Do baú das boas memórias sempre
voltam a reavivar-se sentimentos agradáveis quando as lembranças remetem ao
modo de ser de Maristela.
Conheci-a quando era jovem
universitário. No começo, não conseguia entender um assunto que ela repetia
seguidamente: que se imaginava para a velhice na condição evidente de ter que
andar de bengalas. Pretendia, então, fazer três coisas para as quais nunca
achava tempo suficiente: pintar telas, ler à vontade e escutar música.
Pensava eu, por outro lado, estar
diante de uma mulher doidivanas, pois era absurdo falar assim quando estava
aquém dos cinqüenta anos. Se este tema de conversa parecia ser desconfortável e
aparentemente pessimista, embora objetivo, o resto da vida de Maristela era
puro encantamento. Tratava-se de uma Irmã religiosa, disposta, animada e
altamente agradável às pessoas ao seu derredor.
Os rumos da vida e da lida nos
distanciaram por alguns anos. Ao voltar para a mesma cidade, estava de volta
também aquela conhecida Maristela de anos anteriores. Por surpresa,
deslocava-se com o auxílio de muletas. Seria a sina do que esperava? Um
acidente automobilístico, em que viajava como acompanhante, deixou-a com
sequelas de diversas fraturas, inclusive da bacia. A surpresa maior, no entanto,
estava em constatar que continuava na mesma alegria, leveza e disposição. Já
aposentada, pintava telas, lia muito e escutava muita música. Tratava-se de uma
pessoa sábia capaz falar com autoridade sobre assuntos variados. Não precisava
de muitos dias para ler um livro e lia sobre os temas mais diversos como
Filosofia, Psicologia, Teologia, Espiritualidade, Romances e livros de
Auto-ajuda.
Passados alguns anos, Maristela falou,
num dia, que precisava encerrar duas atividades: a leitura e a pintura, porque
estava praticamente cega e somente enxergava letras escritas por alguns
minutos, antes do meio-dia, diante de sol intenso. Mais uma vez a surpresa
continuava: persistiam os mesmos traços da mulher cheia de graça e de encanto,
como em algumas décadas anteriores.
Das colegas de convivência de
Maristela escutava-se seguidamente a mesma expressão: “A Maristela é cada dia
mais descomplicada”! Esta afirmação intrigava, diante de tantas outras pessoas
idosas, altamente insatisfeitas, magoadas e pessimistas, das quais não se ouvia
coisa melhor do que lamúria. Afinal, o que teria propiciado a Maristela uma
orientação de vida para tornar-se diuturnamente mais descomplicada?
Parece que, no geral, a tendência evidente
do avanço da idade implica em diminuição de auto-aceitação, de auto-estima, e,
em aumento de insatisfação diante das doenças, dos fracassos, das perdas. Por
isso, o evidente transluzir de mau-humor, de inconformismo e de rispidez.
Ao inquirir Maristela sobre a antiga
previsão feita, veio uma constatação muito simples e descomplicada: Maristela,
muito cedo na vida, mais precisamente na crise da bifurcação da vida entre
desesperança e integridade, soube escolher o caminho da integridade, que
consiste em brincar com o passado, com os erros, fracassos e fiascos; e, mesmo
assim, constatar que ainda está por chegar coisa melhor para a vida. Ela
projetou o fim da sua vida como referência para iluminar os percalços que iam
aparecendo. Mais tarde, apareceria do renomado psiquiatra austríaco Vicktor
Frankl, sob outra linguagem, a riqueza desta experiência efetivada por
Maristela, como perspectiva e terapia antropológica, chamada de Logoterapia.
Como o sol brilha e ilumina o caminho, ajuda a
perceber se pisamos sobre cobras, resíduos fecais, ou, se nos precipitamos em
precipícios. Os projetos do fim da vida propiciam análoga iluminação para
ajudar a transcender crises, doenças, e limitações no percurso da vida.
Nasceu da perspectiva terapêutica Logoterápica,
ou seja, a terapia do sentido, um modo muito simples e eficaz para lidar com
crises da vida. Geralmente uma crise implica em prender-se demasiadamente a
fatos do passado, o que, por sua vez, anula os projetos. E quando uma pessoa deixa
de olhar para frente e suspende sua mobilidade em torno de projetos, ela entra
num processo depressivo e entrópico de morte. E para clarear o sentido, nada melhor
e mais adequado do que a capacidade de brincar com o passado, pois, é dele que decorre
a capacidade de recriar desejos capazes de prospectar algo bom para além das
perdas e das crises.
Muita gente já ficou curada com a
despretensiosa pergunta, quando tende a falar somente de queixas relativas a
coisas e fatos do passado: como você quer se sentir entre noventa e noventa e
cinco anos? A simples capacidade de pensar algo bom para aquele estágio de vida
já constitui um pequeno vislumbre de saída para a fase de impasses e é suficiente
para começar a transcender uma perda, ou mágoa, por profunda que seja.
Muita gente se descuida e ao chegar à
crise crucial, opta pela desesperança, normalmente induzida pelo meio-ambiente
da convivência. Prevalece, então, o mau humor, o desconforto, a insatisfação e
a constante lamúria do que se perdeu, ou do que magoou no passado. Nesta opção
também não faltam conselhos à exaustão para reforçar que de fato, o que poderia
ter sido bom, já se foi, e que não existe mais perspectiva boa diante do porvir.
Dali decorre o natural pessimismo que leva tantas pessoas a concluir que entre
sofrer como sofrem, e morrer, o melhor mesmo é morrer. E vão se autodestruindo
aos poucos.
Na última visita feita a Maristela,
quando já estava com 93 anos, ela surpreendeu de forma ainda mais encantadora:
cega, andando de muletas, sabia distinguir o trinco da porta do quarto com o
cotovelo, tinha o quarto e banheiro tudo bem arrumado, apresentava-se limpa e
perfumada e agradabilíssima nas conversas. O que mudou foi sua fonte de
informações. Sabia de todos os bons programas de rádio da BBC de Londres, da
Guaíba e da Gaúcha de Porto Alegre, da Tupi de São Paulo, da Rádio Globo do Rio
de Janeiro, bem como os das emissoras da cidade.
Da memória de Martistela, satisfeita
e descomplicada, renasce o sonho de que, como ela, gradualmente muitas pessoas
possam fazer percurso similar na vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário