Sinopse
A
meritocracia constitui um mito, e, quando usado ideologicamente, justifica a
desigualdade social. O ideal iluminista efetuou resultados visíveis no combate
à pobreza e desigualdade humana, mas gestou, simultaneamente, as bases de uma
nova concepção, através da meritocracia e da teologia da prosperidade. Assim,
relega-se a pobreza à sua própria sorte e culpa, porque os pobres teriam
desperdiçado dedicação, empenho e talento na corrida pelo alcance de condições
confortáveis de riqueza e bem-estar econômico.
A orientação
da Igreja Católica, ao contrário da meritocracia, valoriza a graça, e, os
méritos são considerados não como poder, mas, como mediações para o serviço. Esse
ideal evangélico, no entanto, não é uniforme em todos os âmbitos da Igreja,
porque em certos ambientes, setores da Igreja captam por osmose o que se faz
nas empresas e organizações sociais, e, como boa parte de católicos atua nestes
campos, pende para a meritocracia na perspectiva do poder.
Palavras-chave:
Mérito – poder – pobreza – culpa – empenho.
1 – Meritocracia – um
conceito ambíguo
O termo
“meritocracia” constitui um neologismo proveniente da junção de duas palavras: mereo, do latim, que significa merecer, ser
digno; e kratos, sufixo do grego, que
significa força e poder. Dessa junção decorre uma conotação evidente: o poder
advém do merecimento. Aparentemente, nada demais. No entanto, esta significação
tem largas consequências tanto na organização social quanto no âmbito da Igreja
Católica, pois repercute diretamente na diferenciação social e nas
desigualdades entre as pessoas.
Como
entender o insistente discurso de que todos somos iguais perante a Lei, quando
o alcance dos privilégios é atribuído aos méritos decorrentes de talento,
inteligência e dedicação? E os que sobram, possuem eles o mesmo ambiente de
condições ao daqueles que alcançam poder e honra?
Stefano
Zamagni faz uma distinção entre meritocracia e meritoriedade: “enquanto a meritocracia evoca o princípio
do mérito na fase de distribuição de riqueza, ou seja, ‘post factum’, a
meritoriedade busca aplica-lo na fase em que se gera a riqueza, visando a
assegurar a igualdade das capacitações, e não somente das oportunidades.”[1]
No entanto, a ideia de que as desigualdades teriam uma vinculação
congênita à condição humana, como algo natural, leva à suposição de que a
desigualdade constitui um mal necessário para viabilizar o progresso. Seria
como predisposição a certas doenças com a quais se deve aprender a conviver.
Mesmo assim, os tempos modernos revelaram, sobretudo através do Iluminismo, uma
batalha campal intensa e de larga envergadura contra a desigualdade (lema da
liberdade, fraternidade e igualdade) e engendrou extraordinárias conquistas
científicas, filosóficas, espirituais e econômicas.
Mesmo assim,
o alcance desta batalha, ficou muito aquém do discurso, porque a aceleração do
desenvolvimento abriu uma nova perspectiva. Apesar dos avanços na inclusão
social, na maior igualdade, no aumento dos direitos, a diminuição de pobres e
de castas privilegiadas, o tripé constituído por “economia-finanças e política”
efetuou uma contra-revolução para sustentar a desigualdade. A partir das
grandes empresas multinacionais e escolas internacionais de negócios, implantou-se
uma novidade inusitada: culto universal ao capitalismo, com legitimação moral e
espiritual dos seus fundamentos.
Efetuou-se,
então, o grande milagre da modernidade, que foi o de assimilar a desigualdade a
partir da noção de meritocracia. Desta forma, a desigualdade passou a ser
assimilada não mais como sendo um mal, mas, como um bem. Deixou de ser defeito,
para constituir-se numa grande virtude. E, desde então, meritocracia virou uma
palavra simpática e carregada de valor semântico perante o velho e conhecido
conceito da desigualdade. Os profetas desta nova espiritualidade fazem os
apelos incisivos a respeito dos talentos – não mais vistos como dons ou graça –
mas, como méritos pelas suas virtualidades, tão elogiadas por conter uma nova
propriedade moral: os méritos elevam-se
como virtude na sociedade desigual.
