quarta-feira, 5 de março de 2014

A difícil arte de apear



            Pouca gente ainda se envolve com montarias que requerem apeadas. Se algo similar a apeadas de cavalos ou muares ainda faz parte do cotidiano, está certamente relacionado ao subir e descer escadarias, ainda que rolantes, arriar ou aterrissar em vôos de avião, nada, porém tão difícil quanto apear de patamares de honra, de poder e de precedência, quando as ascendências foram longamente perseguidas e conquistadas com muito esforço.
 Parece que a milenar arte das cavalgadas não entrou muito nos arquétipos culturais para predispor os seres humanos dos tempos modernos a procederem com mais leveza e graça a “arte de apear” de muitos lugares reais ou imaginários.
Apear para uma pousada passageira de viagens ou para descansos ainda nos envolve em certa praxe de costumes. No entanto, quem ainda pode nos mover a apear para acessos que permitam revelar o estado de alma e descer às pousadas na aconchegante interioridade dos nossos sentimentos? Quem ainda oferece espaço para permitir desvelar a intimidade e, na gratuidade da partilha, ajudá-la a não se sobrecarregar com máscaras e atribuições impróprias, capazes de tirar a auto-estima e o gosto de estar de bem com outras pessoas?
No evangelho de Lucas aparece uma interessantíssima cena através da antecipação de um convite. Trata-se do episódio que se refere a Zaqueu. Ao saber que Jesus, no caminho já próximo de Jerusalém, passaria pelo povoado de Jericó, e já consciente de que seu nome não desfrutava de boa simpatia e nem de boa reputação, pois, vinha sendo referenciado como ladrão, pela forma como usurpava dinheiro dos outros a partir de cobranças excessivas de impostos, correu na frente para poder enxergar Jesus. Uma multidão obstruía o acesso. A intuição de Zaqueu foi a de adiantar-se e subir num arbusto.
Ao ser interpelado pelo nome e não pelas atribuições que o ambiente cultural lhe impusera ao considerá-lo ladrão, o homem ficou altamente sensibilizado, mas uma proposta surpreendente de Jesus o levou a descer de imediato. Jesus falou que pretendia fazer uma refeição com ele, em sua casa. Nisto Jesus revelou uma estratégia inusitada: pois poderia simplesmente ter passado adiante e ter ignorado seus insistentes gritos devido à sua reputação negativa. No entanto, fazer-lhe proposta para ir à sua casa, revelou algo muito mais significativo: acolhida do seu universo, de seu mundo, da sua consciência e dos seus desenganos.
 Ao dizer que pretendia devolver quatro vezes o que roubara, Zaqueu estava mostrando que já havia se convertido, simplesmente a partir do que devia ter ouvido falar de Jesus Cristo. Por conseguinte, a interpelação para descer da árvore, na qual subira para ver Jesus, implicava numa tarefa mais profunda: ir para a casa. Hoje também muita gente sobe a santuários, Igrejas e tantos outros lugares para “ver” Jesus, sobretudo, em milagres rápidos e fáceis; mas, o simples ato de “ver” ainda não é o suficiente para integrar a vida: requer-se algo mais importante que é o “descer da árvore”.
 Árvore pode significar esta elevada articulação de galhos das pretensões exacerbadas, das seguranças intimistas, das auto-suficiências, dos orgulhos e das instâncias de honra que nos atribuímos. Desfazer-se de todos estes presumidos bens que buscamos, e que, do alto de nossas auto-análises “visualizamos” com clareza, apresenta também para nós a interpelação de outro passo pedagógico fundamental para rever a vida e encontrar formas capazes de propiciar mais satisfação ao existir.
Corremos o risco de “subir” e de “ver” muito e muitas coisas, mas, sem adquirir a importante capacidade de “descer” para, “em casa”, revelar-nos e apear dos ilusórios mecanismos de afirmação sobre os outros. O difícil, no entanto, é perceber do que apear, a fim de encontrar formas mais agradáveis e satisfatórias de convivência.


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