quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Apropriação do sagrado



            Quando Rudolph Otto desviou período de muitos séculos de discursos sobre Deus, sobre seus poderes e seus atributos, desviou as atenções sobre outro foco, o das hierofanias, ou seja, estudou os modos como as pessoas experimentam o sagrado ou o divino. Constatou que a experiência do sagrado, que também é denominada de manifestação do campo numinoso, pode acontecer com qualquer objeto, em ambiente e nas mais variadas situações, e, pode levar as pessoas que fazem esta experiência a algo totalmente inédito e que muda profundamente a sua vida.
Quando uma pessoa faz uma experiência hierofânica, normalmente deseja apropriar-se desta experiência, porque, ao mesmo tempo, que apavora, atrai com muita intensidade. Ela sequer consegue explicá-la com palavras e gestos. As palavras são literalmente insuficientes para explicá-la. Dali decorre uma peculiaridade bastante comum das pessoas que experimentam o sagrado: o desejo profundo de haurir poderes superiores e, com isso, ascender sobre as demais pessoas e induzi-las a seguir seus conselhos e suas orientações.
Um fato bíblico, narrado no livro de Samuel e relido sob muitos aspectos ao longo de muitos séculos do primeiro testamento da Bíblia, mostra como este humilde guerrilheiro mudou radicalmente com a conquista do poder: deixou de comparar-se ao bom pastor que presta o melhor serviço em favor de justiça e paz segundo o anseio de Deus, e passou a apropriar-se de bens e aplicá-los em seu proveito pessoal.
Ao tornar-se rei de Israel, Davi esqueceu todo o legado e seu empenho de lutas, sob a imagem religiosa do bom pastor que cuida das ovelhas, para ser apenas bom pastor em favor de si mesmo. Apostou no luxo e ao sentir-se muito poderoso resolveu construir um templo para Deus, a fim de que Ele tivesse ali a sua morada. Em outras palavras quis apropriar-se até mesmo de Deus – ou ocupar seu lugar - e deixá-lo como súdito dos planos mirabolantes que alimentava, sem, contudo, pensar no mínimo bem-estar do povo.
A memória do povo sentia-se ferida com a ambição do rei. Lembrava as pessoas, que nos tempos de constituição daquele país, Deus tinha acompanhado a vida e a lida em tendas nas migrações de conquista da terra. O pretensioso Davi desejava engaiolá-lo para melhor confirmar seus próprios interesses.
Como Davi, foi se esquecendo gradual e progressivamente dos seus propósitos do passado humilde, e passou a apostar decididamente nos projetos megalomanícos, com vistas a impor a grandeza do seu poder, o povo humilde e espoliado, ao contrário, continuava a sonhar com os antigos anseios: o de que fosse ajudado por um governante que não pensasse apenas em si mesmo.
Nossos dias parecem repetir muitas experiências pessoais, familiares e sociais bem similares ao percurso do rei Davi. Muitos, assim que enriquecem, acham-se no mais justo direito de construir mansões suntuosas e, afrontosas, às condições gerais do povo, e, o que é ainda pior, no pressuposto de que tudo constitua pura graça e bênção de Deus, sem a menor consciência da hipoteca social das fortunas acumuladas. E não poucas pessoas, como Davi, constroem espaços para agradecer a Deus e alargar o olho com vistas a mais bens e a patamares mais elevados nas instâncias do poder.
A proximidade do Natal nos aviva outra memória, a de Jesus Cristo, que ainda hoje questiona um tipo de governo monárquico em todos os níveis sociais que propicia muita grandeza pessoal e esnobação de carros e edificações, mas, absolutamente insensível aos mínimos sentimentos de partilha destes bens amealhados.


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