sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O CHEIRADOR DE ROLHA

 

 

O professor universitário, doutor em Educação, chamado José Bingolim, apresentava-se no perfil nobre da erudição francesa. Andava, um dia como outro, de terno e gravata e se destacava, mais pela pose, do que pela sabedoria. Como tanta outra gente, que mistura seu ego com o status, ele era perito em falar, não dos temas candentes e inquietantes da educação, mas, precipuamente, dos vinhos franceses.

Descendente de italianos que migraram ao sul do Brasil, cresceu naquele clima de famílias numerosas, com muita polenta, queijo, vinho e salame. De estatura média, mas, robusta e bem alargada, fazia da sua fala uma tergiversação degringolada. Como esteve algumas vezes na França, e fez cursinho, por correspondência, sobre como tomar vinhos nobres, conseguia falar, horas a fio, sobre os modos de se tomar vinho, sobre os tipos de taças, sobre as condições de manutenção das garrafas nos altarezinhos da adoração do deus Priapo, sobre o como fazer este vinho circular por todo o ambiente da boca, para, enfim, deixa-lo deslizar, suavemente, no penhasco da garganta e pousar, com elegância, no meio daquele lugar pantanoso do estômago.

Chatíssimo na sua enlevação para ensinar como tomar vinho, constituía-se, realmente, em professor catedrático de afirmações eruditas, com descrições minuciosas, e, com largas minudências e brogúncias, a respeito de vinhos, sobretudo, os franceses.

Bingolim ostentava uma colorida variedade de garrafas na parede da sala de estar da sua casa. No destaque daquela prateleira, ficava um pote de vidro, enorme, de cerca de cinquenta centímetros de altura, praticamente cheio de rolhas cheiradas e guardadas para ativar a memória dos tipos de excelsos e nobres vinhos já ingeridos depois dos ditos “buquês” e desassidificação naqueles giros do vinho dentro da taça, antes de aproximá-lo da boca, suspirante e sedenta por aquele líquido precioso.

De vez em quando, em seus arroubos, nada deletérios, para coçar seu próprio ego, convidava um e outro colega para um jantar. Um destes colegas foi o professor Pedro Kretz. O sobrenome já indicava um pouco do seu perfil, pois, Kretz, em alemão significa sarna, -  para os pobres; - e, para os ricos, esta bonita doença chamada de escabiose.

Com características de irritação cutânea por ter que suportar algumas horas de jactância sobre vinhos e como tomá-los, Pedro tinha uma desculpa de que não tomava vinho, nem francês, nem grego e, nem mesmo, o falado vinho alemão “Jungfraumilch” (traduzido, leite de jovem senhora), e, menos ainda, estes vinhos de garrafão, vendidos nos armazéns e supermercados como “Sangue de Boi”, “Chapinha”, “Campo Largo” e outros similares. Argumentava que bebia apenas alguma latinha de cerveja, no bico, sem sequer usar copo. Era, evidentemente, uma ironia contra o nobre professor e degustador de vinhos.

Jantar ao lado do professor José Bingolim (“Bingolim” também significava a bochinha fina, ou balim, usada nos jogos de bocha, esporte preferido dos descendentes italianos), proporcionava impreterível movimentação peristáltica.

Um dia, o professor formulou mais um convite para que José Kretz fosse jantar em sua casa. A esposa do Bingolim, gentil e discreta, tinha que ser assim mesmo, pois, ante as falas ininterruptas do marido, deve ter aprendido a ficar calada. Desta vez, porém, veio o que faltava para a conversa ser exclusivamente sobre vinhos franceses.

 Tratou-se da presença da doutora Margarete, filha de gente modesta, que lutou muito para custear sua Faculdade de Medicina, mas, ela, como médica, e auto-proclamada doutora, já não se ocupava mais com as conversas do senso comum e dos ambientes da vila de onde saiu. Era destas mulheres falantes e faladeiras, tanto quanto o professor Bingolim para abordar o tema preferido e impreterível: vinhos.

Enquanto a esposa do professor Bingolim arrumava a mesa com aquelas pilhas de pratos, e enchendo o espaço disponível com taças, guardanapos, talheres e outros apetrechos, o professor mostrava seus equipamentos para servir vinho, a fim de não permitir que alguma gota de vinho deslizasse pelo bico da garrafa e fosse parar na toalha branca da mesa e, sobre o como colocar o dedo naquele buraco arredondado no fundo da garrafa, na hora de servir o vinho. Até para isso, precisava ser seguido um ritual de elevada etiqueta.

No meio da conversa fechada com a médica Margarete, Bingolim foi pegar uma garrafa de vinho, colocou-a sobre a mesinha especial entre os sofás, foi buscar a caixa dos apetrechos para abrir a garrafa, e, o que mais incomodou José Kretz, foi que Bingolim, assim que extraiu a rolha do bico da garrafa, cheirou a rolha e fez os visitantes também cheirá-la. Foi, então, que iniciou a palestra magna sobre o cheirar a rolha. Aquela ritualização solene, de cheirar, ficar com o nariz no rumo da lua, inebriar-se com os eflúvios daquele néctar dos deuses, tornava-se altamente animalesco para o José Kretz.

Afinal, ele, quando era menino, observava um ritual tão parecido com os touros e carneiros, que, cheirando a saída urinária das fêmeas, ficavam com o nariz erguido na direção da lua. O ato consistia, certamente, no tempo necessário para que aquelas inalações chegassem, através de seletos neurônios, até o cérebro para lhe dizer que deliberasse uma ordem ao corpo: pode inebriar-se à exaustão com tais hormônios de pura felicidade.

A médica conseguiu furar o monólogo da conversa do professor Bingolim, e enveredou sua grandiloquência sobre vinhos franceses, que ela apreciava muito. Era “Chateaux” disso e “Chateaux” daquilo, como “Chateaux de la Cave”, “Chandon”, que o silenciado José Kretz desejava, também, entrar na conversa, para dizer que já tinha tomado “Vino de Riocha”, da Espanha e, Casilla del Diablo, do Chile. Como não conseguiu furar a esotérica e mística elevação dos dois, depois de cheirar a rolha, ele não aguentou mais aquela conversa interminável sobre vinho francês e rolha, levantou-se e falou para os dois: eu apenas aprecio um único vinho francês. É o vinho “Chatô de Shaco Cheio”. Levantou-se e foi embora, antes do jantar. Para seu alívio, nunca mais foi convidado.

 

 

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