quarta-feira, 14 de outubro de 2020

MERITOCRACIA NA IGREJA CATÓLICA

 

 

Sinopse

            A meritocracia constitui um mito, e, quando usado ideologicamente, justifica a desigualdade social. O ideal iluminista efetuou resultados visíveis no combate à pobreza e desigualdade humana, mas gestou, simultaneamente, as bases de uma nova concepção, através da meritocracia e da teologia da prosperidade. Assim, relega-se a pobreza à sua própria sorte e culpa, porque os pobres teriam desperdiçado dedicação, empenho e talento na corrida pelo alcance de condições confortáveis de riqueza e bem-estar econômico.

            A orientação da Igreja Católica, ao contrário da meritocracia, valoriza a graça, e, os méritos são considerados não como poder, mas, como mediações para o serviço. Esse ideal evangélico, no entanto, não é uniforme em todos os âmbitos da Igreja, porque em certos ambientes, setores da Igreja captam por osmose o que se faz nas empresas e organizações sociais, e, como boa parte de católicos atua nestes campos, pende para a meritocracia na perspectiva do poder.

Palavras-chave:  Mérito – poder – pobreza – culpa – empenho.

 

1 – Meritocracia – um conceito ambíguo

 

            O termo “meritocracia” constitui um neologismo proveniente da junção de duas palavras: mereo, do latim, que significa merecer, ser digno; e kratos, sufixo do grego, que significa força e poder. Dessa junção decorre uma conotação evidente: o poder advém do merecimento. Aparentemente, nada demais. No entanto, esta significação tem largas consequências tanto na organização social quanto no âmbito da Igreja Católica, pois repercute diretamente na diferenciação social e nas desigualdades entre as pessoas.

            Como entender o insistente discurso de que todos somos iguais perante a Lei, quando o alcance dos privilégios é atribuído aos méritos decorrentes de talento, inteligência e dedicação? E os que sobram, possuem eles o mesmo ambiente de condições ao daqueles que alcançam poder e honra?

            Stefano Zamagni faz uma distinção entre meritocracia e meritoriedade: “enquanto a meritocracia evoca o princípio do mérito na fase de distribuição de riqueza, ou seja, ‘post factum’, a meritoriedade busca aplica-lo na fase em que se gera a riqueza, visando a assegurar a igualdade das capacitações, e não somente das oportunidades.”[1]

            No entanto, a ideia de que as desigualdades teriam uma vinculação congênita à condição humana, como algo natural, leva à suposição de que a desigualdade constitui um mal necessário para viabilizar o progresso. Seria como predisposição a certas doenças com a quais se deve aprender a conviver. Mesmo assim, os tempos modernos revelaram, sobretudo através do Iluminismo, uma batalha campal intensa e de larga envergadura contra a desigualdade (lema da liberdade, fraternidade e igualdade) e engendrou extraordinárias conquistas científicas, filosóficas, espirituais e econômicas.

            Mesmo assim, o alcance desta batalha, ficou muito aquém do discurso, porque a aceleração do desenvolvimento abriu uma nova perspectiva. Apesar dos avanços na inclusão social, na maior igualdade, no aumento dos direitos, a diminuição de pobres e de castas privilegiadas, o tripé constituído por “economia-finanças e política” efetuou uma contra-revolução para sustentar a desigualdade. A partir das grandes empresas multinacionais e escolas internacionais de negócios, implantou-se uma novidade inusitada: culto universal ao capitalismo, com legitimação moral e espiritual dos seus fundamentos.

            Efetuou-se, então, o grande milagre da modernidade, que foi o de assimilar a desigualdade a partir da noção de meritocracia. Desta forma, a desigualdade passou a ser assimilada não mais como sendo um mal, mas, como um bem. Deixou de ser defeito, para constituir-se numa grande virtude. E, desde então, meritocracia virou uma palavra simpática e carregada de valor semântico perante o velho e conhecido conceito da desigualdade. Os profetas desta nova espiritualidade fazem os apelos incisivos a respeito dos talentos – não mais vistos como dons ou graça – mas, como méritos pelas suas virtualidades, tão elogiadas por conter uma nova propriedade moral:  os méritos elevam-se como virtude na sociedade desigual.

            De fato, a meritoriedade pode constituir um grande sistema de legitimação de privilégios herdados ou hauridos de uma elite, tanto no campo social quanto no religioso. Sobretudo nestes últimos tempos, torna-se mais evidente que setores reacionários sequestram o ideal da liberdade através da sustentação do mito, muito simpático, de que todos possuem oportunidades iguais. Esta falácia, tende a enganar muita gente.

            César Renduelles salienta que este nicho do discurso, ajuda muito a direita e a extrema-direita na monopolização de perspectivas conservadoras e reacionárias em defesa da liberdade:

            “Se há um discurso recorrente da direita, é sua aposta entusiasmada na meritocracia, como resposta veemente em que define a meritocracia como uma fórmula proposta pelas elites para perpetuar os seus privilégios...”[2]

            A defesa desta liberdade torna-se equivalente a afirmar: “deixe-me fazer o que eu quero”, porque a liberdade gesta a igualdade. Dá-se a entender que liberdade consiste em satisfazer desejos. A noção igualitária, por exemplo, esconde privilégios entre homens e mulheres, pois homens não aceitam partilhá-los na mesma medida com mulheres. Da mesma forma, a promoção de certos indivíduos na sociedade, quer civil ou religiosa, ao ser justificada como decorrência de méritos, alimenta, de forma sutil, as desigualdades sociais. Como diz Sidney Chalhoub:

            “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade.[3]

            Na verdade, este mito procede da concepção Darwinista que justifica a lei da sobrevivência do mais forte, do mais esperto e ágil. O efeito disso, é que grandes setores da sociedade ficam excluídos, ignorados e relegados à própria sorte. E como suportam tal jogo de engano?

            Há belos discursos que repetem a toda hora que todos tem as mesmas chances de êxito na disputa por posições de excelência e, se alguns ficam para trás, é mera culpa pessoal porquanto não se dedicaram suficientemente. Estes perdedores, então, são persuadidos a se culparem a si mesmos diante do fracasso experimentado, e, forçados à resignação, conformam-se pela perda na disputa por lugares hegemônicos e pela impossibilidade de desfrutar do status simbólico na cultura, uma vez que teriam sido pouco efetivos no desenvolvimento de suas habilidades.

            Quando a meritocracia é entendida pela noção de que as pessoas se destacam a partir dos seus méritos, sem o condicionante de seus pais, do lugar onde moram e das condições sociais do seu entorno, as conquistas atribuídas à dedicação pessoal, efetivamente, ocultam a real desigualdade, pois, os procedentes de um ambiente privilegiado oferecem, mais do que talento e habilidades pessoais, uma larga vantagem de predisposições avantajadas sobre os concorrentes.

            Esta enganação, através do apelo à meritocracia, permite a auto-sustentação de um sistema fechado de elites que oferecem condições especiais a seus filhos, em nada viáveis à grande parcela da sociedade e que jamais consegue fornecer estas mesmas condições a seus filhos. Assim, os super-especializados, na justificação da meritoriedade, levam grande vantagem para ocupar os cargos de poder e são justificados como merecedores dos salários abusivos que recebem, pois alega-se que tal remuneração é literalmente justa, porque os vencedores a merecem em razão do seu talento, esforço e dedicação. Percebe-se, pois, que a desigualdade é sistêmica e estrutural.

            “...em países como o Brasil, há uma desigualdade não meritocrática – ou seja, uma desigualdade aristocrática antiga – em que elites herdam grandes propriedades ou outros tipos de capital. De forma hereditária, simplesmente. Ao mesmo tempo, o Brasil também tem uma classe profissional cada vez mais bem paga, como banqueiros e advogados que ganham muito dinheiro supostamente por suas habilidades. E é aqui que a meritocracia causa problemas.”[4]

            Aparentemente a chance de alcançar lugares privilegiados é igual a um jogo ou uma corrida. Depois da largada, vence quem faz mais pontos, gols ou quem é mais rápido. As chances são iguais. No entanto, quem ganha será que é por merecimento? As condições da largada, na verdade, não são iguais. Assim, empresas, escolas e universidades iniciam a disputa com condições muito desiguais dos interessados na vitória.

Estas instituições ajudam a ampliar a divisão social, pois produzem bem-sucedidos e fracassados. Aufere-se, então, mérito ao poder dos bem-sucedidos. O merecedor é condecorado e aceita-se como sendo justo que desfrute do poder e justifica-se a promoção através da alegação aos méritos (aptidões, esforço, empenho pessoal e dedicação). Não se considera a origem dos concorrentes, pois alguns apresentam larga vantagem em relação a outros a partir de privilégios anteriores.

A meritocracia oculta toda a implicação do antes da competição. O resultado é o de poucos privilegiados e muitos relegados (como os daqueles 1% de brasileiros com a maior parte da renda nacional). Os perdedores precisam conformar-se com a culpa do seu próprio fracasso.

            “A meritocracia produz uma elite que diz servir ao interesse público, mas que, na verdade, serve a si mesma. Dessa forma, o que faz é dar a todo restante da sociedade uma razão poderosa para desconfiar das elites.”[5]

            O populismo consegue explorar esta meritocracia sob dois aspectos: na produção de uma elite que alega servir e promover o interesse público, mas serve precipuamente a si mesma e produz uma insinuação psíquica que dá a entender que a exclusão depende apenas de questões individuais de falta de empenho e dedicação. Nesse jogo político enganador, justifica-se a desvantagem do resultado mediante o nível de empenho, e permite também justificar a raiva do populismo destruidor da política com o “jogo sujo” das supostas perseguições aos seus méritos.

            No abuso do ressentimento o populismo desencadeia uma batalha contra os supostos inimigos, para obtenção de apoio que confirme a batalha autoritária com vistas à aprovação de quaisquer resultados que essas elites ambicionam. Enquanto isso, o discurso político contra meritocracias efetua precisamente a confirmação do que condena, ou que alega demolir:

            “Entre nós, a meritocracia constitui-se ainda como um critério formal e eventual em permanente disputa com o nepotismo, o fisiologismo e os privilégios corporativos. Expressões e eufemismos do tipo ‘ministro da cota do presidente’, cargo ou ministério técnico’, política de reciprocidade’, ‘é dando que se recebe’, QI(quem indica), ‘entrar pela janela’, ‘amigos do rei’, ‘apadrinhados’, ‘afilhados’, entre outros,  são utilizados frequentemente no linguajar político, organizacional e cotidiano, para ilustrar as lógicas e as práticas de preenchimento, promoção e reconhecimento e funções que as pessoas julgam ser prevalecentes entre nós, tanto nas organizações públicas como privadas, e que soam, pelo menos discursivamente, de maneira condenatória.”[6]

            Este discurso meritocrático também reflete uma cultura paternalista, na qual prevalecem apadrinhamentos e relações pessoais, ausência de cobranças, indicações nepotistas que, enfim, configuram um tradicional caráter paternalista. E como fica o discurso religioso católico neste contexto?

 

2 – MERITOCRACIA NA IGREJA CATÓLICA

 

O crescente e indecoroso crescimento das injustiças e desigualdades sociais de nosso tempo, interpela frontalmente a mensagem cristã. Apresenta esta mensagem uma argumentação sólida contra a meritocracia? Ou vive-se, também na Igreja Católica, a meritocracia?

Bem sabemos que a veiculação de uma mensagem religiosa, seja católica ou de outra instituição, sempre se situa num contexto, numa cultura e numa forma de veiculação cultural. Como empresas e grandes instituições sociais se orientam pela meritocracia, é natural que o discurso católico facilmente pode se impregnar da mesma concepção meritocrática. Ainda mais, porque muitos católicos estão estreitamente alinhados com o capitalismo moderno, o grande sustentador do mito da meritocracia. Tampouco faltam cristãos a se ufanar que seus grandes acúmulos de bens materiais são devidos à graça de Deus e aos seus méritos pessoais de dedicação, trabalho e persistência.

 

2.1 – Meritocracia em Jesus Cristo

 

Não consta nos evangelhos que Jesus Cristo tenha destacado a meritocracia. Basta lembrar que ele, ao contrário, insistia que o Pai ama a todos da mesma maneira, e que a “chuva cai sobre bons e maus”. Foi radical na cobrança a seus seguidores para que amassem a todas as pessoas, independentemente de condições sociais e de traços étnico-culturais. O Evangelho de Mateus destaca (20,26) que o maior deve ser aquele que serve. Servir não é a mesma coisa que mandar.

