Sofrimento psíquico dos Presbíteros –
Dor Institucional. William César Castilho Pereira. –
Petrópolis, RJ: Vozes; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012.
Autor da
resenha: Dr. Pe. João Inácio Kolling
O livro
apresenta uma análise dos sintomas do Burnout na vida dos presbíteros. Pela sua
história, seu itinerário de formação e, como portadores da Boa Nova que redime,
os presbíteros deveriam constituir a categoria social com a menor predisposição
possível para esta doença. No entanto, constituem o grupo social do mais
elevado índice de desgaste e esvaziamento psíquico-afetivo no exercício do
ministério presbiteral.
O autor não ficou restrito a estudos
delimitados ao ambiente clínico e às clássicas interpretações reducionistas que
situam esta doença no nível meramente pessoal e intra-psíquico, mas, tomou por
referência outra perspectiva, a do ambiente e do entorno do trabalho. A partir
deste pressuposto teórico, efetuou uma vasta pesquisa de campo, na qual
procurou captar sintomas de manifestação da Síndrome de Burnout nos presbíteros,
levando em conta especialmente a dimensão institucional, como fator
preponderante a causar tal sintoma.
Com esmiuçada sensibilidade o autor
se propôs analisar a institucionalidade da vida presbiteral. De forma muito
respeitosa e edificante procurou neste empreendimento delinear um saber de
ciência, mas, também perpassado por um sabor todo especial de Sabedoria:
entender pela espiritualidade, dimensão afetiva, motivacional e de exercício do
poder, as raízes deste sofrimento psíquico, com a finalidade de poder
contribuir com alguma mediação capaz de ajudar presbíteros e religiosos a
cuidar da sua vida.
De fato, como conciliar a alegria do
anúncio da Boa Nova como membro da categoria social que apresenta maior índice
de sofrimento psíquico? Cuidar bem dos outros, sem afetar-se com os próprios
problemas, indicava ao autor uma suspeita: esta dor dos presbíteros poderia
estar relacionada à dor da Igreja.
A constatação indicava que as feridas
dos consagrados à Evangelização, com apresentação de muitos sinais de cansaço,
desilusão, angústia, tristeza, insatisfação pessoal e solidão, estava ultrapassando
a dimensão meramente pessoal dos presbíteros. Por isso o autor avaliou as
perspectivas de três grupos de clássicos da interpretação do Burnout pela
perspectiva pessoal interna (Freudenberger e Gail Notrh; Edelvich y Brodsky; e,
Price y Murphy). Observou que todos os traços que eles elencaram e a seqüência
do processo de Burnout podem ser tranquilamente aceitos, mas, estes autores
simplesmente não abordaram o “não dito” das condições de trabalho, uma vez que qualquer
instituição tende a esconder metas e estratégias, e, porque os ambientes de
trabalho produzem muitas contradições entre afeto e razão.
O presbítero, como trabalhador de uma
instituição, também quer ser feliz, ser reconhecido, amado visto e benquisto;
quer ser digno de confiança e de confidência e também quer expressar suas
virtualidades. No entanto, experimenta um corpo negado, desconhecido,
silenciado, irritado, tenso e nervoso. A não elaboração deste sofrimento leva-o
a ser agressivo. Pode ser uma agressividade auto-dirigida (masoquismo ou
histeria) ou crises de despersonalização.
As terapias da perspectiva pessoal
interna não resolvem o problema que o presbítero enfrenta. Apenas o enganam.
Por conseguinte, é da dimensão institucional que deve decorrer a maior mediação
para superar as causas do Burnout. Começa com o epicentro do ideal do
presbítero, de amar a todos, que, no auge da perfectibilidade o iguala a Deus,
mas, a imagem de Deus pode muito bem ser confundida com os valores de uma
determinada cultura ou civilização.
O ideário da formação presbiteral,
por outro lado, estabelece uma exigência muito rígida: são documentos, regras,
leis, diretrizes que distanciam o presbítero das experiências humanas.
Produz-se assim, uma profunda cisão entre o ideal e a realidade cotidiana.
