ou de uma
organização e não o que se almeja como mundo mais integrado no amor de Deus.
Assim,
criam-se normas para os outros e alargam-se orientações para piedades, que precisam
ser executadas nos mínimos detalhes exteriores.
Como se pode
observar, a religiosidade apresenta um alto potencial de alienação. Ao invés de
alargar direitos e condições dignas, desloca o foco das atividades para muitas
obras e eventos que não aproximam da experiência de Deus.
CAPÍTULO IV
FORMAS PARCIAIS DE ESPIRITUALIDADE
CRISTÃ
Nas buscas da experimentação
de Deus,
Incontáveis são os caminhos apontados,
Que, como as exterioridades de fariseus,
Deixam os
anelantes bem desorientados.
Se a
comparação da busca de espiritualidade cristã, feita ao caminho e seus atalhos
pode ofuscar, a clareza em torno de um caminho, rápido e seguro, para aproximar-se
mais de Deus, pode também efetuar algo parecido diante dos muitos caminhos
conhecidos e que, não necessariamente, levam a níveis mais aprofundados de
espiritualidade.
Além dos
caminhos variados e das paisagens muito diversificadas, que podem distrair e
desviar o foco, muitos detalhes podem mudar o foco almejado e trazer dúvidas, além
de incertezas capazes de atrasar e de inviabilizar as expectativas alimentadas.
Como
espiritualidade implica em busca pessoal e dinâmica, é possível que alguns
caminhos frustrem e sequer levem ao destino almejado.
Mesmo a
motivação profunda de querer orientar-se para Deus, pode desviar-se da efetiva
aproximação, porque a distração com rótulos ideológicos e com indicativos do
melhor percurso se confundem com outros pedidos secundários de quem, em troca,
quer carona para outro endereço, ou, pede outro favor mediante a informação
fornecida. Assim, a necessidade de pedir informações a todo instante para
outras pessoas, desvia do programa estabelecido com as melhores esperanças.
No caminho
do discipulado de Jesus Cristo, também não se está livre e isento de dissabores
e de muitas decepções. Por isso, o cultivo da vontade de ser melhor e de ser
mais humanitário, a exemplo de Jesus Cristo, requer uma disciplina.
Momentos de
silencio, de meditação e de escuta do que se passa nos sentimentos mais
profundos, são certamente fundamentais para o avanço no caminho da
espiritualidade.
Do mesmo jeito que um deslocamento
através de um caminho já conhecido pode trazer imprevistos e surpresas, tanto
agradáveis e prazerosas quanto desconfortáveis e decepcionantes, pois, pode um
caminho de espiritualidade, defrontar-se com imprevistos e vacilações que
dificultam a segurança no caminho indicado por Jesus Cristo.
Ainda que o
caminho escolhido se apresente seguro, implica em lidar com o humor para que a
viagem não se torne um pesadelo.
A não
integração dos sentimentos perturbadores pode distrair e atrapalhar a viagem.
Assim, a
espiritualidade do “eu pecador” que quer elevar-se à grandeza de “Cristo
salvador” requer empenho regular.
Nas buscas
de aprofundamento da espiritualidade cristã torna-se valiosa a sensibilidade em
torno das expressões empáticas dos que indicam caminhos, quando estes realmente
manifestam sentimento de valor à pessoa.
Esta
capacidade de amor empático, de quem realmente quer ajudar, seja a de sentir a
inquietação alheia, a dúvida, a incerteza, quanto de valorizar os grandes
anseios, é muito valiosa para o êxito do caminho.
4.1 – Espiritualidade
que cega
Na Bíblia
católica, consta dentre os livros do primeiro testamento, o livro de Tobias que
menciona a cegueira de Tobit. Este texto não faz parte das Bíblias de Igrejas
Evangélicas.
Trata-se de
um livro, aparentemente sem maior importância, que apresenta uma história em
torno das dificuldades vividas numa família, exilada da região do norte de
Israel para a cidade de Nínive, na Assíria.
Tobit foi
homem de profunda piedade, muito reto na observância das prescrições bíblicas,
muito caridoso, humanitário, que enterrava os corpos dos judeus que morriam ali
no exílio, jogados na rua; também se notabilizava pelo zelo, pela piedade e
fiel observância dos costumes judaicos.
Casou-se com
Ana, com quem teve um filho, chamado Tobias, mas, toda esta prática religiosa e
ambiente familiar não impediu que se tornasse uma pessoa altamente insatisfeita
e lamuriosa. A culminância foi a da cegueira.
Sem dinheiro
e sem condições de trabalho, virou feito um feixe de lamúrias e passou a levar
uma vida pessimista e cheia de lamentações.
Na verdade,
o velho Tobit começou a olhar demais para o céu, e muito pouco para as coisas
da Terra. A narrativa deixa a impressão de que se tratava de uma pessoa
piedosa, mas, pessimista, a tal ponto que não via nada de bom ao seu redor.
Mesmo sendo uma
pessoa altamente piedosa, nutria uma espiritualidade alienante. Segundo o texto,
ao ficar olhando demasiadamente para o céu, caiu cocô de andorinha sobre seus
olhos e ele ficou cego.
Sem
capacidade de lidar com os problemas do dia-a-dia, e, sem satisfação com as
muitas piedades e práticas religiosas, ele, na verdade, ficou cego de sentido
para a vida, mais do que de vista, porque não acumulou ‘luz’ em sua vivência
religiosa para iluminar e contornar as dificuldades da sua vida.
Na vivência do
vazio interior, o velho Tobit foi se afundando na depressão e na perda de gosto
pela vida. Um dia apareceu-lhe uma visita especial de um amigo, que se tornou
um anjo, porque foi um intercessor em favor de novas razões para a vida de
Tobit. O amigo foi Rafael (Rafael significa que Deus cura).
O fechamento
de Tobit sobre si mesmo, cedeu lugar, pela mediação de Rafael, a uma alegria
contagiante em vista de algo novo, capaz de perceber para além do pessimismo, que
o havia esvaziado do gosto pela vida (Tob
5,10: “que alegria ainda posso ter? Estou cego e não posso ver a luz do céu; estou
mergulhado nas trevas, como os mortos que não contemplam a luz; vivo como um
morto; ouço a voz das pessoas mas não as vejo. Disse-lhe o amigo (que o atendeu
como um mensageiro de Deus naquele infortúnio): tem confiança, que Deus em
breve te curará. Ele te curará!...).
Hoje se
falaria que Tobit entrou em estado de depressão. Igualmente se pode deduzir que
a exterioridade da sua vivência religiosa não lhe deu um suporte seguro e estável
para lidar com os momentos difíceis da vida.
No entanto, graças ao humor alegre de uma
pessoa amiga, recuperou o que já havia sumido da sua existência: a confiança.
Este amigo
Rafael desencadeou o processo de saída da depressão: ofereceu-se para
acompanhar o filho Tobias a fim de ir ao país vizinho tentar reaver um
empréstimo que Tobit havia feito antes de ser levado ao exílio.
Na viagem,
algo inusitado aconteceu com Tobias, filho de Tobit. À noite, acampados na
beira do rio Tigre, ele quis lavar os pés e um grande peixe quis morder o pé.
Peixe grande
da profundeza do rio significa o inconsciente da pessoa. Quando uma pessoa está
mal integrada e sem controle sobre seu inconsciente, este pode leva-lo a fazer
coisas muito piores do que morder o pé.
Ele pode
mover a pessoa para a violência, para a tristeza profunda, para a insatisfação
e para literal incapacidade de integrar-se na convivência com os outros.
O
inconsciente desajustado pode induzir a muitos comportamentos doentios de
obsessões, rejeições, violências e, até de mecanismos de auto-destruição.
Naquele
ambiente sem graça do velho Tobit, Tobias foi perdendo o gosto pela vida, mas,
também o sentido para conquistar algo novo e diferente.
O amigo pediu que Tobias agarrasse o peixe a
fim de extrair-lhe o fel, o coração e o fígado, porque se constituiriam em
remédio muito útil. Rafael disse que o coração e o fel teriam a capacidade de
expulsar espíritos maus. O fel curaria manchas brancas dos olhos.
À noite,
Rafael sugeriu pernoitar na casa de Ragüel, um parente de Tobias e que tinha
uma filha chamada Sara, com quem Tobias poderia vir a casar-se.
