quinta-feira, 19 de março de 2020

ANIMAIS LABORANTES




            Nos últimos séculos, a sociedade cada dia mais técnica e industrializada, apresenta uma tendência natural de estimular farta e especializada demanda de mão-de-obra para operar na produção. Massificada, esta demanda, aceita condições submissas, solitárias, e sem poder, e, paradoxalmente, suporta esta condição e se distrai com sonhos e devaneios das grandezas de quem os espolia no trabalho.
            A banalização deste contexto vai gestando um contexto ético-político de assimilação passiva de experiências e ações cada vez mais totalitárias, levando pessoas a tolerarem a miséria e as múltiplas tiranias como fenômenos totalmente normais da convivência. O pior, no entanto, é que a maioria da sociedade se deixa capturar pelo critério de legitimidade governamental que a transforma em meros seres naturais como outras viroses e bactérias, sem quaisquer peculiaridades culturais e genuínas de convivência. Então, fica normal a prática de atos atrozes porque quem os pratica não sente nem remorso, nem culpa e nem responsabilidade.
            A grande pandemia social que banaliza o mal fica imiscuída dos ódios alimentados, porque os constituintes da sociedade aceitam que governantes os estimulem para tais atos execráveis. Como engrenagem de uma grande máquina, o indivíduo apenas cultiva o sentimento de que deve cumprir o seu dever naquela função. E se a função é difamar, provocar, ameaçar, intimidar ou matar, executa friamente a função, sem o menor senso de culpabilidade. Como mero “animal laborante”, não pensa nas consequências e, menos ainda, inquieta–se com os efeitos dos atos que pratica. É apenas um animal tecnificado, burocratizado, que executa os comandos superiores e no lugar da capacidade de inquirir sobre os acontecimentos, sente-se bem ao ter cumprido ordens. Por isso, não pensa, não julga e tampouco admite que possa mudar suas práticas rotineiras.
            Diante deste assustador retorno dos sintomas de governantes totalitários, encaixa-se maravilhosamente bem o discurso religioso em torno do que o demônio é capaz de fazer com as pessoas.
            Apelações religiosas largamente apregoadas e, muito alinhadas com posturas governamentais totalitárias, oferecem aquele lenitivo agradável de que todos os males que se manifestam na frágil dependência social dependem da ação do demônio e da fraqueza pessoal de quem se submete a estas forças para incidir em atos maus. Todavia, a maldade, muito mais do que de consciência pecadora, depende da racionalidade da contingência humana e das características da interação humana. O mal decorre precipuamente da instrumentalização de pessoas, deslocando-as do foco de se constituírem fim, para restringi-las a serem meros meios.
            Assim, a violência banalizada e sistemática contra setores da população apresenta sempre o valoroso apelo da eliminação do inimigo. Ele não tem nome, nem função e nem gênero. É simplesmente um “elemento” dispensável e que não conta no corpo social. A simples declaração de que, um partido, um sindicado ou qualquer outra agremiação age, como inimiga do bem comum, permite o ousado direito de torturar, perseguir e extinguir qualquer outro grupo ou semelhante. Desta forma, a legitimação dos atos mais absurdos e irracionais, é extraída da mágica inversão de que tais atos são altamente racionais e necessários. Basta declarar o objeto da violência como inimigo, adversário, terrorista, marginal ou delinquente que sua eliminação já fica justificada. E se afirmar que o sujeito é “mau elemento” já conta com apreciação favorável para o imediato desaparecimento, seja físico ou moral.
            O que assusta sobremaneira é como nossos noticiários estão impregnados de informações sobre procedimentos totalitários com explícitos fanatismos ideológicos, e que já não admitem pluralidade política, mas, sentem orgulho de poder afugentar, perseguir e até torturar física e psiquicamente em nome da ordem sustentada, e, mesmo demonstrando procedimento visivelmente mórbido, estão de consciência tranquila porque fizeram o melhor do que tinham que fazer. Como pobres amoucos (sem valor de si mesmos, brigam e matam pela ideia ou ordem de outro que, por sua vez, não lhes dá simplesmente nada a não ser o orgulho de terem agido em nome dele) defendem um engravatado bem produzido por multimídia.


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