Longe do parâmetro de ser bom como Deus, encontra-se o presbítero num vazio de
energia amorosa. O ambiente de formação dá excessivo destaque ao imaginário do
sagrado: altar, liturgia, obras, orações, mas leva a decepções e grandes
dificuldades para conviver, até mesmo com colegas. Começa, então, o declínio do
ideal, a frustração, o desentrosamento, a dificuldade afetiva, os procedimentos
autoritários, o isolamento, enfim, agressividade. O eixo da vida está
impregnado de repressão burocrática, de disputas avarentas por prestígio, poder
e ambição e, o esperado resultado das idealizações cultivadas, acaba se
mostrando ínfimo e insuficiente.
Das suspeitas sobre as manifestações
de Burnout nos presbíteros, o autor observou que, a partir da década de 1980
aumentou muito a incidência de presbíteros e religiosos com alto índice de
esgotamento físico, psíquico e emocional. Desta anulação de forças espirituais
decorreu o abandono do ministério, ou, então, permanência mais passiva, inativa
e depressiva, fenômeno que na linguagem religiosa veio a ser chamado de
“Síndrome do bom samaritano desiludido pela compaixão”. Na verdade está
submetido a uma sobrecarga burocrática e repetitiva. A tal quadro ainda se aliam
as frustrações pastorais e de convivência. A isto se pode acrescentar o quadro
de desprestígio da profissão que induz à baixa auto-estima e ao sentimento de
pouca pertença ao presbitério, além da disfunção entre os valores pessoais e as
exigências institucionais. Ao quadro já desalentador ainda se pode acrescentar
o elevado número de desistência de colegas, as divisões competitivas em torno
do poder e status e a gradual perda de espiritualidade.
Segundo o autor, não se trata apenas
de um fenômeno recente, pois a síndrome do desgaste psíquico-afetivo é muito
antiga e cita Ex 18,16-23 para ilustrar que Moisés já experimentou a crise de Burnout.
Fez terapia com o sogro Jetro, e aprendeu a lidar de modo diferente com as
coisas. Aceitou a sugestão de tornar-se menos centralizador e assim passou a
assimilar novas estratégias.
A predisposição dos presbíteros para
o Burnout é intrigante: como ser feliz num ambiente de repressão, de estrutura
burocrática, em que ocorrem disputas avarentas por prestígio e poder? Afinal,
quem produz este desgaste psíquico-emocional?
O autor deduziu que são formas de
trabalho entre indivíduo e instituição. Como outras instituições, a Igreja pode
produzir relações mais autônomas ou dependentes, mais criativas ou mais
reprodutivas. Assim, vislumbrou efeitos culturais de três periodizações
históricas, cada qual com traços nitidamente peculiares e distintos: o do
período pré-conciliar; o do concílio e anos posteriores; e, o dos nossos dias,
geralmente classificado como período pós-moderno. Em cada um destes momentos as
relações tiveram traços bem distintos, mas, eles se cruzam e se entrecruzam no
presbitério atual.
a) Na Igreja do pré-Vaticano II - predominou a
marca feudal de muita narrativa mítica e da estruturação político-religiosa dos
três níveis (reis e clero; nobres e vassalos; e os servos). A rede imaginária
simbólica foi a do mundo rural, da cultura imutável, com pouco dinheiro, mas
muita solidariedade e cordialidade. Filosoficamente tudo era fundamentado em
Deus, sem chances para diferenças ou rupturas. A religião garantia a cultura e
a política e ainda procurava ordená-la, explicá-la e legitimá-la. A
eclesiologia tridentina estimulava uma apologética e a insistência na
infalibilidade do Papa. De Roma se difundiam as verdades inquestionáveis para
oferecer aos cristãos uma aparente ausência de crises e inseguranças. A
espiritualidade era clerical, tridentina, individual e sacramental. Na ação de
obras estavam centralizadas as grandes catedrais e os Seminários. Predominava o
ensinamento dogmático sobre céu, inferno e purgatório e o espírito era o de
salvar “almas”, com excessiva centralidade e clericalização da Igreja, com
liturgia rígida e grande estímulo ao devocionalismo. Manifestava-se também uma
estrutura super-protetora de disciplina espiritual e ascética, mas todo este
quadro estava em profundo descompasso com a ciência moderna, que centralizava
igualdade, liberdade e fraternidade.