De fato, a
meritoriedade pode constituir um grande sistema de legitimação de privilégios
herdados ou hauridos de uma elite, tanto no campo social quanto no religioso.
Sobretudo nestes últimos tempos, torna-se mais evidente que setores
reacionários sequestram o ideal da liberdade através da sustentação do mito,
muito simpático, de que todos possuem oportunidades iguais. Esta falácia, tende
a enganar muita gente.
César
Renduelles salienta que este nicho do discurso, ajuda muito a direita e a extrema-direita
na monopolização de perspectivas conservadoras e reacionárias em defesa da
liberdade:
“Se há um discurso recorrente da direita, é
sua aposta entusiasmada na meritocracia, como resposta veemente em que define a
meritocracia como uma fórmula proposta pelas elites para perpetuar os seus
privilégios...”[2]
A defesa
desta liberdade torna-se equivalente a afirmar: “deixe-me fazer o que eu quero”,
porque a liberdade gesta a igualdade. Dá-se a entender que liberdade consiste
em satisfazer desejos. A noção igualitária, por exemplo, esconde privilégios
entre homens e mulheres, pois homens não aceitam partilhá-los na mesma medida
com mulheres. Da mesma forma, a promoção de certos indivíduos na sociedade,
quer civil ou religiosa, ao ser justificada como decorrência de méritos,
alimenta, de forma sutil, as desigualdades sociais. Como diz Sidney Chalhoub:
“A meritocracia como valor universal, fora
das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito
que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que
caracterizam a nossa sociedade.[3]
Na verdade,
este mito procede da concepção Darwinista que justifica a lei da sobrevivência
do mais forte, do mais esperto e ágil. O efeito disso, é que grandes setores da
sociedade ficam excluídos, ignorados e relegados à própria sorte. E como
suportam tal jogo de engano?
Há belos
discursos que repetem a toda hora que todos tem as mesmas chances de êxito na
disputa por posições de excelência e, se alguns ficam para trás, é mera culpa
pessoal porquanto não se dedicaram suficientemente. Estes perdedores, então, são
persuadidos a se culparem a si mesmos diante do fracasso experimentado, e, forçados
à resignação, conformam-se pela perda na disputa por lugares hegemônicos e pela
impossibilidade de desfrutar do status simbólico na cultura, uma vez que teriam
sido pouco efetivos no desenvolvimento de suas habilidades.
Quando a
meritocracia é entendida pela noção de que as pessoas se destacam a partir dos
seus méritos, sem o condicionante de seus pais, do lugar onde moram e das condições
sociais do seu entorno, as conquistas atribuídas à dedicação pessoal,
efetivamente, ocultam a real desigualdade, pois, os procedentes de um ambiente
privilegiado oferecem, mais do que talento e habilidades pessoais, uma larga
vantagem de predisposições avantajadas sobre os concorrentes.
Esta
enganação, através do apelo à meritocracia, permite a auto-sustentação de um
sistema fechado de elites que oferecem condições especiais a seus filhos, em
nada viáveis à grande parcela da sociedade e que jamais consegue fornecer estas
mesmas condições a seus filhos. Assim, os super-especializados, na justificação
da meritoriedade, levam grande vantagem para ocupar os cargos de poder e são
justificados como merecedores dos salários abusivos que recebem, pois alega-se
que tal remuneração é literalmente justa, porque os vencedores a merecem em
razão do seu talento, esforço e dedicação. Percebe-se, pois, que a desigualdade
é sistêmica e estrutural.
“...em países como o Brasil, há uma
desigualdade não meritocrática – ou seja, uma desigualdade aristocrática antiga
– em que elites herdam grandes propriedades ou outros tipos de capital. De
forma hereditária, simplesmente. Ao mesmo tempo, o Brasil também tem uma classe
profissional cada vez mais bem paga, como banqueiros e advogados que ganham
muito dinheiro supostamente por suas habilidades. E é aqui que a meritocracia
causa problemas.”[4]
Aparentemente
a chance de alcançar lugares privilegiados é igual a um jogo ou uma corrida.
