quarta-feira, 15 de março de 2017

Resenha do livro O Sofrimento Psíquico dos Presbíteros

Sofrimento psíquico dos Presbíteros – Dor Institucional. William César Castilho Pereira. – Petrópolis, RJ: Vozes; Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2012.
Autor da resenha: Dr. Pe. João Inácio Kolling

            O livro apresenta uma análise dos sintomas do Burnout na vida dos presbíteros. Pela sua história, seu itinerário de formação e, como portadores da Boa Nova que redime, os presbíteros deveriam constituir a categoria social com a menor predisposição possível para esta doença. No entanto, constituem o grupo social do mais elevado índice de desgaste e esvaziamento psíquico-afetivo no exercício do ministério presbiteral.
O autor não ficou restrito a estudos delimitados ao ambiente clínico e às clássicas interpretações reducionistas que situam esta doença no nível meramente pessoal e intra-psíquico, mas, tomou por referência outra perspectiva, a do ambiente e do entorno do trabalho. A partir deste pressuposto teórico, efetuou uma vasta pesquisa de campo, na qual procurou captar sintomas de manifestação da Síndrome de Burnout nos presbíteros, levando em conta especialmente a dimensão institucional, como fator preponderante a causar tal sintoma.
Com esmiuçada sensibilidade o autor se propôs analisar a institucionalidade da vida presbiteral. De forma muito respeitosa e edificante procurou neste empreendimento delinear um saber de ciência, mas, também perpassado por um sabor todo especial de Sabedoria: entender pela espiritualidade, dimensão afetiva, motivacional e de exercício do poder, as raízes deste sofrimento psíquico, com a finalidade de poder contribuir com alguma mediação capaz de ajudar presbíteros e religiosos a cuidar da sua vida.
De fato, como conciliar a alegria do anúncio da Boa Nova como membro da categoria social que apresenta maior índice de sofrimento psíquico? Cuidar bem dos outros, sem afetar-se com os próprios problemas, indicava ao autor uma suspeita: esta dor dos presbíteros poderia estar relacionada à dor da Igreja.
A constatação indicava que as feridas dos consagrados à Evangelização, com apresentação de muitos sinais de cansaço, desilusão, angústia, tristeza, insatisfação pessoal e solidão, estava ultrapassando a dimensão meramente pessoal dos presbíteros. Por isso o autor avaliou as perspectivas de três grupos de clássicos da interpretação do Burnout pela perspectiva pessoal interna (Freudenberger e Gail Notrh; Edelvich y Brodsky; e, Price y Murphy). Observou que todos os traços que eles elencaram e a seqüência do processo de Burnout podem ser tranquilamente aceitos, mas, estes autores simplesmente não abordaram o “não dito” das condições de trabalho, uma vez que qualquer instituição tende a esconder metas e estratégias, e, porque os ambientes de trabalho produzem muitas contradições entre afeto e razão.
O presbítero, como trabalhador de uma instituição, também quer ser feliz, ser reconhecido, amado visto e benquisto; quer ser digno de confiança e de confidência e também quer expressar suas virtualidades. No entanto, experimenta um corpo negado, desconhecido, silenciado, irritado, tenso e nervoso. A não elaboração deste sofrimento leva-o a ser agressivo. Pode ser uma agressividade auto-dirigida (masoquismo ou histeria) ou crises de despersonalização.
As terapias da perspectiva pessoal interna não resolvem o problema que o presbítero enfrenta. Apenas o enganam. Por conseguinte, é da dimensão institucional que deve decorrer a maior mediação para superar as causas do Burnout. Começa com o epicentro do ideal do presbítero, de amar a todos, que, no auge da perfectibilidade o iguala a Deus, mas, a imagem de Deus pode muito bem ser confundida com os valores de uma determinada cultura ou civilização.
