quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Maristela e a descomplicação da vida



Do baú das boas memórias sempre voltam a reavivar-se sentimentos agradáveis quando as lembranças remetem ao modo de ser de Maristela.
Conheci-a quando era jovem universitário. No começo, não conseguia entender um assunto que ela repetia seguidamente: que se imaginava para a velhice na condição evidente de ter que andar de bengalas. Pretendia, então, fazer três coisas para as quais nunca achava tempo suficiente: pintar telas, ler à vontade e escutar música.
Pensava eu, por outro lado, estar diante de uma mulher doidivanas, pois era absurdo falar assim quando estava aquém dos cinqüenta anos. Se este tema de conversa parecia ser desconfortável e aparentemente pessimista, embora objetivo, o resto da vida de Maristela era puro encantamento. Tratava-se de uma Irmã religiosa, disposta, animada e altamente agradável às pessoas ao seu derredor.
Os rumos da vida e da lida nos distanciaram por alguns anos. Ao voltar para a mesma cidade, estava de volta também aquela conhecida Maristela de anos anteriores. Por surpresa, deslocava-se com o auxílio de muletas. Seria a sina do que esperava? Um acidente automobilístico, em que viajava como acompanhante, deixou-a com sequelas de diversas fraturas, inclusive da bacia. A surpresa maior, no entanto, estava em constatar que continuava na mesma alegria, leveza e disposição. Já aposentada, pintava telas, lia muito e escutava muita música. Tratava-se de uma pessoa sábia capaz falar com autoridade sobre assuntos variados. Não precisava de muitos dias para ler um livro e lia sobre os temas mais diversos como Filosofia, Psicologia, Teologia, Espiritualidade, Romances e livros de Auto-ajuda.
Passados alguns anos, Maristela falou, num dia, que precisava encerrar duas atividades: a leitura e a pintura, porque estava praticamente cega e somente enxergava letras escritas por alguns minutos, antes do meio-dia, diante de sol intenso. Mais uma vez a surpresa continuava: persistiam os mesmos traços da mulher cheia de graça e de encanto, como em algumas décadas anteriores.
Das colegas de convivência de Maristela escutava-se seguidamente a mesma expressão: “A Maristela é cada dia mais descomplicada”! Esta afirmação intrigava, diante de tantas outras pessoas idosas, altamente insatisfeitas, magoadas e pessimistas, das quais não se ouvia coisa melhor do que lamúria. Afinal, o que teria propiciado a Maristela uma orientação de vida para tornar-se diuturnamente mais descomplicada?
Parece que, no geral, a tendência evidente do avanço da idade implica em diminuição de auto-aceitação, de auto-estima, e, em aumento de insatisfação diante das doenças, dos fracassos, das perdas. Por isso, o evidente transluzir de mau-humor, de inconformismo e de rispidez.
Ao inquirir Maristela sobre a antiga previsão feita, veio uma constatação muito simples e descomplicada: Maristela, muito cedo na vida, mais precisamente na crise da bifurcação da vida entre desesperança e integridade, soube escolher o caminho da integridade, que consiste em brincar com o passado, com os erros, fracassos e fiascos; e, mesmo assim, constatar que ainda está por chegar coisa melhor para a vida. Ela projetou o fim da sua vida como referência para iluminar os percalços que iam aparecendo. Mais tarde, apareceria do renomado psiquiatra austríaco Vicktor Frankl, sob outra linguagem, a riqueza desta experiência efetivada por Maristela, como perspectiva e terapia antropológica, chamada de Logoterapia.
 Como o sol brilha e ilumina o caminho, ajuda a perceber se pisamos sobre cobras, resíduos fecais, ou, se nos precipitamos em precipícios. Os projetos do fim da vida propiciam análoga iluminação para ajudar a transcender crises, doenças, e limitações no percurso da vida.
 Nasceu da perspectiva terapêutica Logoterápica, ou seja, a terapia do sentido, um modo muito simples e eficaz para lidar com crises da vida. Geralmente uma crise implica em prender-se demasiadamente a fatos do passado, o que, por sua vez, anula os projetos. E quando uma pessoa deixa de olhar para frente e suspende sua mobilidade em torno de projetos, ela entra num processo depressivo e entrópico de morte. E para clarear o sentido, nada melhor e mais adequado do que a capacidade de brincar com o passado, pois, é dele que decorre a capacidade de recriar desejos capazes de prospectar algo bom para além das perdas e das crises.
Muita gente já ficou curada com a despretensiosa pergunta, quando tende a falar somente de queixas relativas a coisas e fatos do passado: como você quer se sentir entre noventa e noventa e cinco anos? A simples capacidade de pensar algo bom para aquele estágio de vida já constitui um pequeno vislumbre de saída para a fase de impasses e é suficiente para começar a transcender uma perda, ou mágoa, por profunda que seja.
Muita gente se descuida e ao chegar à crise crucial, opta pela desesperança, normalmente induzida pelo meio-ambiente da convivência. Prevalece, então, o mau humor, o desconforto, a insatisfação e a constante lamúria do que se perdeu, ou do que magoou no passado. Nesta opção também não faltam conselhos à exaustão para reforçar que de fato, o que poderia ter sido bom, já se foi, e que não existe mais perspectiva boa diante do porvir. Dali decorre o natural pessimismo que leva tantas pessoas a concluir que entre sofrer como sofrem, e morrer, o melhor mesmo é morrer. E vão se autodestruindo aos poucos.
Na última visita feita a Maristela, quando já estava com 93 anos, ela surpreendeu de forma ainda mais encantadora: cega, andando de muletas, sabia distinguir o trinco da porta do quarto com o cotovelo, tinha o quarto e banheiro tudo bem arrumado, apresentava-se limpa e perfumada e agradabilíssima nas conversas. O que mudou foi sua fonte de informações. Sabia de todos os bons programas de rádio da BBC de Londres, da Guaíba e da Gaúcha de Porto Alegre, da Tupi de São Paulo, da Rádio Globo do Rio de Janeiro, bem como os das emissoras da cidade.

Da memória de Martistela, satisfeita e descomplicada, renasce o sonho de que, como ela, gradualmente muitas pessoas possam fazer percurso similar na vida.

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