Havia, no entanto, um problema: Sara teria se
casado sete vezes e terminado com a vida dos maridos na primeira noite, e,
assim continuava sem filhos. Quis suicidar-se pelo distúrbio, mas, não teve
coragem.
Na verdade, o mesmo interesse pelo suicídio
também já havia passado pela cabeça de Tobias e só não interrompeu o fluxo da
sua vida por falta de coragem.
Diante das
perguntas de Ragüel, Tobias lhe revelou que era filho de Tobit. Ragüel lamentou profundamente a informação
dada sobre a cegueira de Tobit. Na janta, festiva e animada, Tobias criou
coragem inusitada e pediu Sara em casamento.
Mesmo com a
informação do que já se sucedera nos sete casamentos anteriores de Sara, Ragüel
almejou felicidade aos dois a partir daquela noite, o que transformou o estado
de tristeza profunda de Sara em alegria exuberante.
Ainda
naquela noite Sara colocou o fígado e o coração, que Tobias trouxera, sobre
brasas.
O cheiro
teria expulsado o demônio que teria tomado conta da vida de Sara. Afinal de
contas, que demônio teria perturbado a vida de Sara?
Para os
povos antigos o fígado era considerado como o órgão responsável pelo humor.
Tristeza e melancolia, na cultura grega, equivaliam à bílis negra ou
intoxicada; e que levava a vômitos, alergias, icterícias, etc. Já na cultura do
povo da Bíblia, o fígado era considerado a sede das emoções, tais como as de
medo, ciúme e cólera, emoções que eram capazes de impedir e de abafar o brilho
da luz vital de uma pessoa.
Ainda outro
significado de fígado, é aquele que procede da língua latina, pois “Ficatum”
significava figueira. É neste contexto que podemos entender a estranha
expressão de Jesus Cristo, feita a Natanael: ‘ eu te vi sob a figueira!’. Era
como dizer: ’eu te vi ocupado em atividades boas, em torno de algo edificante e
valioso’.
Muitas
vezes, como ocorreu com Sara, esta luz motivadora da vida desaparece e, então,
aparecem mecanismos entrópicos de cegueira e de desgosto com a vida.
O trabalho do anjo Rafael, ao indicar um
sentido novo para Sara com Tobias, mostrou como um gesto simples de fígado no
seu bom desempenho, permite a agradável experiência de que ‘Deus Cura’, que é o
significado da palavra Rafael.
Sara mexeu
no segredo da bile e conseguiu livrar-se da sua profunda tristeza e,
simultaneamente, propiciou uma nova perspectiva para Tobias e seu velho pai
Tobit, que, com a aplicação do remédio, preparado por Sara, voltou a enxergar e
a viver na alegria...
O episódio
que envolveu tristes momentos na vida de Tobit, e que o levaram à cegueira, teve
uma guinada que transformou radicalmente o humor deste velho frustrado: alegria
contagiante no lugar da lamúria em torno da cegueira e do fígado azedo, ou,
como se diria hoje, cegueira do mau humor.
A pessoa
amiga, - que foi Rafael, - ajudou a mudar a cegueira de Tobit, mas, este anjo articulou,
antes disso, o entorno da vida de Tobit, porque agiu com perspicácia e bom
senso para a mudança radical na vida de Sara e de Tobias.
Este belo
resultado, decorrente da atenção humanitária de Rafael, foi fundamental para
que Tobit pudesse novamente encantar-se com a alegria, no lugar da cegueira
pessimista.
Assim, uma
espiritualidade cristã, deve sensibilizar-se com o que Deus revela na
contingência desta vida, através de tantas coisas que podem afigurar-se, tal
como a ação bondosa de algum anjo Rafael.
Espiritualidade requer atenção aos sinais
sensíveis do entorno humano que nos envolve.
Do contrário, pode-se cair na tentação de assimilar
a espiritualidade como um mero processo ambicioso de grandes conquistas.
4.2 – Espiritualidade
do “EU” conquistador
Assim como o
sistema capitalista induz a conquistar a felicidade pela superação e pelo
acúmulo de bens, ocorre sedução pela conquista, num processo similar, de níveis,
de estágios e de parâmetros mais elevados de espiritualidade.
Com isso, ao
invés de alguém se tornar melhor em gestos e nos modos de ser, preocupa-se,
eminentemente, pelo alcance de graças, de milagres, de curas, a fim de alargar
o poder pessoal e conquistador.
Deste modo,
o forte e poderoso já não é mais Deus, mas, quem quer convencê-lo e dobrá-lo
para que atenda seus pedidos e súplicas.
Na verdade,
esta perspectiva de espiritualidade, transforma a lida da perfectibilidade em
grande ocasião de negócios e de conquistas para aumentar o poder espiritual.
Trata-se de
uma espiritualidade ascendente, que deseja elevação, reconhecimento e status
diante de Deus.
Como vem
ocorrendo convencimento intenso em favor de uma sociedade de consumo corre-se o
risco de entender algo parecido com a espiritualidade cristã. Quando o fascínio
indica a espiritualidade consumista, não interessa muito o empenho para superar
certos efeitos negativos dos transtornos psíquicos, nem mesmo preocupação com
as dificuldades das pessoas do entorno, porque o estímulo consumista leva a pensar
obstinadamente nas metas, nas estratégias e nos prazos estabelecidos para o
alcance da realização dos desejos pessoais.
Com esta
atenção cegamente focada para o consumo de níveis ou quadros de maior
felicidade, acaba não sobrando muito espaço para as questões sociais, e, nem tampouco,
para as interpelações do Evangelho de Jesus Cristo. Importa mais o alcance do
desejo pessoal e o seu devido reconhecimento.
A
espiritualidade conquistadora centraliza o desejo de felicidade, mas, leva a
buscar a instância divina para ampliar o poder de auto-afirmação e, para tal
fim, importa quem facilita os interesses de forma simpática. Assim, muitas
pessoas santas são veneradas com maior intensidade, de acordo com seus supostos
créditos de fornecimento das presumidas graças que estão sendo esperadas. Como
nas lidas políticas, quer-se do campo da espiritualidade um meio de obtenção de
vantagens.
Sob este
perfil de espiritualidade, tem-se diante da vida uma imensa oferta de propostas
de êxito para o alcance dos segredos espirituais.
Na facilitação
dos atalhos, esperam-se acessos impregnados de magia e de intimismo a fim de
favorecer larga prosperidade material.
Nesta ótica, não atrai a proposta de um
eventual caminho de solidariedade, a ser penosamente construído, e nem tampouco
uma cordialidade capaz de gestar experiências humanas gratificantes.
Na
perspectiva conquistadora também não interessa eventual caminho de
espiritualidade que ajude a lidar com as próprias fraquezas.
Esta dimensão da vida tende a ser abafada e ocultada
pelas couraças de auto-defesa em função do privilégio das metas a serem
conquistadas.
Com tal
quadro, impõe-se a espiritualidade egocêntrica do sujeito isolado que quer ser
feliz, mas que, em nada se compromete pela elevação da justiça e de condições
mais dignas para tantos seres vítimas de espoliação.
O resultado
desta espiritualidade conquistadora equivale ao que se costuma observar no macaco
que mete a mão na cumbuca de nozes e enche tanto a mão que não consegue mais
tirá-la e sequer desconfia que se pegasse uma ou duas nozes, poderia
tranquilamente comer muitas e saciar sua fome.
A
espiritualidade na perspectiva bíblica cristã interpela para uma capacidade que
melhore o nível de solidariedade com as pessoas do entorno.
Por isso, é valioso
o lembrete do escritor francês Marc Auger relativo à importância do empenho pela
boa interação com outras pessoas: alguém somente consegue aumentar sua
auto-estima e o bem-estar consigo mesmo, quando se dá conta de que se amplia o
número de pessoas que lhe manifestam sentimentos de estima e de bem-querer.
4.3 – Espiritualidade de ascensão
Muitas
pessoas que desejam crescer na espiritualidade cristã partem de uma questão
desviada do foco: inquietam-se em torno do que querem saber e conhecer, mas,
não se perguntam como poderiam ser melhores na convivência com os outros e com
o mundo frágil das próprias limitações.
O risco
desta espiritualidade é o do cultivo excessivo de ideais.
Muitas
pessoas vivem de idealizações em torno do que querem atingir e dos níveis de
santidade que querem viver.