O ideário da formação presbiteral, por outro lado, estabelece uma exigência muito rígida: são documentos, regras, leis, diretrizes que distanciam o presbítero das experiências humanas. Produz-se assim, uma profunda cisão entre o ideal e a realidade cotidiana. Longe do parâmetro de ser bom como Deus, encontra-se o presbítero num vazio de energia amorosa. O ambiente de formação dá excessivo destaque ao imaginário do sagrado: altar, liturgia, obras, orações, mas leva a decepções e grandes dificuldades para conviver, até mesmo com colegas. Começa, então, o declínio do ideal, a frustração, o desentrosamento, a dificuldade afetiva, os procedimentos autoritários, o isolamento, enfim, agressividade. O eixo da vida está impregnado de repressão burocrática, de disputas avarentas por prestígio, poder e ambição e, o esperado resultado das idealizações cultivadas, acaba se mostrando ínfimo e insuficiente.
Das suspeitas sobre as manifestações de Burnout nos presbíteros, o autor observou que, a partir da década de 1980 aumentou muito a incidência de presbíteros e religiosos com alto índice de esgotamento físico, psíquico e emocional. Desta anulação de forças espirituais decorreu o abandono do ministério, ou, então, permanência mais passiva, inativa e depressiva, fenômeno que na linguagem religiosa veio a ser chamado de “Síndrome do bom samaritano desiludido pela compaixão”. Na verdade está submetido a uma sobrecarga burocrática e repetitiva. A tal quadro ainda se aliam as frustrações pastorais e de convivência. A isto se pode acrescentar o quadro de desprestígio da profissão que induz à baixa auto-estima e ao sentimento de pouca pertença ao presbitério, além da disfunção entre os valores pessoais e as exigências institucionais. Ao quadro já desalentador ainda se pode acrescentar o elevado número de desistência de colegas, as divisões competitivas em torno do poder e status e a gradual perda de espiritualidade.
Segundo o autor, não se trata apenas de um fenômeno recente, pois a síndrome do desgaste psíquico-afetivo é muito antiga e cita Ex 18,16-23 para ilustrar que Moisés já experimentou a crise de Burnout. Fez terapia com o sogro Jetro, e aprendeu a lidar de modo diferente com as coisas. Aceitou a sugestão de tornar-se menos centralizador e assim passou a assimilar novas estratégias.
A predisposição dos presbíteros para o Burnout é intrigante: como ser feliz num ambiente de repressão, de estrutura burocrática, em que ocorrem disputas avarentas por prestígio e poder? Afinal, quem produz este desgaste psíquico-emocional?
O autor deduziu que são formas de trabalho entre indivíduo e instituição. Como outras instituições, a Igreja pode produzir relações mais autônomas ou dependentes, mais criativas ou mais reprodutivas. Assim, vislumbrou efeitos culturais de três periodizações históricas, cada qual com traços nitidamente peculiares e distintos: o do período pré-conciliar; o do concílio e anos posteriores; e, o dos nossos dias, geralmente classificado como período pós-moderno. Em cada um destes momentos as relações tiveram traços bem distintos, mas, eles se cruzam e se entrecruzam no presbitério atual.
a)      Na Igreja do pré-Vaticano II -  predominou a marca feudal de muita narrativa mítica e da estruturação político-religiosa dos três níveis (reis e clero; nobres e vassalos; e os servos). A rede imaginária simbólica foi a do mundo rural, da cultura imutável, com pouco dinheiro, mas muita solidariedade e cordialidade. Filosoficamente tudo era fundamentado em Deus, sem chances para diferenças ou rupturas. A religião garantia a cultura e a política e ainda procurava ordená-la, explicá-la e legitimá-la. A eclesiologia tridentina estimulava uma apologética e a insistência na infalibilidade do Papa. De Roma se difundiam as verdades inquestionáveis para oferecer aos cristãos uma aparente ausência de crises e inseguranças. A espiritualidade era clerical, tridentina, individual e sacramental. Na ação de obras estavam centralizadas as grandes catedrais e os Seminários. Predominava o ensinamento dogmático sobre céu, inferno e purgatório e o espírito era o de salvar “almas”, com excessiva centralidade e clericalização da Igreja, com liturgia rígida e grande estímulo ao devocionalismo. Manifestava-se também uma estrutura super-protetora de disciplina espiritual e ascética, mas todo este quadro estava em profundo descompasso com a ciência moderna, que centralizava igualdade, liberdade e fraternidade.
b)      A Igreja do Vaticano II – a Igreja vinha sendo um império espiritual: reino de Cristo, Maria, rainha do céu, numa imitação das ideologias do poder imperial. Era vertical, centrista, burocratizada, com teologia e doutrina congelada e com ênfase na Palavra de Deus, Revelação, dogmas e autoridade do magistério. Aos fiéis restava obediência passiva. O resultado disso foi evidente: um poder oposto à cultura leiga e civil, que condenava a modernidade e o iluminismo, enquanto que a sociedade se mostrava mais racional, industrial e consumista. Isso gerou progressivo afastamento dos sacramentos e um encantamento crescente pelos estilos de vida da Modernidade.
A Igreja reagiu com o envio de congregações religiosas para atrair desertores e formar lideranças no espírito da neo-cristandade. A partir da Segunda Guerra Mundial, a Igreja abafou mais os sentimentos e desejos que emergiam da própria Igreja. Mesmo assim, ocorreu grande efervescência teológica.
O concílio Vaticano II foi um desaguar de rios de insatisfação dentro e fora da Igreja. O papa João XXIII foi fundamental para o processo do “despir-se” do homem velho. Surgiu novo auto-imagem: a Igreja é povo de Deus, o que também despojava o poder eclesiástico. Foi um tempo de entusiasmo e de esperança (revisão geral que centralizou a opção pelos pobres. O presbítero passou a ser visto como pedagogo e animador da vida comunitária. O traje religioso foi substituído pelo civil e a espiritualidade tornou-se mais positiva com o mundo.
Apesar da mudança, ocorreram ambivalências: crise vocacional, receios, desestruturações, muitos presbíteros abandonaram o ministério. Ao lado disso, permaneceram privilégios eclesiais e societários (reverências). Se de um lado se passou do pregador ao animador (do pedestal à participação) e da salvação das almas à salvação dos excluídos, muitos não aceitaram perder privilégios e abandonaram o ministério.
c)      Igreja pós-Vaticano II -  O autor salientou três aspectos importantes: 1) Profundas transformações sócio-culturais: a abundância de escolhas gerou um mundo de velocidade e de rapidez nas decisões. Da subjetividade da reflexão passou-se à subjetividade reflexa, imediata e indeterminada. Ocorreu enfraquecimento do Estado, da família, da escola e da Igreja tradicional e passou a prevalecer o individualismo e os costumes passaram a ditar o que podia ser pensado. Assim, o sujeito, passando por adaptações constantes a novos moldes e, sob a aparente ausência de limites, passou a agir sob um poder disperso e anônimo, que envolve muitos simulacros. O ditame do vender e comprar estabeleceu nova ordem simbólica: consumir signos e imagens da indústria cultural. As necessidades criadas passaram a aumentar a demanda por mais desejos, e, a produção cultural entrou no inconsciente e perverteu os desejos (crise contínua por mais coisas para serem consumidas). Prevaleceu, pois, o excesso: luxo, vitrine, imagem, novas catedrais... A fantasia passou a ser explorada à exaustão: voyerismo, exibicionismo e espionagem da intimidade.
2) Pós-Modernidade e pastoral midiática – ocorreu uma implosão das tradicionais posições de dependência e cristalização da autoridade. Surgem novos movimentos sociais e neles estão centralizados os artefatos tecnológicos e cibernéticos. A mídia integra o cotidiano de evangelização, mas, como discernir criticamente estes meios? Podem mitificar, dominar, explorar e gerar condutas perversas com espetáculos religiosos: a gana pela audiência explora o gozo maníaco e eufórico. A mídia religiosa tende muito à louvação e testemunho pessoal, mas, a pouco conteúdo didático-doutrinal. Por isso surgem sérios questionamentos: que protagonistas dominam o mercado midiático religioso e com que intenções agem? Há riscos de pequenos grupos ideológicos monopolizarem o mercado religioso que dificulta a fidelidade a Jesus Cristo.