b) A Igreja do Vaticano II – a Igreja vinha sendo um império espiritual: reino de Cristo,
Maria, rainha do céu, numa imitação das ideologias do poder imperial. Era
vertical, centrista, burocratizada, com teologia e doutrina congelada e com
ênfase na Palavra de Deus, Revelação, dogmas e autoridade do magistério. Aos
fiéis restava obediência passiva. O resultado disso foi evidente: um poder
oposto à cultura leiga e civil, que condenava a modernidade e o iluminismo,
enquanto que a sociedade se mostrava mais racional, industrial e consumista.
Isso gerou progressivo afastamento dos sacramentos e um encantamento crescente
pelos estilos de vida da Modernidade.
A Igreja reagiu com o envio de congregações religiosas para
atrair desertores e formar lideranças no espírito da neo-cristandade. A partir
da Segunda Guerra Mundial, a Igreja abafou mais os sentimentos e desejos que
emergiam da própria Igreja. Mesmo assim, ocorreu grande efervescência
teológica.
O concílio Vaticano II foi um desaguar de rios de
insatisfação dentro e fora da Igreja. O papa João XXIII foi fundamental para o
processo do “despir-se” do homem velho. Surgiu novo auto-imagem: a Igreja é
povo de Deus, o que também despojava o poder eclesiástico. Foi um tempo de
entusiasmo e de esperança (revisão geral que centralizou a opção pelos pobres.
O presbítero passou a ser visto como pedagogo e animador da vida comunitária. O
traje religioso foi substituído pelo civil e a espiritualidade tornou-se mais
positiva com o mundo.
Apesar da mudança, ocorreram ambivalências: crise vocacional,
receios, desestruturações, muitos presbíteros abandonaram o ministério. Ao lado
disso, permaneceram privilégios eclesiais e societários (reverências). Se de um
lado se passou do pregador ao animador (do pedestal à participação) e da
salvação das almas à salvação dos excluídos, muitos não aceitaram perder
privilégios e abandonaram o ministério.
c)
Igreja pós-Vaticano II - O autor salientou três aspectos importantes: 1) Profundas transformações
sócio-culturais: a abundância de escolhas gerou um mundo de velocidade e de
rapidez nas decisões. Da subjetividade da reflexão passou-se à subjetividade
reflexa, imediata e indeterminada. Ocorreu enfraquecimento do Estado, da
família, da escola e da Igreja tradicional e passou a prevalecer o
individualismo e os costumes passaram a ditar o que podia ser pensado. Assim, o
sujeito, passando por adaptações constantes a novos moldes e, sob a aparente
ausência de limites, passou a agir sob um poder disperso e anônimo, que envolve
muitos simulacros. O ditame do vender e comprar estabeleceu nova ordem
simbólica: consumir signos e imagens da indústria cultural. As necessidades
criadas passaram a aumentar a demanda por mais desejos, e, a produção cultural
entrou no inconsciente e perverteu os desejos (crise contínua por mais coisas
para serem consumidas). Prevaleceu, pois, o excesso: luxo, vitrine, imagem,
novas catedrais... A fantasia passou a ser explorada à exaustão: voyerismo,
exibicionismo e espionagem da intimidade.
2) Pós-Modernidade e pastoral
midiática – ocorreu
uma implosão das tradicionais posições de dependência e cristalização da
autoridade. Surgem novos movimentos sociais e neles estão centralizados os
artefatos tecnológicos e cibernéticos. A mídia integra o cotidiano de
evangelização, mas, como discernir criticamente estes meios? Podem mitificar,
dominar, explorar e gerar condutas perversas com espetáculos religiosos: a gana
pela audiência explora o gozo maníaco e eufórico. A mídia religiosa tende muito
à louvação e testemunho pessoal, mas, a pouco conteúdo didático-doutrinal. Por
isso surgem sérios questionamentos: que protagonistas dominam o mercado
midiático religioso e com que intenções agem? Há riscos de pequenos grupos
ideológicos monopolizarem o mercado religioso que dificulta a fidelidade a
Jesus Cristo.