Até se
envolvem com belos sonhos de heroísmo e de virtudes de grandiosa santidade com
vistas a sentir elevação através de admiração e encantamento por parte de
outras pessoas.
Esta
perspectiva de espiritualidade traz o risco de produzir ‘espiritualidade
amouca’, isto é, leva as pessoas a não viverem seus próprios sentimentos, mas,
movem-se por intensa paixão pelo que lhes foi repassado por certos gurus.
Por isso, são capazes de brigar, de perseguir
e de odiar, simplesmente para defender ideias alheias e ofender muitas outras
pessoas, somente, pela defesa de uma orientação nem sempre merecedora de
consideração.
Amoucos brigam por ideias produzidas por
outras pessoas, e, em torno delas, agridem, humilham, destratam e partem para
as múltiplas formas de agressão e de violência, - especialmente a simbólica, -
através da qual atacam os símbolos de valor das outras pessoas.
A repressão
da própria identidade para brigar e até matar por causa da defesa de ideias
alheias, geralmente reflete uma divisão interior doentia.
4.4 – Espiritualidade
midiatizada
Constitui
certamente mais uma forma de espiritualidade vistosa, atraente, que advém do
novo jeito oferecido para o contato entre o fiel e o sagrado, por meio da mídia
eletrônica.
É um simpático atalho que encurta caminhos de
cultivo pessoal e leva a experiências emocionais intensas e entusiasmadas.
O clima emotivo, com muito contraste de cores,
de cenários e de traços ornamentais dos gurus produz uma sensação festiva e
alegre para uma agradável experiência de Deus e desencadeia rápidos estágios de
êxtase e de alucinação eufórica.
Os
apresentadores, como as agências de turismo, apresentam roteiros atraentes, insinuantes
e com promessa de muita alegria e felicidade.
Esta nova
ambiência religiosa, sem genuflexórios, sem inclinações humildes para expressar
arrependimento, sem a dureza das longas horas de oração, de motivação, de
meditação e de escuta do que se passa no interior, tende para o clima festivo,
exuberante e irradiador para o auge de um transbordamento do agir divino.
É como um
baile bem animado que arrasta grande número de casais para a pista de dança.
Esta nova
modalidade de prática religiosa conta com o fantástico recurso “off-line” para
que mensagens sejam veiculadas e os espertos gurus rezam em favor da pessoa
fiel em dificuldades, como balconistas que tem atrás de si prateleiras
entulhadas com todas as ofertas que pobres pedintes possam esperar de Deus.
Ampliam-se
ao infinito as ofertas de mensagens religiosas, devocionais e com garantias de
efeitos imediatos para todos os gostos e necessidades.
Assim,
oração e cultivo de fé, viram sinônimo de marketing de grupos religiosos, com
exposição ao vivo da execução dos milagres e das curas (normalmente meros
rituais de transe, magia e indução sugestiva).
Da mesma novidade, mobilizam-se as capelas
virtuais com as mais atraentes ofertas de sagrado, com variadas orações em
“off-line”, de modos que uma pessoa em dificuldades já nem precisa rezar.
Basta que
envie um valor ao guru, e o esperto rezador já negocia com Deus, em favor desta
pessoa, e lhe assegura, em meio à intensa bajulação, a realização do milagre.
No entanto,
os presumidos gurus colocam uma condição: que esta pessoa continue a colaborar
com uma causa maior do apresentador, e, igualmente se disponha a ajuda-lo e a
promovê-lo diante de outras pessoas, como alguém extraordinário, superior e
poderoso no ajeitamento das mediações espetaculares da parte de Deus.
Assim, o
meio comunicacional da mídia eletrônica produz nas pessoas fiéis uma vivência
de fé muito distinta daquela que veio da tradição cristã. A razão principal é a
de querque a midiatização constrói mundos sociais de pessoas e as induz a uma
lógica de religião que não tem nada a ver com penosa construção de comunidade, de
cordialidade e de superação de problemas sociais.
Bastam buscas
individuais que abasteçam o intimismo do “eu” através do “meu Jesus Cristinho”,
ou as da cega obstinação de invocação de santos e santas protetoras, a fim de
que, através destas figuras galãs e divinas, Deus se dobre aos seus pedidos
insistentes.
O resultado
desta suposta espiritualidade é um nítido distanciamento de Jesus Cristo, ou
numa fixação em frases, procedimentos e aspectos isolados em torno de Jesus
Cristo, sem aderir ao conjunto do que ele fez e ensinou.
Cria-se,
deste modo, uma nova religião, onde o sujeito se torna a referência e o centro
da religião. Ele não tem caminho difícil a percorrer e nem a aprender para ser
melhor, pois a sua religião é o que ele pensa e o que ele produz a partir deste
pensamento.
A lenta,
vagarosa e difícil ascese, cultivada ao longo de tantos séculos, cede,
progressivamente, lugar à rapidez dos signos da informática com vistas a
oferecer, com muita velocidade e, de imediato, o suprimento dos desejos
subjetivos.
Por isso, o
quarto de uma pessoa passa a ser o lugar que equivalia ao espaço da Igreja
comunitária. Ali, no quarto, através do celular ou do computador, escolhe-se,
altera-se, combina-se a gosto e “deleta-se” o indesejado.
Sobra
somente uma espiritualidade que depende do humor da pessoa fiel.
No meio
deste mundo de interesses fragmentados, tanto na oferta quanto na procura, as
antigas tradições litúrgicas e os programas de vida para uma elevação do nível
da espiritualidade, passam a ser substituídas pelas escolhas, que são feitas de
acordo com as simpatias, com os tipos de gurus que animam programas religiosos,
e o perfil ideológico de quem orienta a vida.
Aquilo que
interessa é gravado, compartilhado, difundido e recomendado como o melhor para
a obtenção de grandes bênçãos, graças, milagres, curas ou intervenções
especiais da parte de Deus.
Como se
torna quase evidente de se concluir, o aporte, ou alcance desta espiritualidade
se distancia cada dia mais do âmago da mensagem de Jesus Cristo e deixa uma dúvida
crucial: todos estes rituais “off-line”, educam para maior qualidade de vida?
Eles levam a constatar que o nível de satisfação com a espiritualidade buscada
é dinâmico e crescente?
Talvez se
deva tirar pano novo do meio das coisas velhas do baú da vida que, com certeza
poderá conduzir a um estágio mais elevado da qualidade de vida.
4.5 – Espiritualidade
do espelho
Existem espelhos para variadas funções. Eles se prestam bem para iluminar
ambientes escuros. Podem igualmente constituir-se em instrumentos mágicos, com
a perspectiva de comprar uma roupa e ver-se diante de uma imagem desejada...
Espelhos podem igualmente produzir, em ambientes pequenos e apertados, a
sensação de maior amplitude do espaço.
Entre as
múltiplas funções dos espelhos, destaca-se a de mostrar tudo, especialmente
como somos.
Bem sabemos
que nem todos os espelhos são totalmente confiáveis, pois, muitos, de má
qualidade ou côncavos, deformam e distorcem as imagens reais.
Existe até
uma superstição mundial para que se evite a quebra de espelho, especialmente
quando a imagem refletida mostra uma feição nada bem humorada: quebrar um
espelho daria sete anos de azar. Esta superstição procede do antigo mito grego
em torno de Narcizo: ao ver sua imagem refletida na água de um lago, teria
morrido de inanição de tanto desejar acariciar sua própria imagem.
O que um
espelho teria a ver com espiritualidade cristã?
Em nossos
tempos, o espelho, tal como a espiritualidade cristã, podem facilitar o
auto-conhecimento, mas, ao mesmo tempo, podem prestar-se para o cultivo de um
excessivo amor próprio.
O Papa
Francisco passou a usar a expressão “espiritualidade do espelho” para mostrar
que o espelho vem sendo buscado como meio de iluminar a vida de cristãos,
quando, na verdade, é a oração quem deveria constituir a pilha iluminadora da
vida.
O uso
intenso do espelho pode levar as pessoas ao desejo similar na busca de
espiritualidade: querem iluminar a si mesmas, enquanto que o genuíno valor da
auto-estima, e o sentido para a vida, advém de boas obras. Por isso, o Papa
sugere que a luz das boas obras é que deve resplandecer diante dos outros.