3) Efeitos do Pós-Vaticano II -  Vem ocorrendo uma metamorfose além do esperado, tanto na pastoral, quanto na estrutura paroquial, econômica, arquitetônica, quanto na espiritualidade e na missão. Emergem formas mais inculturadas com maior atenção a aspectos inconscientes: recalques, projeções e introjeções. Aparecem duas tendências mais expressivas: uma, que é restauradora e centrista, e, outra, mais hermenêutica da Igreja Particular. A co-responsabilidade econômica, política e cultural tornou-se bem mais visível. Também vem ocorrendo mais diálogo e negociação.
                        Estas metamorfoses acabam alterando o “modo de fazer”, o “modo de relacionar-se” e o “modo de proceder a subjetivação”. Em conseqüência, mudam as formas de fazer as coisas, de produzir, e, também mudam os arranjos de relacionamento. Igualmente mudam os modos de trabalhar e as subjetivações. Enquanto a sociedade primitiva e medieval produzia subjetividades comunitárias, estáveis e coesas, a sociedade de nossos dias produz sujeitos subjetivos individuais mais autônomos e livres. Também aumenta o sentimento de sociedade planetária global e nela se entrecruzam duas tendências: a emancipatória, que busca libertação; e a maníaco-eufórica, que não quer utopia, mas somente gozo e consumo.
            Como estes três momentos se entrecruzam no presbitério, ocorrem evidentes impasses, pois são afetados pela nova ordem simbólica de consumir signos e imagens. Isto também implica na pastoral, pois, se contrapõe o projeto centrado na cultura instrumentalizada e o projeto geral do conjunto da Igreja, mais totalizador e autoritário.
            A tensão também se evidencia entre fantasias e a realidade estrutural objetiva, pois, grupos dominantes inibem desejos de mudança e favorecem forças conservadoras, reprodutivas e míticas. Ao lado disso, aparecem, na pastoral midiática, fortes matrizes autoritárias e conservadoras que despejam toneladas de aparatos moralistas, de medo, de culpa e de infantilização do povo. Ao lado disso, a tensão também se estabelece entre a Igreja institucional e os cristãos leigos, que reagem ao tecnoburocratismo clericalista.
            Diante deste efeito dos três momentos históricos da Igreja, o autor indicou pistas para uma pastoral presbiteral a fim de propiciar uma gestão do cuidado do presbítero com sua pessoa e com os outros, a fim de avivar a meta transcendental de vida fraterna e espiritual, além do fortalecimento intelectual e dinamização da pastoral missionária. As casas da pastoral presbiteral deverão constituir-se em lugares de referência para encontro afetivo dos presbíteros.
            Um efeito deste meritório trabalho do Dr. William César C. Pereira é o de deixar, - apesar de toda a riqueza de dados da abordagem - uma inquietação: Se a Igreja sempre teve que lidar com muitas dores institucionais, as do nosso tempo requerem evidentemente, mais do que um discernimento pessoal, uma ação de conjunto do presbitério, pois, afinal, constitui importante parcela da Instituição que é a Igreja Católica.

            Por tratar-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo, a extensão do texto poderá constituir eventual empecilho para que muitos presbíteros se animem a ler todo o livro (539 páginas), mas, o texto é agradável e claro no conteúdo e nos objetivos. A forma como a pesquisa foi desenvolvida abre um grande leque de entendimento para a lida com o sofrimento psíquico de tantos presbíteros. O vocabulário é simples e demonstra extraordinário domínio do autor sobre a área versada. Decorre dali a maior riqueza, pois fez o estudo para ajudar os presbíteros a lidar positivamente com a síndrome de Burnout.

Um comentário:

  1. Excelente apresentação do livro de William Cesar Pereira que fala dos problemas psiquicos dos presbiteros. O autor traz os contextos históricos de cada tempo da Igreja e o que dificulta a ação melhor do evangelho.

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