quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Quando as talhas estão vazias



A palavra “talha” apresenta mais que uma dúzia de significados diferentes. Um deles, talvez o que mais lembramos, é o do pote de barro com grande bojo para conter água, azeite ou outro ingrediente. Imaginar o tempo de mais de dois mil anos atrás, uma talha vazia certamente constituía sinônimo de alguma inquietação. Não ter água, azeite ou outro produto de alimentação básica na talha, requeria, evidentemente, algum ato de providência.
Na expressão religiosa, talha também possuía mais um significado importante para os judeus. Constituía um pequeno cubículo, parecido com nossos chuveiros – pelo menos os das pessoas mais pobres – e consistia numa escavação de aproximadamente um palmo de profundidade e que era preenchido de água para os rituais de purificação. Diante das pequenas faltas, desencontros ou desentendimentos a pessoa ficava parada neste cubículo, de modos que os pés ficassem na água, a fim de fazer o ritual de purificação daqueles deslizes, ou, como nós diríamos um momento de integração das faltas cometidas, para sentir-se purificado e perdoado diante de Deus.
O início do Evangelho de São João (2,1-11) destaca o primeiro grande sinal da parte de Deus, efetuado por Jesus Cristo, que foi o de pedir para encher novamente as talhas vazias! A religião havia se tornado tão formalista, exterior e sem força dinâmica para a vida, que já não salvava nada! Sob este aspecto, talha vazia, além de não purificar e nem redimir, significava religião inoperante.
A intervenção da mãe de Jesus Cristo reflete preocupação com esta falta de qualidade da expressão religiosa. Ela, no entanto, em vez de se prender ao ritualismo vazio, se antecipou com uma intuição profunda de que se fazia necessário uma nova aliança: não a do legalismo inoperante simbolizado na água, mas, a do novo do projeto de seu filho, identificado com o vinho. Como mãe, e, também como discípula, exerceu certa pressão pela nova aliança, capaz de encher as talhas de sentido! Longe da magia, desejou que o rito religioso não se constituísse de mera purificação, mas que expressasse a alegria da festa: afinal, o noivo – lembrando os antigos enlaces de Deus com o povo – estava ali e dava razão para alegrias messiânicas.
Se a água das talhas constituíra mediação redentora, porque substituí-la por vinho? Porque lembra a nova aliança de Jesus Cristo, capaz de propiciar plenitude à vida. Na imagem do vinho bom, que alegra a festa, encontra-se um significado simbólico muito rico: nas bodas do estabelecimento de um novo pacto, a presença do noivo torna-se motivo de alegre festa! Ele, com seu jeito e sua lida, surpreende para além do esperado. Sua presença equivale à surpresa do vinho bom, porquanto aponta caminho que não apenas redime de pequenas faltas cotidianas, mas preenche e substitui a longa tradição que havia se esvaziado e desandado em casuísmos.
Nossos dias parecem repetir algo parecido com o progressivo esvaziamento dos rituais religiosos. No entanto, o que se vê pouco, são intuições para algo novo e para além das muitas piedades marianas que sequer aproximam as pessoas ao projeto de Jesus Cristo, nem tampouco das alegrias da sua presença no meio de nós. Por outro lado, o que se vê em tantos veículos de comunicação são emocionalismos explorados nos mínimos detalhes de uma presumida deusa poderosa, vaidosa, transformada em rainha, e que, ornamentada de jóias e bricolagens, sempre requer as mesmas coisas alienantes. Esta talha também está dando sinais de decrepitude e de inoperância para os problemas reais da vida!


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