O referido
Papa sugere um “não” à espiritualidade do espelho porque decorre do intenso
cultivo dos interesses consumistas. Basta observar que as empresas globais e a
ambição do crescimento contínuo dos países, produz uma verdadeira paranoia nas
pessoas, porque seus desejos alargados ao infinito, as leva a desejar níveis
cada dia mais elevados de ascensão, de auto-afirmação e de ampliação do sucesso
econômico.
Com o foco
central da espiritualidade para a própria pessoa que a busca, ocorre uma
tentadora atração para uma caracterização mesquinha da espiritualidade, e,
nesta condição, os interesses religiosos mal orientados – porque não são para
outros, mas para si mesmo – remetem a uma figura ilustrativa da Bíblia, que é
Jonas (4,1-11).
Ele
sentiu-se chamado a anunciar um caminho de redenção para a cidade de Nínive,
uma cidade estrangeira, mas, logo revelou sua mesquinhez: odiava estrangeiros e
estava convencido de que somente judeus recebiam a dignidade da salvação.
Se Jonas
sentia, de um lado, a apelo de Deus, resolveu optar pelo caminho inverso, muito
mais cômodo e favorável aos seus interesses pessoais.
O fechamento
de Jonas sobre si mesmo – uma espiritualidade do espelho - fez com que ele não
percebesse as verdadeiras dimensões missionárias da sua fé em Deus. Bastou uma
pequena decepção, pois o arbusto que lhe deu sombra, ao fugir do compromisso,
havia secado, e isso já serviu de motivo para irritar-se com Deus e desejar a
morte. Em resumo, azedou intensamente a vida por uma coisa de nada.
Muito
particularismo religioso de nossos dias revela-se muito parecido com esta
espiritualidade do espelho que moveu a Jonas. Ele não suportou a hipótese de
que Deus era misericordioso com seus declarados inimigos, os estrangeiros de
Nínive. Ele mesmo perdeu de vista a noção de que Deus é misericordioso pelo
fechamento sobre si mesmo. Por isso, criou ideias e pensamentos desejando o mal
para os outros, mas, ambicionava muitos benefícios em nome de Deus.
Como Jonas
muitas pessoas cristãs acham que a ação de Deus precisa encaixar-se necessária
e precipuamente em favor do interesse que ela cultiva em torno da demonização
de tudo quanto não gosta.
Deste desvio
do foco fundamental da finalidade de cultivo espiritual, decorre a tentação de
cultivar piedades que não levam a fazer nenhuma experiência da bondade de Deus.
Ao mesmo tempo, tampouco deixa que os membros da comunidade expressem seu
estado de alma diante de Deus.
A
espiritualidade do espelho, ilustrada no procedimento de Jonas, nos remete a
admirar a espiritualidade dos primeiros cristãos, que despertavam encantamento
intenso e profundo pelo seu modo de ser e de rezar em tempos extremamente
adversos e difíceis.
4.5.1 – Efeitos da
espiritualidade do espelho
A
espiritualidade do espelho produz um primeiro efeito muito marcante na condução
da vida cristã, que o Papa Francisco denominou de Alzheimer espiritual: é uma
progressiva diminuição da faculdade espiritual que leva a ignorar toda a
história da salvação e o encontro com Cristo, e que faz com que pessoas da
Igreja se esqueçam do encontro com Deus. Esperam coisas grandiosas e
sensacionalistas e perdem a sensibilidade de constatar que, tudo quanto vem de
Deus é extremamente simples e objetivo.
A
espiritualidade do espelho faz com que muitas pessoas, convencidas de serem
pessoas de muita fé, corram atrás de consultórios, psicólogos, terapeutas,
videntes, benzedores e as incontáveis terapias para problemas existenciais, mas,
não rompem o fechamento sobre si mesmo.
Por outro
lado, tendem a comercializar os dons gratuitos de Deus e se envolvem num mundo
de “bobeirinhas subjetivas”. Acham tempo para tudo, menos para meditar, rezar e
ler algo edificante. Por fim, sucumbem na vivência rala de valores universais,
sem quaisquer propósitos que movam a práticas para o bem de outras pessoas.
Por fim, a
espiritualidade do espelho leva a uma construção de muros e de hábitos ao redor
da própria pessoa e ela acaba ficando escrava do que produz com as próprias
mãos e enche sua vida com manhas, caprichos e paixões. Na verdade. A
espiritualidade do espelho rouba a capacidade do bom e saudável senso de humor.
Segundo
Marígina Bruno, diversos indícios apontam o avanço do Alzheimer espiritual:
a)
Perda
da relação pessoal com Deus e a sensação de que sequer precisa desta relação;
b)
Tudo
começa a parecer rotineiro e obrigatório;
c)
Os
pecados já não doem mais porque a pessoa se acostumou com eles;
d)
Ausência
de nutrição com a Palavra de Deus;
e)
Vontade
de esconder, reduzir e ocultar a fé para não ser discriminado.
Neste
endurecimento mental as pessoas acabam se transformando a si mesmas em máquinas
de práticas e não em pessoas de Deus. Por isso, facilmente lhes aflora o
complexo de eleitos, em que o narcisismo as leva a olhar somente para a sua
pessoa e sequer percebem imagem de Deus em pobres e necessitados.
O
que sobra desta espiritualidade, é “cara de enterro”, como dizia o Papa
Francisco, porque o rosto extravasa melancolia e o trato com as outras pessoas
se caracteriza por rigidez e arrogância, sem alegria e sem humor saudável.
4.5.1 – Venenos que
matam a espiritualidade cristã
O místico
alemão, Anselm Grün salientou no livro Reconciliar-se
com Deus (Vozes, 2014) que existem dois venenos que matam a
espiritualidade: fanatismo e fundamentalismo.
O termo fanatismo
vem de Fanum, que significa entusiasmo arrebatado, mas cego para a realidade.
Decorre do medo de ameaças internas e externas relacionadas a fantasias
megalomaníacas de grandeza e poder, geralmente violentas.
O fanatismo
tende a ocorrer em pessoas tímidas, inseguras e de baixa auto-estima, que
escondem sua pequenez em fantasias de grandeza. Criam inimigos e os perseguem,
sem o menor respeito a regras existentes.
As pessoas
fanáticas também tendem a abusar da religião para confirmar sua própria
grandiosidade, e são extremamente “cabeçudas” para admitir que existam ideias
melhores que as suas. Por isso, tornam-se pregadoras do ódio e, facilmente,
incitam outras pessoas a se tornarem agressivas contra seus pressupostos
inimigos.
Como estas
pessoas tem medo de tudo quanto é novo e diferente do que pensam, costumam
projetar sua própria obscuridade sobre outras pessoas que elas consideram como
inimigas. Geralmente veem diabo em tudo e em todos e querem constituir-se em
grandes vencedoras do diabo.
O outro
veneno, tão ostensivo em nossos dias, é o do fundamentalismo. Procede da
palavra “Fundus”, que significa fundamento, solo. Geralmente é constituído por
pessoas fanáticas que desejam colocar a fé sobre os verdadeiros fundamentos. O
problema é que não estabelecem o fundamento sobre fatos históricos e concretos,
mas o fundamento que eles mesmos pensam e gostam.
Pelo fato
dos fundamentalistas enxergarem apenas o seu fundamento, tendem ao rigorismo e
acabam confundindo Deus com os seus próprios dogmas sobre Deus. Na prática
tendem para um interesse meramente ideológico.
Como os
fanáticos, os fundamentalistas farejam diabo em tudo e em todos; e acham que as
outras pessoas estão sendo controladas pelo diabo. Por outro lado, escondem seu
lado pessoal sombrio de muitas dúvidas, medos e inseguranças, mas projetam sobre
os perseguidos, toda limitação que não enxergam na sua vida pessoal e real.
Em
consequência disso, os fundamentalistas geralmente incidem em quatro traços
muito evidentes e marcantes:
a)
Moralização – vivem repetindo o que as outras
pessoas precisam fazer e exploram o sentimento de culpa;
b)
Absolutização – Apresentam Deus como se eles
soubessem com absoluta exatidão o que Deus quer para os outros (mas não para
eles). É necessária uma relativização quando alguém prega, usando a terceira
pessoa dos verbos: “você deve fazer isso”; “façam isso e mais aquilo”...
c)
Demonização – fazem uma leitura doentia do ser
humano, porque nada está bom. Eles, no entanto, pregam seu próprio pessimismo.
d)
Banalização – apresentam um Deus totalmente
desvirtuado como se fosse um mero
“vovozinho querido”, já sem capacidade de ajudar algo nas experiências
humanas reais.
