domingo, 17 de novembro de 2013

O galo valente e os franguinhos do terreiro



Num longo processo de superação, de lutas emancipacionistas e de ambições alargadas ao infinito, o galo valente conseguiu, finalmente, reinar no terreiro. Passou a criar ordens e a mobilizar esquemas com galinhas e outros frangos submetidos ao seu poder, regado por sonhos imensuráveis. Seu propósito central visava que todos aceitassem as instâncias superiores do poder público do reino dos frangos, especialmente, a partir do que fora estabelecido por ele, para rapidamente chegarem à plenitude da felicidade.
 Um séquito de súditos servis passava a maior parte do tempo a bajular o galo valente, tanto pela versatilidade do seu cantar, quanto pela sua imponência e pelos seus amplos poderes no terreiro. Ele, airoso de si mesmo, tinha um vasto sistema de publicidade, pois, uma quantia razoável de galináceos ocupava-se exclusivamente da produção de galanteios, cacarejos e de apaixonadas defesas de tudo quanto presumia do valente e destemido salvador da pátria. Ele, por sua vez, arrastava asa para todo lado e andava de cabeça vermelha de tanto cantar seus presumidos poderes, transformados em ações a favor do bem-estar de todos os galináceos.
Longo tempo se passou, e, muitíssimos cantos floreados e vigorosamente bem orquestrados moldaram um imaginário coletivo que levou todas as aves a pensar, sentir e defender com veemência, que não poderiam viver felizes sem os indiscutíveis préstimos do poder estatal e da sabedoria racional do galo valente.
O galo valente, como um polvo de muitos tentáculos, criou serviços, ministérios, planos de saúde, aparato bélico e legislações à exaustão para persuadir que seu papel e correspondente serviço constituíam as únicas mediações viáveis para o amparo, a proteção e o desvelo em favor de todas as galinhas.
O galo valente ficava todos os dias, horas e horas a cantar, nos mesmos tons, que a democracia por ele instaurada era insuperável e profundamente necessária ao bem-estar de todas as galinhas.   Seus séquitos ampliavam diuturnamente este coro do que deveria ser pensado e admirado para o conforto e a segurança de todos. Tampouco faltavam galinhas ao seu redor para aumentar a bajulação e o clima de profunda comoção em torno do aparato de seus deslocamentos.
Lenta e sorrateiramente os galináceos do terreiro passaram a explicitar que o ambiente não estava satisfatório, apesar das incontáveis instâncias burocráticas e dos discursos cada dia mais grandiloqüentes em torno do bom reinado. Aos poucos, foi crescendo o encanto por outras coisas que não adviessem da instituição pública e nem da organização social instaurada pelo galo valente.
 Os pintinhos e os franguinhos novos passaram a não demonstrar o menor interesse pelo mundo tão estruturado, organizado, rigoroso, militarizado e racional. Eles demonstravam mais interesse por coisas muito mais fugazes, momentâneas, dispersivas, fluídas, e nada de muitas raízes históricas e nem mesmo de projetos futuristas. Na verdade, apreciavam mais as cores das penas, o volume das coxas, as “sambicas” em seus contornos, a abrangência das asas, os ornamentos do pescoço e os aparatos da crista e das pequenas esporas emergentes nas pernas dos franguinhos.
O desinteresse foi se tornando paulatinamente maior com as diárias informações relativas à corrupção dos súditos parasitas do galo valente. Eles falavam uma coisa e faziam outra. Constatada esta contradição, foi aumentando, a largos passos, a busca de agregação por interesses somente estéticos, provisórios e emocionais.
 Sem demora, as rígidas regras éticas, religiosas e públicas a serviço dos interesses do galo valente passaram a ser assimiladas como conversas típicas e balofas, que visavam somente assegurar vantagens pessoais dos galos mandantes e de seus súditos igualmente interesseiros: mera fachada para poucos privilegiados.
O anonimato decorrente desta desatenção do ostentado e exaustivamente propalado poder messiânico e público, despertou progressivo alargamento dos desejos de evadir-se da impessoalidade, da tutoria e do monitoramento exercido pelo mega-poder do galo valente.
Começaram, então, a surgir grupos provisórios, nem para tramar algo contra o valente galo, nem para ajudá-lo em eventual proposta renovadora para a vida, mas, simplesmente para valorizar novos códigos de valor, como a beleza, o bem-estar, as formas espontâneas, soltas e a fruição do estarem juntos.
Por mais que o galo valente se empenhasse em alargar seus poderes e seus cantares a fim de persuadir que todos deveriam atrelar-se a ele para estarem bem, cada dia maior número de frangos e galinhas passou a valorizar a sensação gostosa do agrado em torno das coisas estéticas.
 Nada de interesse em torno da lógica, de grandes discursos, e, nem de explicações universalistas do “por que” e do “para que” as coisas galináceas do terreiro deveriam ser feitas desta ou daquela maneira.
Para o espanto no terreiro, os franguinhos novos não estavam desprovidos de senso crítico, mas, seu modo de protestar contra o imperialismo cultural do galo valente, não usava os mesmos recursos a serviço daquele mandante: protestavam pelo próprio corpo, mostrando partes íntimas e, pelo modo de cantar diferente, bem como pela forma de se aprumarem com a roupagem das penas.
 Como não se guiavam pelos estatutos oficiais, nem pelos regimentos e, menos ainda, por leis categóricas, a organização do galo valente, mesmo com todo aparato cerceador, começou a perder o controle dos frangos espalhados no terreiro. Um e outro franguinho se mostrava um pouco mais violento e desprezava certas raças de galinhas presentes no seu ambiente, mas, de uma forma geral, todos eles demonstravam insatisfação uniforme diante do aparato afrontoso, controlador e dispendioso do galo valente, que os induzia a sonhar, mas que, na protelação do que prometia, os forçava impreterivelmente ao anonimato e à impessoalidade e à desesperança.
A novidade maior dos franguinhos foi a de se socializarem de formas novas e distintas das tradicionais maneiras de educação galinácea no terreiro. Eles ignoravam o mundo das regras, das normas, das sanções que os envolveram no período da incubação e nos primeiros passos em torno das chocas super protetoras. O que mais os aproximou foi mera afinidade em torno de gostos, de passatempos e do desfrute de sentimentos frugais.
Os franguinhos insubordinados, por outro lado, não revelaram nenhuma propensão fundamentalista, no sentido de pretenderem condições de vida anteriores ao magistral sistema organizativo do galo valente, mas, tampouco apontavam para novos projetos futurísticos.
 Para eles, empolgantes se tornavam apenas as atrações em torno de mediações geradoras de prazer, e de desfrute de situações as menos racionais e lógicas possíveis. Com isso, apontavam para o fracasso de todo o aparato oficial do galo valente. E, sem maiores comentários, evidenciaram despreocupação com o espaço do terreiro, com as legislações vigentes e estabeleceram como referência de valor apenas o pequeno e micro-território dos encontros espontâneos e meramente fortuitos: bastava o estarem juntos, enquanto esta proximidade lhes propiciasse sensação de bem-estar.
Toda esta inovação, no início, apenas vagamente explicitada, repercutiu como uma comunicação importante ao império cultural do galo valente: as estruturas racionais da democracia do galo valente prometeram muito, mas, provaram à exaustão que foram de ineficácia extraordinária para a vida real e efetiva dos frangos do terreiro. Assim, o endeusado e enaltecido patamar do poder do galo valente, sumiu pelos ares, mais veloz do que as ondas dos seus cantos e a descoloração dos pômulos faciais avermelhados pelo esforço de cantar com floreios para mostrar-se convincente.


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