O professor universitário, doutor em
Educação, chamado José Bingolim, apresentava-se no perfil nobre da erudição
francesa. Andava, um dia como outro, de terno e gravata e se destacava, mais
pela pose, do que pela sabedoria. Como tanta outra gente, que mistura seu ego
com o status, ele era perito em falar, não dos temas candentes e inquietantes
da educação, mas, precipuamente, dos vinhos franceses.
Descendente de italianos que migraram
ao sul do Brasil, cresceu naquele clima de famílias numerosas, com muita
polenta, queijo, vinho e salame. De estatura média, mas, robusta e bem
alargada, fazia da sua fala uma tergiversação degringolada. Como esteve algumas
vezes na França, e fez cursinho, por correspondência, sobre como tomar vinhos nobres,
conseguia falar, horas a fio, sobre os modos de se tomar vinho, sobre os tipos
de taças, sobre as condições de manutenção das garrafas nos altarezinhos da
adoração do deus Priapo, sobre o como fazer este vinho circular por todo o
ambiente da boca, para, enfim, deixa-lo deslizar, suavemente, no penhasco da
garganta e pousar, com elegância, no meio daquele lugar pantanoso do estômago.
Chatíssimo na sua enlevação para
ensinar como tomar vinho, constituía-se, realmente, em professor catedrático de
afirmações eruditas, com descrições minuciosas, e, com largas minudências e
brogúncias, a respeito de vinhos, sobretudo, os franceses.
Bingolim ostentava uma colorida
variedade de garrafas na parede da sala de estar da sua casa. No destaque
daquela prateleira, ficava um pote de vidro, enorme, de cerca de cinquenta
centímetros de altura, praticamente cheio de rolhas cheiradas e guardadas para
ativar a memória dos tipos de excelsos e nobres vinhos já ingeridos depois dos
ditos “buquês” e desassidificação naqueles giros do vinho dentro da taça, antes
de aproximá-lo da boca, suspirante e sedenta por aquele líquido precioso.
De vez em quando, em seus arroubos,
nada deletérios, para coçar seu próprio ego, convidava um e outro colega para
um jantar. Um destes colegas foi o professor Pedro Kretz. O sobrenome já
indicava um pouco do seu perfil, pois, Kretz, em alemão significa sarna, - para os pobres; - e, para os ricos, esta
bonita doença chamada de escabiose.
Com características de irritação
cutânea por ter que suportar algumas horas de jactância sobre vinhos e como
tomá-los, Pedro tinha uma desculpa de que não tomava vinho, nem francês, nem
grego e, nem mesmo, o falado vinho alemão “Jungfraumilch” (traduzido, leite de
jovem senhora), e, menos ainda, estes vinhos de garrafão, vendidos nos armazéns
e supermercados como “Sangue de Boi”, “Chapinha”, “Campo Largo” e outros
similares. Argumentava que bebia apenas alguma latinha de cerveja, no bico, sem
sequer usar copo. Era, evidentemente, uma ironia contra o nobre professor e
degustador de vinhos.
Jantar ao lado do professor José
Bingolim (“Bingolim” também significava a bochinha fina, ou balim, usada nos
jogos de bocha, esporte preferido dos descendentes italianos), proporcionava
impreterível movimentação peristáltica.
Um dia, o professor formulou mais um
convite para que José Kretz fosse jantar em sua casa. A esposa do Bingolim,
gentil e discreta, tinha que ser assim mesmo, pois, ante as falas ininterruptas
do marido, deve ter aprendido a ficar calada. Desta vez, porém, veio o que
faltava para a conversa ser exclusivamente sobre vinhos franceses.
Tratou-se da presença da doutora Margarete,
filha de gente modesta, que lutou muito para custear sua Faculdade de Medicina,
mas, ela, como médica, e auto-proclamada doutora, já não se ocupava mais com as
conversas do senso comum e dos ambientes da vila de onde saiu. Era destas
mulheres falantes e faladeiras, tanto quanto o professor Bingolim para abordar
o tema preferido e impreterível: vinhos.
Enquanto a esposa do professor
Bingolim arrumava a mesa com aquelas pilhas de pratos, e enchendo o espaço
disponível com taças, guardanapos, talheres e outros apetrechos, o professor
mostrava seus equipamentos para servir vinho, a fim de não permitir que alguma
gota de vinho deslizasse pelo bico da garrafa e fosse parar na toalha branca da
mesa e, sobre o como colocar o dedo naquele buraco arredondado no fundo da
garrafa, na hora de servir o vinho. Até para isso, precisava ser seguido um
ritual de elevada etiqueta.
No meio da conversa fechada com a
médica Margarete, Bingolim foi pegar uma garrafa de vinho, colocou-a sobre a
mesinha especial entre os sofás, foi buscar a caixa dos apetrechos para abrir a
garrafa, e, o que mais incomodou José Kretz, foi que Bingolim, assim que
extraiu a rolha do bico da garrafa, cheirou a rolha e fez os visitantes também
cheirá-la. Foi, então, que iniciou a palestra magna sobre o cheirar a rolha.
Aquela ritualização solene, de cheirar, ficar com o nariz no rumo da lua,
inebriar-se com os eflúvios daquele néctar dos deuses, tornava-se altamente
animalesco para o José Kretz.
Afinal, ele, quando era menino,
observava um ritual tão parecido com os touros e carneiros, que, cheirando a
saída urinária das fêmeas, ficavam com o nariz erguido na direção da lua. O ato
consistia, certamente, no tempo necessário para que aquelas inalações
chegassem, através de seletos neurônios, até o cérebro para lhe dizer que
deliberasse uma ordem ao corpo: pode inebriar-se à exaustão com tais hormônios
de pura felicidade.
A médica conseguiu furar o monólogo
da conversa do professor Bingolim, e enveredou sua grandiloquência sobre vinhos
franceses, que ela apreciava muito. Era “Chateaux” disso e “Chateaux” daquilo,
como “Chateaux de la Cave”, “Chandon”, que o silenciado José Kretz desejava,
também, entrar na conversa, para dizer que já tinha tomado “Vino de Riocha”, da
Espanha e, Casilla del Diablo, do Chile. Como não conseguiu furar a esotérica e
mística elevação dos dois, depois de cheirar a rolha, ele não aguentou mais
aquela conversa interminável sobre vinho francês e rolha, levantou-se e falou
para os dois: eu apenas aprecio um único vinho francês. É o vinho “Chatô de
Shaco Cheio”. Levantou-se e foi embora, antes do jantar. Para seu alívio, nunca
mais foi convidado.
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