Pelo que se
evidencia, esta espiritualidade passa longe das interpelações do Evangelho.
CAPÍTULO VI
ESPIRITUALIDADE DA
PEQUENEZ INTERIOR
É caminho
difícil como descer uma ladeira íngreme, com muitas pedras, valetas e
empecilhos, que impedem deslocamento suave, fácil e agradável.
Implica em
descer ao mundo interior e lidar com as próprias paixões, com as fantasias e
com as ideias obsessivas que seguidamente voltam a perturbar a mente.
O difícil
caminho da descida rumo ao interior de si mesmo tende a assustar e a despertar
mecanismos de desvio, como o da distração, o do pavor de ter que confrontar-se
com as fragilidades, e com os tantos outros traumas e desencantos que se cruzam
no fundo do poço do próprio psiquismo.
Ali,
geralmente afloram em abundância as muitas experiências fracassadas, as
decepções que feriram os sentimentos, os erros reais que foram cometidos, além
das muitas opções feitas na vida que não levaram aos resultados almejados.
Lidar com as
feridas da própria existência facilmente leva a uma constatação: mesmo com
todas as próprias forças engajadas, ajeitar-se consigo mesmo, e com os próprios
problemas é tarefa que excede as forças pessoais.
Emergem os
sentimentos de fragilidades, carência de algum amparo, de algum interlocutor,
enfim, de algum “TU” a mostrar que, mesmo tendo um longo e penoso o caminho
pela frente, pode-se alcançar a meta que o próprio coração aponta: a de sentir-se
bem, e a de ser capaz de amar e de se sentir amado.
Segundo o
renomado místico alemão Anselm Grün, quando se consegue entrar neste abismo de
desconforto, que é o mundo interior, já se entra no pátio de Deus e, ali mesmo,
já se pode bater na sua porta.
Basta bater,
pois, Ele se encontra ali no meio deste mundo frágil, e, disposto a ajudar para
que se consiga conviver com o marasmo que se produziu na intimidade dos
sentimentos.
Por isso, o
caminho de cultivo da “espiritualidade para baixo” leva a rezar, não as conquistas
e as grandes façanhas, as espertezas, as astúcias, bem como as obras e ações
exteriores, mas, exatamente, o desconforto com os fracassos e com as feridas
que continuam a produzir mal-estar.
Esta
espiritualidade que mexe no baixo mundo dos porões do interior é, precisamente,
a que leva a rezar, a fim de que a ajuda de Deus permita que se integre o
passado ferido e, mesmo com um pouco de complacência, que se aprenda a ajeitar-se
com ele, a fim de torna-lo fonte de brincadeira e de bom humor.
Em outras palavras, é aprender a
reconciliar-se com as próprias paixões e aprender a escutar os ecos das raivas
que ainda ecoam nos sentimentos feridos.
Então,
emerge o evidente: a carência da misericórdia de Deus e a necessidade de
perdoar o passado mal integrado. Neste avanço pode-se liberar o fluxo do que
eleva no gosto pela vida.
Por vezes
este caminho difícil implica em desvencilhar-se de outra pessoa que é trazida
negativamente para dentro deste mundo das paixões.
Esta pessoa,
mesmo distante ou já falecida, pode ser reavivada na memória e manter-se
incrustada no melhor espaço do “eu” para causar um grande mal.
Então, vem a
difícil tarefa de dar a mão a esta pessoa, declarada inimiga para que deixe de
ser adversária ferrenha ou perseguidora sem tréguas.
Mais do que bater o olho no olho desta pessoa,
torna-se necessário estender a mão à ideia que se produziu a seu respeito e que,
interiorizada, continua a ser repetida, constantemente, de modos a reavivar os
irritantes sentimentos desagradáveis ou de mágoa de tempos longínquos e que já
não deveriam causar qualquer mal-estar.
Aprender a
viver com os limites, com todos os defeitos de fábrica das nossas
predisposições para certas doenças, permite encontrar verdadeiros tesouros nestes
vasos de barro amontoados no mundo interior, mas, que contêm joias preciosas do
valor da vida e que enfeitam os traços peculiares e genuínos da personalidade.
Esta
consciência é altamente recriadora e permite perceber que diante das portas que
se fecharam outras, já podem estar escancaradas para acolher ou se encontram
acessíveis para serem abertas e permitir novas descobertas da grandeza de Deus,
independente da constatação desta frágil pequenez da condição pessoal.
Afinal, quem
não deseja estar na proximidade de uma pessoa amiga, próxima, acolhedora e cortês?
Uma pessoa assim produz um clima humano completamente distinto da rispidez de
uma pessoa mal humorada, arrogante e pretensiosa.
É por isso
que a prática do seguimento de Jesus Cristo abre um vasto caminho para uma
aproximação da vida sensível e de bons sentimentos. Conhecer e aprofundar-se no
contexto da vida de Jesus, contido na Bíblia, oferece esta inspiração valiosa
para a espiritualidade cristã.
A
possibilidade de atualizar o modo de ser de Jesus Cristo, com toda a riqueza do
seu empenho para reverter manifestações da maldade humana, que causaram
pobreza, exclusão, injustiça e exploração, remete automaticamente a desejar que
algo similar a Jesus Cristo produza os mesmos bons efeitos nas fragilidades
humana dos dias atuais.
Assim, a
espiritualidade cristã se presta para ampliar uma grande variedade de virtudes
humanas, que, por sua vez, requerem empenho e cultivo ao longo de toda a vida.
Como os
efeitos da espiritualidade cristã não dependem apenas de desejos interesseiros
com imediatas e mágicas soluções torna-se praticamente necessário:
a)
Cultivar
com zelo a fé a fim de que possa aproximar-se da sensibilidade de Jesus Cristo;
b)
Cultivar
momentos regulares de oração para melhor inserir-se no jeito de Jesus Cristo,
com progressiva capacidade de amar mais e tornar-se melhor com as pessoas;
c)
Cultivar
momentos de sensibilização para captar melhor e interpretar de forma mais
adequada a realidade envolvente.
d)
A
leitura orante da Palavra de Deus também alarga a capacidade de ver as coisas
com a sensibilidade de Jesus Cristo, a fim de que o coração fale mais alto do
que os preconceitos, que as posturas categóricas, rígidas e inflexíveis, que
tanto atrapalham as relações humanas.
Enfim, a prática da espiritualidade
cristã tem uma importância
fundamental para a qualidade da saúde. Além da força curativa das motivações
boas, a espiritualidade cristã também oferece uma visão mais completa em que a
sintonia com o cosmos, com a sociedade e com o “todo” da existência fornece uma
leveza maior do que o ar carrancudo e rancoroso que tanta gente manifesta neste
mundo de Deus.
A espiritualidade cristã igualmente
facilita amar a vida e facilita a criação de laços de amizade e de
solidariedade. Devolve o sentimento de prazer de constatar que algo feito de
bom para alguém, sempre retorna com o agradável sentimento de “cesto cheio”.
Outro aspecto não menos importante
da espiritualidade cristã é o de alargar a capacidade de indignar-se, de
perdoar e de alegrar-se mais com o que está à frente da vida, e, sem remoer tanto
as mágoas e as perdas do passado.
A espiritualidade cristã, em suma,
expande a vida: abre o leque de novas possibilidades, aumenta os anticorpos de
defesa e reforça o complexo quadro de energias regenerativas.
Quando
alguém se sente nas mãos de Deus, evidentemente se torna mais saudável porque
alarga o sentido do existir: assim, potencializa a inteligência, a libido, o
afeto e tantas outras dimensões da vida.
A espiritualidade cristã é,
portanto, valiosíssima para elevar o nível da autêntica liberdade, porque ao
invés de atrelar à submissão e dependência de controles religiosos, leva ao que
o apóstolo Paulo já escrevia à comunidade dos Gálatas: “vós fostes chamados à
liberdade, irmãos!” (5,13).
Por outro lado, a espiritualidade
cristã fornece consistência para que o testemunho da vida cristã permita que muitas
pessoas experimentem um Deus bom e, não aquele inventado dos medos, dos
pavores, das vinganças, dos castigos e dos exércitos de maus espíritos...