Na parábola do “bom samaritano”, Jesus deixou transparecer sua posição contra a meritoriedade porque o socorro e a atenção ao desventurado foi feito sem nenhum merecimento, mas, porque se tratava de um ser humano. Ainda que o pobre vivente merecesse ajuda, o problema, todavia está, não na meritocracia em si, mas na associação do poder relacionado à meritocracia.

Segundo o Papa Francisco a meritocracia torna-se fascinante porque está ligada à palavra “mérito”, “mas, como a instrumentaliza e a usa de modo ideológico ela a desvaloriza e a perverte. A meritocracia, para além da boa fé dos tantos que a invocam, está se tornando uma legitimação ética da desigualdade.”[7]

O Papa também ressalta outra consequência da meritocracia: “é a mudança da cultura da pobreza. O pobre é considerado um desmerecido e, portanto, culpado. E se a pobreza é culpa do pobre, os ricos são exonerados de fazer algo.”[8] A lógica do Evangelho é outra, pois na parábola do filho pródigo, o procedimento do irmão mais velho representa a meritocracia, porque despreza o irmão mais novo e deseja que permaneça no seu fracasso, uma vez que o mereceu. O pai, no entanto, não deseja bolotas para porcos a nenhum dos dois filhos.

No cristianismo primitivo ficou muito evidente a concepção de que o que realmente importava era a graça e não o merecimento. Até mesmo a salvação era entendida como graça. Algo conquistado por merecimentos estaria fora do âmbito da graça. Ao mesmo tempo, se um seguidor de Jesus Cristo não agisse na dimensão da graça, não seria capaz de manifestar algum sinal de misericórdia. Segundo Luigino Bruni:

“...o cristianismo, animado por uma radical mensagem de fraternidade universal, tratou de lutar contra este dado da natureza tentou desarticular as desigualdades que se encontravam na base das estruturas hierárquicas sagradas das sociedades antigas. Mesmo assim, as épocas de igualdade sempre foram breves e se limitaram a pequenas comunidades.”[9]

Por outro lado, a longa e ampla história europeia cristã não se caracterizou pela igualdade e se revelou repleta de guerras, de castas e de exercício do poder tirano.

 

2.2 – Casamento prolífero

 

O Calvinismo, ao romper com a Igreja Católica romana acabou apontando para uma nova ética do trabalho, pois o trabalho duro e disciplinado, ao lado de uma vida frugal (prudência e poupança), diante da predestinação da salvação, oferecia aos indivíduos inseguros de estarem sendo salvos por Deus, um lenitivo e uma segurança fundamental: o sucesso na vida econômica era assimilado como um sinal de bênção da parte de Deus. E se Deus abençoa alguém, está dando indícios de que não vai condená-lo.

Sem demora, a noção de acúmulo, de riquezas e de bem-estar financeiro, passou a ser supervalorizado porquanto representava mais bênção e mais garantia de salvação.  Este germe de meritocracia viria instaurar o sistema capitalista e a teologia da prosperidade, pois, entendia-se que Deus desejava esta bênção financeira às pessoas. E, uma vez que Deus abençoa as pessoas, está apontando o caminho seguro da redenção.

O movimento neopentecostal difundiu esta noção e a fez chegar ao senso-comum na simpática suposição de que riqueza material, significa bênção de Deus. Assim, cada vez mais, o cotidiano das pessoas passou a impregnar-se da justificativa do discurso meritocrático, a ponto de ocupar o centro no quadro político.

            A consolidação do fundamentalismo econômico neoliberal com o fundamentalismo religioso cristão foi um sucesso. Deste enlace, nasceu a nova configuração da religião atrelada ao dinheiro. E tornou-se muito habitual que ao longo de uma semana, algum momento de um dia seja para o louvor ao Senhor e o resto do dia, com os outros seis dias, para o atraente culto ao dinheiro, o deus Mamón, que gratifica o empenho e a dedicação com acesso a mais dinheiro.

A religião fundamentalista trás para a política a transcendência da origem do poder. A Sociedade necessita de uma autoridade que defina o que é o bem e o mal. Essa ortodoxia somente a religião pode impor. Sua hierarquia de princípios morais é intocável e suas certezas teológicas são indiscutíveis. Portadores da ira divina, sentem-se no direito de punir e ameaçar quem contesta sua ideologia. Sua causa é a causa de Deus. E Deus está acima de tudo e de todos.”[10]

Dali também decorre a indisposição para o diálogo porquanto o fundamentalista, ao sentir-se ungido por Deus, sabe que leva a doutrina de Deus para a sociedade através da mediação do controle do poder público. Desta forma, o mal, personificado nos opositores, é combatido de todas as formas, sem trégua.

A prole deste casamento fundamentalista é vasta com o aparato da teologia da prosperidade. E não são poucas as entidades religiosas que apontam a felicidade de Deus, concedida através de sua pregação, para este mundo: vida longa com boa saúde e muito dinheiro. Sob este fascínio, a pobreza já não inquieta mais, porque, afinal, está relacionada a pecado, a falta de fé, a pouco empenho e ao não aproveitamento dos talentos para chegar ao belo desfrute que torna a vida feliz.

Neste vislumbre de felicidade, todavia, a democracia sai toda corroída e o cristianismo fica descristianizado, porque já não considera os atos e as palavras de Jesus Cristo para os que querem segui-lo. Em razão disto, temos um Estado cristão capitalista e uma teologização da política.

Aos pobres, resta o conformismo dos que falam em seu nome e os convencem da sua culpa, pois, se degradaram e se revelaram fracos no empenho para a corrida da vitória, e, por isso, são merecedores de desprezo e desconsideração. Na verdade, ainda que tenham muito talento, energia e habilidade, são literalmente desviados do acesso à elevação hierárquica. A concepção do seu fracasso está diretamente relacionada à ascensão da meritocracia econômica.

Quando o sucesso econômico é visto como decente passa-se como natural a disputa obsessiva por dinheiro, e esta busca passa a constituir a finalidade última da vida. Yung MO SUNG salienta tal perspectiva, citando uma frase de George Soros:

“Os que conquistam o sucesso talvez não saibam o que fazer com o dinheiro, mas pelo menos tem a certeza de que as outras pessoas invejam o seu êxito. É possível que seja o suficiente para impulsioná-los para frente indefinidamente, apesar da falta de qualquer outra motivação.”[11]

Quando o consumo se torna a medida da vida bem sucedida e feliz, todos são motivados a correr obstinadamente nesta busca. Neste contexto,

“O discurso da ideologia da meritocracia e da cultura do contentamento levam as pessoas a não considerarem a pobreza e a exclusão social como um problema social, mas sim como uma realização de uma justiça transcendente. A do mercado transcendentalizado. Deste modo as vítimas são transformadas em culpadas. E a cultura do consumo faz as pessoas olharem fixamente, obsessivamente, no seu objeto de desejo de consumo e assim não as deixam nem enxergar que os pobres existem.”[12]

Em razão disto, as vítimas culpadas devem não aparecer, e quando eventualmente aparecem, que seja para confirmar que estão felizes com o consumo. Assim também muitas pessoas católicas ignoram que Jesus falou que tudo quanto fosse feito a um destes irmãos mais pequeninos, estaria sendo feito a ele. Nesta perspectiva, o Papa Francisco lembra na Encíclica Fratelli Tutti que:

A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade. Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como resultado a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à liberdade e à igualdade...Tampouco se alcança a igualdade definindo abstratamente que ‘todos os seres são iguais’ mas resulta do cultivo consciente e pedagógico da fraternidade (n. 103 e 104).”[13]

Certamente não é interessante que grandes parcelas da humanidade sejam sacrificadas para que uma pequena parcela desfrute ilimitadamente as condições humanas.

  

Epílogo

 

A Igreja entrelaça seu campo de ação impregnada pela cultura, e esta apresenta peculiaridades não uniformes no meio da sociedade humana. Deste modo, a Igreja, em alguns ambientes, relega mais do que em outros, os fundamentos evangélicos pertinentes à meritocracia e os utiliza na ótica do poder, traindo noções fundamentais na sua tarefa de solidariedade com a pobreza.

Uma observação sobre o discurso religioso e posturas na lida cotidiana, explicitados em algumas grandes cidades brasileiras, no que diz respeito à meritocracia, permite delinear que o modo de agir na evangelização difere de outras cidades: numas ocorre maior coerência evangélica, e se faz leitura sociológica da pobreza como resultado de injustiça social. Em razão disso, torna-se visível uma contradição no modo como parte de leigos cristãos, bem como do clero, sejam avessos ao empenho contra a desigualdade social e se aferram no poder conquistado.