3) Efeitos do Pós-Vaticano II - Vem ocorrendo uma metamorfose além do
esperado, tanto na pastoral, quanto na estrutura paroquial, econômica,
arquitetônica, quanto na espiritualidade e na missão. Emergem formas mais
inculturadas com maior atenção a aspectos inconscientes: recalques, projeções e
introjeções. Aparecem duas tendências mais expressivas: uma, que é restauradora
e centrista, e, outra, mais hermenêutica da Igreja Particular. A co-responsabilidade
econômica, política e cultural tornou-se bem mais visível. Também vem ocorrendo
mais diálogo e negociação.
Estas
metamorfoses acabam alterando o “modo de fazer”, o “modo de relacionar-se” e o “modo
de proceder a subjetivação”. Em conseqüência, mudam as formas de fazer as
coisas, de produzir, e, também mudam os arranjos de relacionamento. Igualmente
mudam os modos de trabalhar e as subjetivações. Enquanto a sociedade primitiva
e medieval produzia subjetividades comunitárias, estáveis e coesas, a sociedade
de nossos dias produz sujeitos subjetivos individuais mais autônomos e livres.
Também aumenta o sentimento de sociedade planetária global e nela se
entrecruzam duas tendências: a emancipatória, que busca libertação; e a
maníaco-eufórica, que não quer utopia, mas somente gozo e consumo.
Como estes
três momentos se entrecruzam no presbitério, ocorrem evidentes impasses, pois
são afetados pela nova ordem simbólica de consumir signos e imagens. Isto
também implica na pastoral, pois, se contrapõe o projeto centrado na cultura
instrumentalizada e o projeto geral do conjunto da Igreja, mais totalizador e
autoritário.
A tensão
também se evidencia entre fantasias e a realidade estrutural objetiva, pois,
grupos dominantes inibem desejos de mudança e favorecem forças conservadoras,
reprodutivas e míticas. Ao lado disso, aparecem, na pastoral midiática, fortes
matrizes autoritárias e conservadoras que despejam toneladas de aparatos
moralistas, de medo, de culpa e de infantilização do povo. Ao lado disso, a
tensão também se estabelece entre a Igreja institucional e os cristãos leigos,
que reagem ao tecnoburocratismo clericalista.
Diante deste
efeito dos três momentos históricos da Igreja, o autor indicou pistas para uma
pastoral presbiteral a fim de propiciar uma gestão do cuidado do presbítero com
sua pessoa e com os outros, a fim de avivar a meta transcendental de vida
fraterna e espiritual, além do fortalecimento intelectual e dinamização da
pastoral missionária. As casas da pastoral presbiteral deverão constituir-se em
lugares de referência para encontro afetivo dos presbíteros.
Um efeito
deste meritório trabalho do Dr. William César C. Pereira é o de deixar, - apesar
de toda a riqueza de dados da abordagem - uma inquietação: Se a Igreja sempre
teve que lidar com muitas dores institucionais, as do nosso tempo requerem
evidentemente, mais do que um discernimento pessoal, uma ação de conjunto do
presbitério, pois, afinal, constitui importante parcela da Instituição que é a
Igreja Católica.
Por
tratar-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo, a extensão do texto poderá
constituir eventual empecilho para que muitos presbíteros se animem a ler todo
o livro (539 páginas), mas, o texto é agradável e claro no conteúdo e nos
objetivos. A forma como a pesquisa foi desenvolvida abre um grande leque de entendimento
para a lida com o sofrimento psíquico de tantos presbíteros. O vocabulário é
simples e demonstra extraordinário domínio do autor sobre a área versada.
Decorre dali a maior riqueza, pois fez o estudo para ajudar os presbíteros a
lidar positivamente com a síndrome de Burnout.
Excelente apresentação do livro de William Cesar Pereira que fala dos problemas psiquicos dos presbiteros. O autor traz os contextos históricos de cada tempo da Igreja e o que dificulta a ação melhor do evangelho.
ResponderExcluir