CAPÍTULO VI
ESPIRITUALIDADE DA MISERICÓRDIA
Enquanto o
fanatismo e o fundamentalismo constituem venenos que deterioram a
espiritualidade cristã, a espiritualidade da misericórdia, que tanto se realça
na boa notícia do Evangelho, desperta para a capacidade do bom samaritano que
existe em nós.
Esta
espiritualidade permite que a vida se constitua numa dupla função: captar e
emitir bons sinais na interação humana. Torna as pessoas, mais capazes de
narrar acontecimentos, sem transformá-los num monte de fofocas. Ao invés da
ação semeadora de ciúmes, invejas e de poder controlador – armas mortíferas, -
incita-as a semear maior atenção recíproca. Assim, se tornam meios eficazes
para lidar com a desolação espiritual de tantos momentos obscuros, de sumiço da
esperança, em que desaparece até a vontade de viver, mas, no cultivo do
silêncio, auscultam novas motivações para a vida.
CAPÍTULO VII
ECO-ESPIRITUALIDADE
O termo “Eco” vem do grego, oikos,
que significa casa, ou lugar onde se vive.
Quando se
pensa espiritualidade cristã, tende-se a evidenciar facilmente o lugar especial
como Igreja, templo, santuário e lugares especialmente erigidos para cultivo da
espiritualidade.
Esta noção
de antiga herança tende a diminuir o valor do espaço da casa onde se mora. Por
isso, nosso Papa Francisco tanto insiste na “ressacralização das casas”, para
salientar que a espiritualidade cristã precisa gerar um modo de relações com o
corpo, com o ambiente, com a casa, e a grande casa comum (planeta) para constatar
o elo de sintonia que os complementa.
Faz-se
necessário descer do plano das ideias para maior cuidado com a Terra, a fim de
se chegar ao coração de um novo jeito de práticas em torno do modo de habitar,
do modo de trabalhar, de viajar, de consumir, de cuidar do lixo, etc.
Este modo
integrador e integrado implica em três focos do olhar humano: um olhar amoroso;
um olhar cuidadoso e um olhar esperançoso. É um significado encantador e novo
para a espiritualidade cristã, porque integra a vida à existência da Mãe-Terra
e interpela para a inserção harmoniosa na sua totalidade, com as mesmas
relações requeridas numa casa: cuidado e respeito.
A
eco-espiritualidade também interpela a deslocar o antropocentrismo humano, no
qual a pessoa é o centro de tudo – para um relacionamento mais ético porque os
seres humanos constituem parte importante do grande sistema de vida e não são
seus donos, para dele fazer o que sua ambição doentia e obsessiva projeta.
Por outro
lado, esta espiritualidade alarga o dom da cooperação, tanto para diminuir a
competição, quanto para salvar a interação com os múltiplos sistemas de vida
que são fundamentais à existência humana.
Trata-se de uma espiritualidade que conduz ao humano profundo, que é o da
generosidade, da acolhida e da mística do cuidado.
Eco-espiritualidade, ou, espiritualidade
ecológica, aponta um horizonte de esperança, que
é o de outro estilo de vida. Nele, o caminho do coração, certamente indica a
possibilidade de vida mais simples, descomplicada e mais cotidiana no
aprendizado do caminho de Jesus. Nele também se encontrará a mediação para uma
conversão que aponta outro tipo de relação com o mundo, num sentido contrário
ao da demolição promovida pela ordem econômica atual, que mobiliza os humanos na obcecada ambição pela
vida consumista.
Uma
espiritualidade ecológica evidencia que Deus não age “de fora” para dentro do
nosso mundo e nem sobre a natureza, mas está no meio desta profunda
interdependência para uma complementariedade. A verdade ainda não está pronta,
pois muito dela ainda está por se revelar.
CAPÍTULO VIII
CRISES E DESENCANTOS COM A ESPIRITUALIDADE
Mais do que honras e graus a atingir,
Esperam-se cultivadas sensibilidades,
Capazes de se enternecer sem desistir,
Diante de reais e efetivas dificuldades.
Para quem se envereda pelos caminhos
do crescimento na espiritualidade cristã, não existe uma linearidade de
crescimento progressivo e nem uma experiência paulatinamente mais ampla e profunda
de Deus.
Geralmente o
entusiasmo inicial não sustenta longo período de perseverança nas buscas,
porque ocorre nos seres humanos um fenômeno que os prostra, quando os desejos
não são alcançados.
Quanto mais
altas são as expectativas de perfectibilidade, maiores são as decepções. Como
diz o ditado popular, quanto mais alto o tombo, tanto maior é o seu efeito...
Mesmo quem
se move pela profunda e reta motivação de aprofundar-se na experiência de Deus,
não está isento de um desencantamento com Deus e com a vida que escolheu para
ser mais feliz.
As próprias
aspirações implicam em momentos de cansaço, de apatia e de crises, sejam na
vida de trabalho, na convivência ou na experiência de maior intimidade com
Deus.
Aparece,
então, a sensação pesarosa, uma espécie de torpor, de ausência de iniciativas, com
manifesta perda de vontade e até uma literal descrença em torno do que se
escolheu como horizonte de alcance.
Nesta
secura, seja de palavra, de ação ou de capacidade de oração e de serviço
humanitário, emerge a desagradável experiência da acídia.
8.1 – Acídia
O
termo não costuma ser muito usado em nossos dias, mas, o seu significado é
muito conhecido, pois, uma enormidade de sinônimos é associada às suas manifestações.
A palavra
“acídia” vem do grego Kedòs, que significa cuidado. O prefixo “a” colocado
antes da palavra significa negação. Assim, acídia pode conotar “o que não é cuidado”,
o que é desleixado, desvalorizado... Logo emerge a pergunta: porque algo é
descuidado?
Normalmente
porque não se alcançou o que se buscou com tanto cuidado. Se, por exemplo, no
campo das buscas de fé, alguém deseja alcançar importantes e valiosos traços de
virtude pessoal, e, ao perceber que não pratica estes traços virtuosos, fica
insatisfeito consigo mesmo e se desencanta até mesmo com Deus de quem espera o
alcance de valiosas virtudes.
A palavra
“acídia” também deriva do termo “ácido”, elemento químico que possui intensa
ação corrosiva. Deste modo, pode conotar algo que desmancha o alcance de uma
meta estabelecida.
8.2 – Acídia em tempo
antigos
Na história
da Igreja católica antiga, acídia tinha outra conotação especial dentro dos
itinerários da espiritualidade. Era considerada como um tempero de morbidez que
acometia os monges na sua busca de perfeição em Deus.
Era uma
espécie de tédio, que causava um torpor na mente, a ponto de não motivar nada
de bom nem para si e, nem para outras pessoas.
Criava um clima de falta de iniciativas e uma
ação muito negativa que boicotava qualquer boa intenção.
Entre as
muitas atribuições feitas à acídia, também se salientava que ela,
costumeiramente, vinha acompanhada pela tristeza, pelo enfado, pelo torpor da
mente, pela prostração de ânimo, enfim, que afastava qualquer vontade de fazer
alguma coisa boa.
Pode-se imaginar o que isso significava na
vida de quem se cultivava intensamente na espiritualidade.
De repente,
sem vontade de rezar, sem vontade de participar de celebrações e eventos, sem
vontade de ajudar alguma pessoa carente e necessitada...
Como
salienta o título do livro que trás pregações de São Gaspar Bertoni sobre esta
realidade: “Acídia – vírus que mata o amor” parece resumir este significado
religioso.
Nos tempos
antigos da Igreja católica ocorreu muita reflexão sobre esta realidade de
desencantamento com Deus, experimentada pelos monges, numa certa etapa do seu
cultivo de espiritualidade.
Diversas
interpretações se tornaram conhecidas para ajudar os monges a evitar o risco de
cair na acídia.
Uma destas
interpretações atribuía a fonte das mazelas aos demônios. Falava-se em demônio
do meio-dia, que produzia um vazio na vida do monge e lhe roubava totalmente a
energia ou a força para algum procedimento edificante e bom.
O salmo 19,
já mencionava a expressão de ’demônio do meio-dia’, provavelmente, para
referir-se ao tédio diante do tempo, ou seja, uma impaciência e inquietude com
o próprio tempo, pois, tudo demorava muito para passar.
8.3 – Acídia – crise
maior que tristeza e preguiça
Situada num
contexto de experiência religiosa, esta crise dos monges era mais profunda do
que uma experiência de tristeza e preguiça, pois, levava a perceber que sua
opção profunda por Deus, para uma vida intensamente produtiva do jeito de Jesus
Cristo, estava sem produzir frutos.
Por isso não convém restringir acídia à mera
questão de tristeza e preguiça, que, hoje, continua a manifestar-se nas pessoas.
Havia, na verdade, uma decepção com o que era intensamente desejado.
No horizonte
da experiência religiosa escolhida, os líderes animadores de monges e monjas
foram refletindo e tentando entender o que causava este estado de desmanche das
motivações; e, nas muitas ponderações em torno da acídia, chegaram a
classificações de parentesco dos fatores que desencadeavam este mal-estar, que envolvia
uma crise de aversão aos bens da vida espiritual.
A tradição
monástica, aos poucos, chegou a um consenso de que certos vícios desencadeavam
a acídia. Mencionavam especialmente oito vícios: gula, luxúria e cobiça,
tristeza e acídia, vaidade e orgulho.
Gula,
luxúria e cobiça constituíam vícios atrelados aos desejos; enquanto que,
tristeza, ira e acídia dependiam de estados negativos, pessimistas do humor ou
do espírito; e, a vaidade e o orgulho, estavam diretamente relacionados ao
campo da ambição de uma pessoa.
Neste
contexto, a acídia – também chamada de demônio do meio-dia - atacava da quarta
à oitava hora e dava a impressão de que o sol se movia com excessiva lentidão,
ou, até mesmo, que estivesse parado.
Esta
impaciência com o horário, com o lugar onde se estava, e, com a atividade
estabelecida a ser feita, antecipava as evidências de futuro: nada mais poderia
trazer algum consolo ou gratificação.
Dali
decorria a motivação para fantasiar em torno de outro lugar e de outros modos
de vida que, eventualmente, poderiam ser mais fáceis e gratificantes.
Se a
fantasia de outro lugar e de outras experiências causava desconforto com o real
da vida vivenciada, havia também mais mecanismos que, segundo Cassiano, causavam
este tédio e esta dificuldade de avançar no rumo da vida interior: vontade de
dormir, de fugir ou de entrar em agitação intensa.
Esta
distração dispersiva para qualquer coisa distinta do mundo envolvente era
entendida como ação demoníaca, que esvaziava um monge do vigor daquilo que ele
queria ser como religioso.
Evágrio Pôntico
considerava, por isso, que acídia era um pecado mortal. Portanto, entrar em
estado de acídia significava entregar-se à influência diabólica. E a fim de
assegurar imunidade diante das rondadas do diabo, necessitaria o monge evitar,
em primeiro lugar, os oito vícios, acima mencionados.
Um pouco
mais tarde, Gregório Magno, já menos drástico, situava estes oito vícios no
contexto dos pecados capitais e a acídia passou a ser considerada como
equivalente a tristeza. Na verdade, era algo muito mais envolvente do que mera
tristeza.
Neste quadro
de cosmovisão muito distinta da visão de mundo da atualidade, todo o esforço
para evitar a acídia era desencadeado com a finalidade de ajudar os monges a
alcançarem resultado positivo na busca da experiência de Deus.
Disto
decorreram muitos alertas a respeito do que ajudaria a ficar distante dos
efeitos da acídia, como, por exemplo, afastar-se das filhas e dos parentes da
acídia.
As filhas da
acídia seriam: 1 - Tibieza –
negligência com as coisas religiosas; 2 – Divagação
– ocupar-se com devaneios e coisas supérfluas; 3 – Pusilanimidade - aumentar
muito os problemas e torna-los maiores do que as soluções; 4 – Desespero – perder o controle de si
mesmo diante das dificuldades; 5 –
Náusea – aversão às coisas espirituais e arrependimento pela escolha feita; 6 –
Rancor – especialmente contra alguém
que faz coisas boas.
Além dos cuidados
preventivos diante das seis filhas da acídia, recomendava-se vigilância atenta
com os parentes da acídia: tepidez, busca de prazer, sonolência, ociosidade,
protelação, lentidão, desânimo, descontrole, superficialidade, secura
espiritual, descontentamento, amargura e tagarelice exagerada.
Igualmente
se alertava que a acídia se desencadeava no ambiente de três características:
amor próprio, negligência e desobediência.
O amor
próprio tornaria a pessoa muito soberba; a negligência implicaria em quedas
muito seguidas e constantes no humor diante dos objetivos que se queriam
alcançar; e, a desobediência, aparecia como efeito das manifestações anteriores
e levaria a duas consequências: hedonismo e nihilismo, que, por sua vez,
levariam ao relativismo, ao secularismo, ao agnosticismo e ao ateísmo.
8.4 – Acídia e seu
alcance
Do que acima
se destacou, a acídia, certamente, não se relacionava a uma intervenção sedutora
do diabo, nem, tampouco, a mero fruto de pecado mortal, mas, envolvia desejos
projetados, e, possivelmente, com excesso de idealização.
Na verdade,
acometia pessoas que visavam elevação espiritual – homens e mulheres – mas que,
a certa altura do cultivo, se sentiam incapazes de vivenciar o alcance
espiritual que almejaram.
Esta doença
paralisante, com certeza, está muito manifesta e evidente, nas pessoas que nos
mais variados caminhos de espiritualidade tentam elevar-se a Deus para serem
mais felizes e, no meio do caminho constatam a irrelevância dos esforços
empreendidos e o não alcance das metas projetadas.
Tal
constatação perpassa também a experiência moderna de vivenciar a ação
evangelizadora da fé cristã, e leva a paralisias, a resistências, à preguiça e ao
desleixo na atividade evangelizadora.
A perda da
dedicação e da disponibilidade para os outros é compensada pelo olhar focado na
própria pessoalidade.
Assim, vivencia-se
hoje o mesmo pecado antigo: resiste-se à interpelação de Jesus Cristo que
remete aos outros, e, as expectativas da Boa Notícia do Evangelho também podem
causar um verdadeiro torpor diante do que conviria ser transmitido e testemunhado
a respeito do amor de Deus.
De fato, a
acídia, ainda hoje, aponta o caminho contrário ao da caridade, da alegria e do
encantamento.
Embora não
seja tão costumeiro falar-se em acídia, fala-se de algo equivalente, como
depressão, “Burn Out”, desgaste afetivo psíquico, ou, em queimar-se por dentro
com todas as coisas boas que ali se produziram.
Emerge,
então, uma sensação de indolência, e, de desconforto diante de qualquer
empreendimento bom que possa ser feito.
Se em tempos
antigos da Igreja ocorreu excesso de idealização da santidade e da busca de
perfeição em Deus, continua-se, em nossos dias, com o mesmo excesso de
idealizações, mas, sob uma orientação não religiosa.
O sistema
social induz a sonhar com perfeição e plena felicidade através do consumo de
bens e de objetos.
Neste
itinerário, a santidade, deslocada, produz estados similares ao da acídia como
nos tempos iniciais da Igreja. E que indicação terapêutica poderia ser
apresentada para não subsumir na acídia?
Como tantos
monges sucumbiram diante dos ideais que escolheram - como os melhores para a
felicidade em Deus, - hoje, incontáveis seres humanos, entram em acídia diante
da idealização que o sistema econômico apresenta sob a rigidez cruel de um
itinerário que frustra no alcance da meta estabelecida.
Seja na imagem do diabo do meio dia, da noção
de pecado mortal ou capital, vivencia-se a experiência de fracasso,
precisamente em torno da plenitude que mais se busca.
Se já não
são santos padres e santas mães do deserto a propor regras austeras e rígidas
para o alcance de elevação espiritual, o moderno sistema de vida submete a um
itinerário mais cruel e frustrante.
Por outro
lado, a fé em Deus não exime ninguém de experiências de vazio, de tédio, de
tristeza e de preguiça; e, mesmo os prazeres mais desejados revelam-se
altamente provisórios e passageiros, porquanto, o não alcance da satisfação dos
desejos, sejam eles sexuais, afetivos, humanitários ou de realização pessoal, vão
acarretando sensações de vazio, que, por sua vez, podem levar a depressões e
tantos outros estados doentios.
