Quando
Rudolph Otto desviou período de muitos séculos de discursos sobre Deus, sobre
seus poderes e seus atributos, desviou as atenções sobre outro foco, o das
hierofanias, ou seja, estudou os modos como as pessoas experimentam o sagrado
ou o divino. Constatou que a experiência do sagrado, que também é denominada de
manifestação do campo numinoso, pode acontecer com qualquer objeto, em ambiente
e nas mais variadas situações, e, pode levar as pessoas que fazem esta
experiência a algo totalmente inédito e que muda profundamente a sua vida.
Quando uma pessoa faz uma experiência
hierofânica, normalmente deseja apropriar-se desta experiência, porque, ao
mesmo tempo, que apavora, atrai com muita intensidade. Ela sequer consegue
explicá-la com palavras e gestos. As palavras são literalmente insuficientes
para explicá-la. Dali decorre uma peculiaridade bastante comum das pessoas que
experimentam o sagrado: o desejo profundo de haurir poderes superiores e, com
isso, ascender sobre as demais pessoas e induzi-las a seguir seus conselhos e suas
orientações.
Um fato bíblico, narrado no livro de
Samuel e relido sob muitos aspectos ao longo de muitos séculos do primeiro
testamento da Bíblia, mostra como este humilde guerrilheiro mudou radicalmente
com a conquista do poder: deixou de comparar-se ao bom pastor que presta o
melhor serviço em favor de justiça e paz segundo o anseio de Deus, e passou a
apropriar-se de bens e aplicá-los em seu proveito pessoal.
Ao tornar-se rei de Israel, Davi
esqueceu todo o legado e seu empenho de lutas, sob a imagem religiosa do bom
pastor que cuida das ovelhas, para ser apenas bom pastor em favor de si mesmo.
Apostou no luxo e ao sentir-se muito poderoso resolveu construir um templo para
Deus, a fim de que Ele tivesse ali a sua morada. Em outras palavras quis
apropriar-se até mesmo de Deus – ou ocupar seu lugar - e deixá-lo como súdito
dos planos mirabolantes que alimentava, sem, contudo, pensar no mínimo
bem-estar do povo.
A memória do povo sentia-se ferida
com a ambição do rei. Lembrava as pessoas, que nos tempos de constituição daquele
país, Deus tinha acompanhado a vida e a lida em tendas nas migrações de
conquista da terra. O pretensioso Davi desejava engaiolá-lo para melhor
confirmar seus próprios interesses.
Como Davi, foi se esquecendo gradual
e progressivamente dos seus propósitos do passado humilde, e passou a apostar
decididamente nos projetos megalomanícos, com vistas a impor a grandeza do seu
poder, o povo humilde e espoliado, ao contrário, continuava a sonhar com os
antigos anseios: o de que fosse ajudado por um governante que não pensasse
apenas em si mesmo.
Nossos dias parecem repetir muitas
experiências pessoais, familiares e sociais bem similares ao percurso do rei
Davi. Muitos, assim que enriquecem, acham-se no mais justo direito de construir
mansões suntuosas e, afrontosas, às condições gerais do povo, e, o que é ainda
pior, no pressuposto de que tudo constitua pura graça e bênção de Deus, sem a
menor consciência da hipoteca social das fortunas acumuladas. E não poucas
pessoas, como Davi, constroem espaços para agradecer a Deus e alargar o olho
com vistas a mais bens e a patamares mais elevados nas instâncias do poder.
A proximidade do Natal nos aviva
outra memória, a de Jesus Cristo, que ainda hoje questiona um tipo de governo
monárquico em todos os níveis sociais que propicia muita grandeza pessoal e
esnobação de carros e edificações, mas, absolutamente insensível aos mínimos
sentimentos de partilha destes bens amealhados.
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