Num longo processo de superação, de lutas
emancipacionistas e de ambições alargadas ao infinito, o galo valente conseguiu,
finalmente, reinar no terreiro. Passou a criar ordens e a mobilizar esquemas
com galinhas e outros frangos submetidos ao seu poder, regado por sonhos imensuráveis.
Seu propósito central visava que todos aceitassem as instâncias superiores do
poder público do reino dos frangos, especialmente, a partir do que fora estabelecido
por ele, para rapidamente chegarem à plenitude da felicidade.
Um séquito de súditos servis passava a maior
parte do tempo a bajular o galo valente, tanto pela versatilidade do seu
cantar, quanto pela sua imponência e pelos seus amplos poderes no terreiro.
Ele, airoso de si mesmo, tinha um vasto sistema de publicidade, pois, uma
quantia razoável de galináceos ocupava-se exclusivamente da produção de
galanteios, cacarejos e de apaixonadas defesas de tudo quanto presumia do
valente e destemido salvador da pátria. Ele, por sua vez, arrastava asa para
todo lado e andava de cabeça vermelha de tanto cantar seus presumidos poderes,
transformados em ações a favor do bem-estar de todos os galináceos.
Longo tempo se passou, e, muitíssimos
cantos floreados e vigorosamente bem orquestrados moldaram um imaginário
coletivo que levou todas as aves a pensar, sentir e defender com veemência, que
não poderiam viver felizes sem os indiscutíveis préstimos do poder estatal e da
sabedoria racional do galo valente.
O galo valente, como um polvo de
muitos tentáculos, criou serviços, ministérios, planos de saúde, aparato bélico
e legislações à exaustão para persuadir que seu papel e correspondente serviço constituíam
as únicas mediações viáveis para o amparo, a proteção e o desvelo em favor de
todas as galinhas.
O galo valente ficava todos os dias,
horas e horas a cantar, nos mesmos tons, que a democracia por ele instaurada
era insuperável e profundamente necessária ao bem-estar de todas as galinhas. Seus
séquitos ampliavam diuturnamente este coro do que deveria ser pensado e
admirado para o conforto e a segurança de todos. Tampouco faltavam galinhas ao
seu redor para aumentar a bajulação e o clima de profunda comoção em torno do
aparato de seus deslocamentos.
Lenta e sorrateiramente os galináceos
do terreiro passaram a explicitar que o ambiente não estava satisfatório,
apesar das incontáveis instâncias burocráticas e dos discursos cada dia mais
grandiloqüentes em torno do bom reinado. Aos poucos, foi crescendo o encanto
por outras coisas que não adviessem da instituição pública e nem da organização
social instaurada pelo galo valente.
Os pintinhos e os franguinhos novos passaram a
não demonstrar o menor interesse pelo mundo tão estruturado, organizado,
rigoroso, militarizado e racional. Eles demonstravam mais interesse por coisas
muito mais fugazes, momentâneas, dispersivas, fluídas, e nada de muitas raízes
históricas e nem mesmo de projetos futuristas. Na verdade, apreciavam mais as
cores das penas, o volume das coxas, as “sambicas” em seus contornos, a
abrangência das asas, os ornamentos do pescoço e os aparatos da crista e das
pequenas esporas emergentes nas pernas dos franguinhos.
O desinteresse foi se tornando
paulatinamente maior com as diárias informações relativas à corrupção dos
súditos parasitas do galo valente. Eles falavam uma coisa e faziam outra.
Constatada esta contradição, foi aumentando, a largos passos, a busca de
agregação por interesses somente estéticos, provisórios e emocionais.
Sem demora, as rígidas regras éticas,
religiosas e públicas a serviço dos interesses do galo valente passaram a ser
assimiladas como conversas típicas e balofas, que visavam somente assegurar
vantagens pessoais dos galos mandantes e de seus súditos igualmente
interesseiros: mera fachada para poucos privilegiados.
O anonimato decorrente desta
desatenção do ostentado e exaustivamente propalado poder messiânico e público,
despertou progressivo alargamento dos desejos de evadir-se da impessoalidade,
da tutoria e do monitoramento exercido pelo mega-poder do galo valente.
Começaram, então, a surgir grupos
provisórios, nem para tramar algo contra o valente galo, nem para ajudá-lo em
eventual proposta renovadora para a vida, mas, simplesmente para valorizar novos
códigos de valor, como a beleza, o bem-estar, as formas espontâneas, soltas e a
fruição do estarem juntos.
Por mais que o galo valente se
empenhasse em alargar seus poderes e seus cantares a fim de persuadir que todos
deveriam atrelar-se a ele para estarem bem, cada dia maior número de frangos e
galinhas passou a valorizar a sensação gostosa do agrado em torno das coisas
estéticas.
Nada de interesse em torno da lógica, de
grandes discursos, e, nem de explicações universalistas do “por que” e do “para
que” as coisas galináceas do terreiro deveriam ser feitas desta ou daquela
maneira.
Para o espanto no terreiro, os
franguinhos novos não estavam desprovidos de senso crítico, mas, seu modo de
protestar contra o imperialismo cultural do galo valente, não usava os mesmos recursos
a serviço daquele mandante: protestavam pelo próprio corpo, mostrando partes
íntimas e, pelo modo de cantar diferente, bem como pela forma de se aprumarem
com a roupagem das penas.
Como não se guiavam pelos estatutos oficiais,
nem pelos regimentos e, menos ainda, por leis categóricas, a organização do
galo valente, mesmo com todo aparato cerceador, começou a perder o controle dos
frangos espalhados no terreiro. Um e outro franguinho se mostrava um pouco mais
violento e desprezava certas raças de galinhas presentes no seu ambiente, mas,
de uma forma geral, todos eles demonstravam insatisfação uniforme diante do
aparato afrontoso, controlador e dispendioso do galo valente, que os induzia a
sonhar, mas que, na protelação do que prometia, os forçava impreterivelmente ao
anonimato e à impessoalidade e à desesperança.
A novidade maior dos franguinhos foi
a de se socializarem de formas novas e distintas das tradicionais maneiras de
educação galinácea no terreiro. Eles ignoravam o mundo das regras, das normas,
das sanções que os envolveram no período da incubação e nos primeiros passos em
torno das chocas super protetoras. O que mais os aproximou foi mera afinidade em
torno de gostos, de passatempos e do desfrute de sentimentos frugais.
Os franguinhos insubordinados, por
outro lado, não revelaram nenhuma propensão fundamentalista, no sentido de
pretenderem condições de vida anteriores ao magistral sistema organizativo do
galo valente, mas, tampouco apontavam para novos projetos futurísticos.
Para eles, empolgantes se tornavam apenas as
atrações em torno de mediações geradoras de prazer, e de desfrute de situações
as menos racionais e lógicas possíveis. Com isso, apontavam para o fracasso de
todo o aparato oficial do galo valente. E, sem maiores comentários, evidenciaram
despreocupação com o espaço do terreiro, com as legislações vigentes e estabeleceram
como referência de valor apenas o pequeno e micro-território dos encontros
espontâneos e meramente fortuitos: bastava o estarem juntos, enquanto esta
proximidade lhes propiciasse sensação de bem-estar.
Toda esta inovação, no início, apenas
vagamente explicitada, repercutiu como uma comunicação importante ao império
cultural do galo valente: as estruturas racionais da democracia do galo valente
prometeram muito, mas, provaram à exaustão que foram de ineficácia
extraordinária para a vida real e efetiva dos frangos do terreiro. Assim, o endeusado
e enaltecido patamar do poder do galo valente, sumiu pelos ares, mais veloz do
que as ondas dos seus cantos e a descoloração dos pômulos faciais avermelhados pelo
esforço de cantar com floreios para mostrar-se convincente.
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