Depois da largada, vence quem faz mais pontos, gols ou quem é mais rápido. As
chances são iguais. No entanto, quem ganha será que é por merecimento? As
condições da largada, na verdade, não são iguais. Assim, empresas, escolas e
universidades iniciam a disputa com condições muito desiguais dos interessados
na vitória.
Estas instituições ajudam a ampliar a
divisão social, pois produzem bem-sucedidos e fracassados. Aufere-se, então,
mérito ao poder dos bem-sucedidos. O merecedor é condecorado e aceita-se como
sendo justo que desfrute do poder e justifica-se a promoção através da alegação
aos méritos (aptidões, esforço, empenho pessoal e dedicação). Não se considera
a origem dos concorrentes, pois alguns apresentam larga vantagem em relação a
outros a partir de privilégios anteriores.
A meritocracia oculta toda a
implicação do antes da competição. O resultado é o de poucos privilegiados e
muitos relegados (como os daqueles 1% de brasileiros com a maior parte da renda
nacional). Os perdedores precisam conformar-se com a culpa do seu próprio
fracasso.
“A meritocracia produz uma elite que diz
servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa
forma, o que faz é dar a todo restante da sociedade uma razão poderosa para
desconfiar das elites.”[5]
O populismo
consegue explorar esta meritocracia sob dois aspectos: na produção de uma elite
que alega servir e promover o interesse público, mas serve precipuamente a si
mesma e produz uma insinuação psíquica que dá a entender que a exclusão depende
apenas de questões individuais de falta de empenho e dedicação. Nesse jogo
político enganador, justifica-se a desvantagem do resultado mediante o nível de
empenho, e permite também justificar a raiva do populismo destruidor da
política com o “jogo sujo” das supostas perseguições aos seus méritos.
No abuso do
ressentimento o populismo desencadeia uma batalha contra os supostos inimigos,
para obtenção de apoio que confirme a batalha autoritária com vistas à
aprovação de quaisquer resultados que essas elites ambicionam. Enquanto isso, o
discurso político contra meritocracias efetua precisamente a confirmação do que
condena, ou que alega demolir:
“Entre nós, a meritocracia constitui-se
ainda como um critério formal e eventual em permanente disputa com o nepotismo,
o fisiologismo e os privilégios corporativos. Expressões e eufemismos do tipo
‘ministro da cota do presidente’, cargo ou ministério técnico’, política de
reciprocidade’, ‘é dando que se recebe’, QI(quem indica), ‘entrar pela janela’,
‘amigos do rei’, ‘apadrinhados’, ‘afilhados’, entre outros, são utilizados frequentemente no linguajar
político, organizacional e cotidiano, para ilustrar as lógicas e as práticas de
preenchimento, promoção e reconhecimento e funções que as pessoas julgam ser
prevalecentes entre nós, tanto nas organizações públicas como privadas, e que
soam, pelo menos discursivamente, de maneira condenatória.”[6]
Este discurso
meritocrático também reflete uma cultura paternalista, na qual prevalecem
apadrinhamentos e relações pessoais, ausência de cobranças, indicações
nepotistas que, enfim, configuram um tradicional caráter paternalista. E como
fica o discurso religioso católico neste contexto?
2 – MERITOCRACIA NA
IGREJA CATÓLICA
O crescente e indecoroso crescimento
das injustiças e desigualdades sociais de nosso tempo, interpela frontalmente a
mensagem cristã. Apresenta esta mensagem uma argumentação sólida contra a meritocracia?
Ou vive-se, também na Igreja Católica, a meritocracia?