Não deixa de ser desconfortável situar-se entre opulência e grande riqueza de parte da sociedade, ao lado de uma pobreza escancarada, e, ao mesmo tempo, ignorada e ocultada diante dos grandes projetos sociais e do horizonte dos que exercem o poder, discursivamente declarado em favor de todos.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BARBOSA, Lívia. Meritocracia e sociedade brasileira. In: scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid=S0034-75902014000100008 Acessado dia 07/10/2020.

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____________. La meritocracia y sus limites: de categoria teológica e dogma económico. In: www.edc.online.org

CHALHOUB, Sidney. Meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades, diz Sidney Chalhoub (Entrevista ao Jornal da Unicamp). In: unicamo.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades-diz-sidney-chalhoub Acessado dia 07/10/2020.

 D’EXPOSITO,Fabrizio (trad. Moisés Sbardelotto).Contra o totem da meritocracia – a grande lição do papa Bergolio. Em discurso feito na Empresa Ilva de Gênova. In: ihu-unisinos.br/eventos/186-noticias/noticias-2017/568165-contra-o-totem-da-meritocracia-a-grande-lição do-papa-bergolio > Acess. 10/10/2020.

FREITAS, Pedro Vinícius Paliares. A gênese da narrativa meritocrática e sua ascensão no Brasil. In: médium.com/revista-subjetiva/a-gênese-da-narrativa-meritocrática-e-sua-ascensão-no-brasil-2d7408fb89f3 Acessado 10/10/2020.

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VELIQ, Fabrício. Graça e meritocracia: não se pode servir a dois senhores. In: domtotal.com/noticia/1423140/2020/02/graça-e-meritocracia-não-se-pode-sevir-a-dois-senhores Acessado dia 08/09/2020.

ZAMAGNI, Stefano. (Trad. Moisés Sbardelotto). Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. In: paroquiasaude.com.br/meritocracia-nao-meritoriedade-sim Acessado dia 08/10/2020.

 



[1]  Stefano Zamagni (trad. Moisés Sbardelotto). Meritocracia, não. Meritoriedade, sim. In: paroquiasaude.com.br/meritocracia-não-meritoriedade-sim/ Acessado 08/10/2020.

[2]  Em entrevista sobre A meritocracia é um sistema de legitimação de privilégios herdados. In: ihu-.unisinos.br/603531-a-meritocracia-e-um-sistema-de-legitimação-de-privilégios-herdados-enterevista-com-cesar-renduelles Acessado 07/10/2020.

[3]  Sidney Chalhoub, em entrevista ao Jornal da UNICAMP. In: unicamp.br/unicamp/index.php/ju/noticias/2017/06/07/meritocracia-e-um-mito-que-alimenta-desigualdades Acessado 07/10/2020.

[4] Daniel Markovitz. Farsa da meritocracia cria ressentimento explorado por populistas como Trump e Bolsonaro. In: bbc.com/portuguese/geral-54373123 Acessado 07/10/2020.

[5]  Idem, ibidem.

[6]  Lívia Barbosa. Meritocracia e sociedade brasileira. In: scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid=S0034-75902014000100008 Acessado 07/10/2020.

[7]  Em discurso feito na Empresa Ilva de Gênova. In: ihu-unisinos.br/eventos/186-noticias/noticias-2017/568165-contra-o-totem-da-meritocracia-a-grande-lição do-papa-bergolio >Reportagem de Fabrizio d’Esposito (trad. Moisés Sbardelotto) Acess. 10/10/2020.

[8]  Idem, ibidem.

[9]  Luigino Bruni. Desigualdad y meritocracia. In: ciudadnueva.com.ar/desigualdade-y-meritocracia/ Acesado 09/10/2020.

[10]  Élio Estanislau Gasda. Estado ‘cristão” e Neoliberalismo: não podeis servir a dois senhores (Mt 6, 24). In: C:/Users/joaoi/Downloads/1296-5514-3PB.pdf Acessado 09/10/2020.

[11]  Frase citada do livro A crise do capitalismo. Rio de Janeiro: Campus, 1999, p. 163, por MO SUNG YUNG. In:

[12]  MO SUNG, Yung. A crise do cristianismo e a crise do mundo. In:servicioskoinonia.org/relat/247p.htm Acessado 10/10/2020

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