Ainda hoje,
as estimulações multiplicadas à exaustão, para preencher o tempo com felicidade
(através de gastronomia, de festas e festanças, de jogos, de viagens, de
turismo religioso ou de qualquer outra natureza...) podem intermear-se de
acídia em que se perde o cuidado de si mesmo e a alegria de cuidar de outros.
Com tudo
quanto os tempos recentes produzem para evitar o vazio (analgésicos,
antidepressivos, psicotrópicos, diversões, festas, eventos, comidas e bebidas,
drogas, odores e sabores...) o vazio, no entanto, mistura-se neste caminho. Se
já não é chamado de diabo do meio-dia, nem de pecado mortal, ele, todavia,
ronda e rouba até o foco religioso do que mais se quer vivenciar, pois, envolve
decepção e frustração diante do bem extraordinário, considerado divino, para
sentir-se agraciado pelo bem-querer deste amparo superior.
EPÍLOGO
Com o rico
aporte da espiritualidade cristã, pode-se trilhar o caminho dos discípulos de
Jesus Cristo. Como fez com o mendigo da piscina de Siloé, Jesus não efetuou
nenhum ato mágico, nem hipnótico, nem tampouco induziu a um estado de transe; não
fez cura, nem libertação, nem concessão de vantagem e nem sequer jogou o
mendigo na piscina, segundo seu desejo, alimentado há décadas.
Jesus simplesmente
indicou um caminho com a cama: pega sua cama e ande! Cama significa o mundo
passado, com aquilo que deu certo na infância e nos mecanismos de ajustamento do
bloco familiar, mas que, na vida adulta, não produz mais os mesmos efeitos.
Muitas manhas, artimanhas, diante de acontecimentos que não deram certo para o
alcance de estratégias usadas, apontaram o caminho da cama.
Frustrações,
sentimentos de desamparo e expectativas de afeto, ao lado daquelas dores de
mágoas, facilmente induzem alguém a ficar de cama.
Cama é
refúgio tão bom e tão agradável, mas, a permanência prolongada na cama atrofia
os músculos e pode tornar uma pessoa dependente e incapaz de andar...
Além disso, a
cama leva a remoer todos os dias os mesmos sentimentos. E quando estes são de ressentimento,
de raiva ou de culpa, o psiquismo acaba não despertando nada melhor do que
comprar atenção e afeto.
Aquele
mendigo interlocutor de Jesus, socialmente sustentado e rotulado ao nível da
mendicância pelos que o acompanhavam há trinta e oito anos, não foi convidado, -
pelos religiosos de fervor e zelo que por ele cruzavam, - para sair deste nível
de dependência.
Os
religiosos da época nem mesmo se moveram por um singelo e simples gesto
caridoso de jogá-lo na piscina e atender seus protelados anseios.
O ambiente
religioso daquele lugar social transformou o mendigo de afeto no papel social
de acomodar-se a viver de migalhas dos religiosos, e o transformou em legítimo mendigo.
Hoje incontáveis
mendigos integram as sociedades. Alguns são pedintes de esmola para sobreviver,
mas, muito outros são meros mendigos de afeto, movidos pelo sentimento de que
merecem dó, compaixão e bajulação.
Dependentes,
submissos e atrelados a opiniões alheias, sobretudo, de lideranças de
comunidades cristãs e de orientadores espirituais, não andam na vida, porque
esperam soluções de pessoas iluminadas e poderosas. São como lanternas sem
bateria.
Andar com a
cama equivale a lidar com as próprias limitações, com feridas expostas que
muitas vezes precisam receber um curativo, a fim de permitir que,
simultaneamente, se possa ajudar melhor a outras pessoas em dificuldades, e que
carecem, geralmente, de muito mais do que de curativo. Elas carecem de sentido
para além do que vivenciam.
Por isso, a
espiritualidade da vida cristã permite que a preciosidade do jeito de Cristo,
através da fragilidade do vaso que é o dom da existência, mas, com os devidos
curativos, ajudar a curar outras fragilidades de pessoas que necessitam de gestos
de compaixão e de alguma palavra de esperança.
A
recomendação de Jesus ao mendigo foi a de que andasse com a cama.
Assim,
quando alguém se atrela à cama, ao mundo da lamúria e ao da prostração, -
porque não alcançou o desejado, - acaba refém da cama (ao passado) e não
ultrapassa o mundo cinzento das lamentações.
O estímulo
para andar com a cama, fez com que o mendigo andasse e retornasse com razões
para louvar a Deus.
Isto é muito
diferente do que sessões de louvor meloso, modalidade sutil de compra de afeto
e que leva líderes espirituais a almejar multidões de seguidores; mas, com o
fito de constituir um fã-clube de bajuladores, que apenas despertam
atrelamentos à “cama” da dependência servil, sem andar com a sua cama (com os
problemas produzidos no passado).
A
espiritualidade cristã pode ainda hoje alargar duas dimensões que necessitam
relacionar-se: a do gratuito amor de Deus e a da contingência e da fragilidade
da condição humana.
Para esta
relação tornar-se complementar, não basta o extremismo da entrega resignada à
espera de soluções da parte de Deus ou de outras pessoas; e, nem, tampouco, o
outro extremo de um “eu” isolado, que conquista o que deseja, e que pretende
colocar Deus no seu bolso como moeda de barganha.
Como joia
mantida em vaso de barro, a preciosidade da existência humana está envolvida
pela hipersensibilidade alérgica a incontáveis manifestações capazes de
despertar reações desproporcionais, impróprias e inadequadas para o bem viver
com o mundo interior, e, permitir que dele possam emergir motivações boas para
conviver, tanto com a constatação dos estragos no invólucro de marcas afetivas,
quanto com as incontáveis situações que atrapalham a convivência normal do dia
a dia.
Enfim, evidencia-se
que a espiritualidade cristã requer a condição de humilde caminhante.
O seguimento
de Jesus Cristo, na condição de discípulo aprendiz pela vida afora, levará a integrar
o passado com um olhar de gratuidade perante o que foi superado, e, com uma
sensibilidade aguçada para auscultar melhor as vozes, as luzes e as
interpelações de Deus, em meio às tantas dúvidas, impasses e desencontros que
se mesclam na nossa rica consciência humana.
Espiritualidade
Vaga no significado,
E evasiva no legado,
Expressa um ensejo,
Do humano desejo.
Não nega o material,
Porque arrosta o real,
E enleva todo finito,
Com seu contradito.
É entrega ao inefável,
Da comunhão amável,
Do meio circundante,
E da beleza diletante.
Não é espiritualismo,
Tampouco espiritismo,
Mas nela está o dom,
De um itinerário bom.
No caminho ascético,
Ao avesso do eclético,
Seu olhar apaixonado,
Capta humano legado.
Nem fuga do humano,
Ou do seu desengano,
Contempla todo real,
E lhe aponta luz vital.
ECO-ESPIRITUALIDADE
Sob o gosto das rezas
intimistas,
Fervem sortilégios
triunfalistas,
Mas, somem olhares
amorosos,
E procedimentos
esperançosos.
Cuidado, termo sumido
da fala,
Do discurso que tanto
propala,
Progresso e avanço
ilimitado,
Acaba proliferando um
enfado.
Na esperança do agir mágico,
De um Deus neste rol
trágico,
Espera-se que mude o
estrago,
Feito por um desumano
frago.
Esqueceu-se da
espiritualidade,
Imbricada com nossa
realidade,
Biológica e também
sociológica,
Numa inter-atuação
pedagógica.
A espiritualidade sem
ambiente,
Sem a casa de lar
compadecente,
Perde o vínculo com a
Mãe-Terra,
E inserção na riqueza
que encerra.
Sem o cuidado e devido
respeito,
Este antropocentrismo
no peito,
Centraliza o indivíduo
no mundo,
E torna o entendimento
iracundo.
Sumido todo relacionamento
ético,
Conta apenas o
ostensório estético,
Que, em nada valoriza a
cooperação,
Mas, absolutiza a lei
da competição.
Assim, a
espiritualidade para o além,
Que ao nosso sistema
tanto convém,
Não une e em nada reúne
no cuidado,
E nem se abre ao diferente
inusitado.
Produz fé intimista,
nada acolhedora,
Que obcecada numa ação
demolidora,
Quer ajuda divina com
generosidade,
E desequilibra o
planeta à saciedade.
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