Bem sabemos que a veiculação de uma
mensagem religiosa, seja católica ou de outra instituição, sempre se situa num
contexto, numa cultura e numa forma de veiculação cultural. Como empresas e
grandes instituições sociais se orientam pela meritocracia, é natural que o
discurso católico facilmente pode se impregnar da mesma concepção
meritocrática. Ainda mais, porque muitos católicos estão estreitamente
alinhados com o capitalismo moderno, o grande sustentador do mito da
meritocracia. Tampouco faltam cristãos a se ufanar que seus grandes acúmulos de
bens materiais são devidos à graça de Deus e aos seus méritos pessoais de
dedicação, trabalho e persistência.
2.1 – Meritocracia em Jesus Cristo
Não consta nos evangelhos que Jesus
Cristo tenha destacado a meritocracia. Basta lembrar que ele, ao contrário,
insistia que o Pai ama a todos da mesma maneira, e que a “chuva cai sobre bons
e maus”. Foi radical na cobrança a seus seguidores para que amassem a todas as
pessoas, independentemente de condições sociais e de traços étnico-culturais. O
Evangelho de Mateus destaca (20,26) que o maior deve ser aquele que serve.
Servir não é a mesma coisa que mandar.
Na parábola do “bom samaritano”,
Jesus deixou transparecer sua posição contra a meritoriedade porque o socorro e
a atenção ao desventurado foi feito sem nenhum merecimento, mas, porque se
tratava de um ser humano. Ainda que o pobre vivente merecesse ajuda, o
problema, todavia está, não na meritocracia em si, mas na associação do poder
relacionado à meritocracia.
Segundo o Papa Francisco a
meritocracia torna-se fascinante porque está ligada à palavra “mérito”, “mas, como a instrumentaliza e a usa de modo
ideológico ela a desvaloriza e a perverte. A meritocracia, para além da boa fé
dos tantos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da
desigualdade.”[7]
O Papa também ressalta outra
consequência da meritocracia: “é a
mudança da cultura da pobreza. O pobre é considerado um desmerecido e, portanto,
culpado. E se a pobreza é culpa do pobre, os ricos são exonerados de fazer
algo.”[8]
A lógica do Evangelho é outra, pois na parábola do filho pródigo, o
procedimento do irmão mais velho representa a meritocracia, porque despreza o
irmão mais novo e deseja que permaneça no seu fracasso, uma vez que o mereceu.
O pai, no entanto, não deseja bolotas para porcos a nenhum dos dois filhos.
No cristianismo primitivo ficou muito
evidente a concepção de que o que realmente importava era a graça e não o merecimento.
Até mesmo a salvação era entendida como graça. Algo conquistado por
merecimentos estaria fora do âmbito da graça. Ao mesmo tempo, se um seguidor de
Jesus Cristo não agisse na dimensão da graça, não seria capaz de manifestar
algum sinal de misericórdia. Segundo Luigino Bruni:
“...o cristianismo, animado por uma radical mensagem de fraternidade
universal, tratou de lutar contra este dado da natureza tentou desarticular as
desigualdades que se encontravam na base das estruturas hierárquicas sagradas
das sociedades antigas. Mesmo assim, as épocas de igualdade sempre foram breves
e se limitaram a pequenas comunidades.”[9]
Por outro lado, a longa e ampla
história europeia cristã não se caracterizou pela igualdade e se revelou
repleta de guerras, de castas e de exercício do poder tirano.
2.2 – Casamento prolífero
O Calvinismo, ao romper com a Igreja
Católica romana acabou apontando para uma nova ética do trabalho, pois o
trabalho duro e disciplinado, ao lado de uma vida frugal (prudência e poupança),
diante da predestinação da salvação, oferecia aos indivíduos inseguros de
estarem sendo salvos por Deus, um lenitivo e uma segurança fundamental: o
sucesso na vida econômica era assimilado como um sinal de bênção da parte de
Deus. E se Deus abençoa alguém, está dando indícios de que não vai condená-lo.
Sem demora, a noção de acúmulo, de
riquezas e de bem-estar financeiro, passou a ser supervalorizado porquanto
representava mais bênção e mais garantia de salvação. Este germe de meritocracia viria instaurar o
sistema capitalista e a teologia da prosperidade, pois, entendia-se que Deus
desejava esta bênção financeira às pessoas. E, uma vez que Deus abençoa as
pessoas, está apontando o caminho seguro da redenção.
O movimento neopentecostal difundiu
esta noção e a fez chegar ao senso-comum na simpática suposição de que riqueza
material, significa bênção de Deus. Assim, cada vez mais, o cotidiano das
pessoas passou a impregnar-se da justificativa do discurso meritocrático, a
ponto de ocupar o centro no quadro político.
A consolidação do fundamentalismo econômico
neoliberal com o fundamentalismo religioso cristão foi um sucesso. Deste enlace,
nasceu a nova configuração da religião atrelada ao dinheiro. E tornou-se muito
habitual que ao longo de uma semana, algum momento de um dia seja para o louvor
ao Senhor e o resto do dia, com os outros seis dias, para o atraente culto ao
dinheiro, o deus Mamón, que gratifica o empenho e a dedicação com acesso a mais
dinheiro.
“A
religião fundamentalista trás para a política a transcendência da origem do
poder. A Sociedade necessita de uma autoridade que defina o que é o bem e o
mal. Essa ortodoxia somente a religião pode impor. Sua hierarquia de princípios
morais é intocável e suas certezas teológicas são indiscutíveis. Portadores da
ira divina, sentem-se no direito de punir e ameaçar quem contesta sua
ideologia. Sua causa é a causa de Deus. E Deus está acima de tudo e de todos.”[10]
Dali também decorre a indisposição
para o diálogo porquanto o fundamentalista, ao sentir-se ungido por Deus, sabe
que leva a doutrina de Deus para a sociedade através da mediação do controle do
poder público. Desta forma, o mal, personificado nos opositores, é combatido de
todas as formas, sem trégua.
A prole deste casamento fundamentalista
é vasta com o aparato da teologia da prosperidade. E não são poucas as
entidades religiosas que apontam a felicidade de Deus, concedida através de sua
pregação, para este mundo: vida longa com boa saúde e muito dinheiro. Sob este
fascínio, a pobreza já não inquieta mais, porque, afinal, está relacionada a
pecado, a falta de fé, a pouco empenho e ao não aproveitamento dos talentos
para chegar ao belo desfrute que torna a vida feliz.
Neste vislumbre de felicidade,
todavia, a democracia sai toda corroída e o cristianismo fica descristianizado,
porque já não considera os atos e as palavras de Jesus Cristo para os que
querem segui-lo. Em razão disto, temos um Estado cristão capitalista e uma
teologização da política.
Aos pobres, resta o conformismo dos
que falam em seu nome e os convencem da sua culpa, pois, se degradaram e se
revelaram fracos no empenho para a corrida da vitória, e, por isso, são merecedores
de desprezo e desconsideração. Na verdade, ainda que tenham muito talento,
energia e habilidade, são literalmente desviados do acesso à elevação
hierárquica. A concepção do seu fracasso está diretamente relacionada à
ascensão da meritocracia econômica.
Quando o sucesso econômico é visto
como decente passa-se como natural a disputa obsessiva por dinheiro, e esta
busca passa a constituir a finalidade última da vida. Yung MO SUNG salienta tal
perspectiva, citando uma frase de George Soros:
“Os que conquistam o sucesso talvez não saibam o que fazer com o
dinheiro, mas pelo menos tem a certeza de que as outras pessoas invejam o seu
êxito. É possível que seja o suficiente para impulsioná-los para frente
indefinidamente, apesar da falta de qualquer outra motivação.”[11]
Quando o consumo se torna a medida da
vida bem sucedida e feliz, todos são motivados a correr obstinadamente nesta
busca. Neste contexto,
“O
discurso da ideologia da meritocracia e da cultura do contentamento levam as
pessoas a não considerarem a pobreza e a exclusão social como um problema
social, mas sim como uma realização de uma justiça transcendente. A do mercado
transcendentalizado. Deste modo as vítimas são transformadas em culpadas. E a
cultura do consumo faz as pessoas olharem fixamente, obsessivamente, no seu
objeto de desejo de consumo e assim não as deixam nem enxergar que os pobres
existem.”[12]
Em razão disto, as vítimas culpadas
devem não aparecer, e quando eventualmente aparecem, que seja para confirmar
que estão felizes com o consumo. Assim também muitas pessoas católicas ignoram
que Jesus falou que tudo quanto fosse feito a um destes irmãos mais pequeninos,
estaria sendo feito a ele. Nesta perspectiva, o Papa Francisco lembra na
Encíclica Fratelli Tutti que:
A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as
liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam
condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado a
fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à
igualdade...Tampouco se alcança a igualdade definindo abstratamente que ‘todos
os seres são iguais’ mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da
fraternidade (n. 103 e 104).”[13]
Certamente não é interessante que
grandes parcelas da humanidade sejam sacrificadas para que uma pequena parcela
desfrute ilimitadamente as condições humanas.
Epílogo
A Igreja entrelaça seu campo de ação impregnada
pela cultura, e esta apresenta peculiaridades não uniformes no meio da
sociedade humana. Deste modo, a Igreja, em alguns ambientes, relega mais do que
em outros, os fundamentos evangélicos pertinentes à meritocracia e os utiliza
na ótica do poder, traindo noções fundamentais na sua tarefa de solidariedade
com a pobreza.
Uma observação sobre o discurso
religioso e posturas na lida cotidiana, explicitados em algumas grandes cidades
brasileiras, no que diz respeito à meritocracia, permite delinear que o modo de
agir na evangelização difere de outras cidades: numas ocorre maior coerência
evangélica, e se faz leitura sociológica da pobreza como resultado de injustiça
social. Em razão disso, torna-se visível uma contradição no modo como parte de
leigos cristãos, bem como do clero, sejam avessos ao empenho contra a
desigualdade social e se aferram no poder conquistado.
Não deixa de ser desconfortável
situar-se entre opulência e grande riqueza de parte da sociedade, ao lado de
uma pobreza escancarada, e, ao mesmo tempo, ignorada e ocultada diante dos
grandes projetos sociais e do horizonte dos que exercem o poder, discursivamente
declarado em favor de todos.
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[1] Stefano Zamagni (trad. Moisés Sbardelotto). Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. In:
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[2] Em entrevista sobre A meritocracia é um sistema de legitimação de privilégios herdados. In:
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[3] Sidney Chalhoub, em entrevista ao Jornal da
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[4]
Daniel Markovitz. Farsa da meritocracia
cria ressentimento explorado por populistas como Trump e Bolsonaro. In:
bbc.com/portuguese/geral-54373123 Acessado 07/10/2020.
[5] Idem, ibidem.
[6] Lívia Barbosa. Meritocracia e sociedade brasileira. In:
scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid=S0034-75902014000100008 Acessado
07/10/2020.
[7] Em discurso feito na Empresa Ilva de Gênova.
In: ihu-unisinos.br/eventos/186-noticias/noticias-2017/568165-contra-o-totem-da-meritocracia-a-grande-lição
do-papa-bergolio >Reportagem de Fabrizio d’Esposito (trad. Moisés
Sbardelotto) Acess. 10/10/2020.
[8] Idem, ibidem.
[9] Luigino Bruni. Desigualdad y meritocracia. In:
ciudadnueva.com.ar/desigualdade-y-meritocracia/ Acesado 09/10/2020.
[10] Élio Estanislau Gasda. Estado ‘cristão” e Neoliberalismo: não podeis servir a dois senhores
(Mt 6, 24). In: C:/Users/joaoi/Downloads/1296-5514-3PB.pdf Acessado
09/10/2020.
[11] Frase citada do livro A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 163, por
MO SUNG YUNG. In:
[12] MO SUNG, Yung. A crise do cristianismo e a crise do mundo. In:servicioskoinonia.org/relat/247p.htm
Acessado 10/10/2020
[13] Encíclica Fratelli Tutti In: www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.
Html Acessado 12/10/2020.
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