segunda-feira, 23 de setembro de 2013

O LOBO MAU

Há dias atrás o senhor conhecido como “Seu Zé”, com aparência preocupada, falou: Não sei se conto ou se confesso, pois, já matei cinco lobos, e continuam a aparecer outros para comer os carneiros e as galinhas, lá na Fazenda.

Mesmo que os lobos, sobretudo os guarás, constituam uma espécie em extinção e, apesar da legislação proibitiva do abate desta espécie de animais, eles continuam sendo vítimas de um antigo preconceito de que são maus, e pela característica de seu modo de caçar para sobreviver, encontram na vida sedentária das Fazendas o que já não encontram nas matas do cerrado. Diante dos avanços agro-industriais, os lobos estão categoricamente fadados ao extermínio completo.

Há milhares de anos os lobos vêm sendo discriminados por um preconceito humano por uma razão simples: gostam de algumas iguarias alimentares que os seres humanos apreciam em seus confinamentos como carneiros e galinhas. Só este gosto peculiar os rotulou como “lobos maus” e, conseqüentemente, como inimigos dos seres humanos.

O desejo de conservar as galinhas, os carneiros e outros animais domesticáveis da Fazenda, para as finalidades do seu dono e, não as dos lobos, oferece uma rica analogia para entender nossa sociedade de controle. Os lobos, desde tempos remotos, se constituíram em concorrentes rivais em torno do mesmo interesse de consumo de parte do que se produz na Fazenda. Ocorre, porém, uma diferença notável: se o dono abate uma galinha, sente-se grato pelo alimento que a dádiva divina ou da natureza lhe concedeu. Por isto, frui o saboroso alimento com um sentimento satisfação.

Se o dono da Fazenda mata o lobo, o sentimento já não é o mesmo do que ocorre com a galinha. Afinal, matando um lobo, elimina um concorrente e sente-se vitorioso e mais poderoso no controle dos seus animais domésticos. Interessante é que o lobo mesmo não atacando o dono da Fazenda, passa a ser considerado inimigo do Fazendeiro, porque quer as mesmas galinhas e os mesmos carneiros para o seu alimento. Por que o Fazendeiro pode e o lobo não pode apossar-se da carne produzida pela natureza?

A passagem da vida nômade para a sedentária, certamente abriu este traço cultural que já vem se perpetuando há cerca de quatro a cinco mil anos: o direito de matar quem ameaça o foco de interesses. Assim como no controle de alguns animais, evitando que sejam transformados em natural alimento para concorrentes, os seres humanos acharam-se no direito de eliminar tudo quanto representa “lobo mau” nas relações consumistas do mercado. Nesta relação, muito mais predadora do que a dos lobos, impõe-se em nosso sistema social o ditame da dominação e da subordinação. Sob esta ordem, os verbos predominantes da comunicação são os de controlar, dominar, e neutralizar tudo quanto possa vir a constituir eventual risco destrutivo dos interesses.  

Quem ameaça os interesses, é transformado em inimigo ou “lobo mau”. Como inimigo, merece ameaça, perseguição e morte. Ele sempre é razão de guerra. Como os interesses são produzidos e, ao mesmo tempo decorrentes de encantamentos em torno das idealizações projetadas, já não se espera segurança da espontânea produção de animais e de plantas, mas, se interfere na bio-engenharia para acelerar ainda mais a produção. O olhar unidirecional aponta a necessidade de abundância e a urgente necessidade de protegê-la cada vez mais contra os “lobos maus” que possam, mesmo num momento de muita fome, desejar parte desta acumulação. Como não há limites no desejo de assegurar o necessário, os “os lobos maus”, que aprendam a comer folhas e a sobreviver com o oxigênio!

Na sociedade o sistema acumulativo leva a rechaçar e a perseguir quem possa ameaçar os desejos, e aumenta-se a atenção em torno dos eventuais atrevidos, inimigos potenciais, a fim de que sejam eliminados, ou pelo menos, sob ameaças, mantido a distância quilométrica. A emoção em torno da defesa do que foi apropriado é o argumento suficiente para matar quem possa pretender parte da apropriação deste fruto da emoção desejada: isso é meu! Daí porque em todos estes milhares de anos, fala-se muito da miséria e da fome, mas não se muda a barreira criada em torno do declarado “inimigo”. Afinal, sua morte representa alegria da conquista e de aumento de poder e já não é mais pensada como homicídio.

Grande parte dos seres humanos é perseguida para que não tenha acesso à alimentação normal. O natural ato de proteger implica em outro, que é o da desconfiança. E a simples suspeita de que alguém é “lobo mau” já justifica exclusão de morte e todo arsenal de guerra contra ele.

Para assegurar o êxito da guerra, seja a da provocação, da difamação ou da real eliminação, cria-se o complexo messiânico: é preciso admoestar, corrigir e convencer a todos para que sejam submissos e aceitem ser orientados no bom caminho; que morram de fome, mas que não comam as “galinhas da Fazenda”. A desconfiança aumenta em relação aos que não se submetem, pois, a autonomia, seja ela política, civil ou religiosa, já irradia pelos olhos o perfil do “lobo mau”. Na linguagem religiosa o “lobo mau” esconde sob a pele a ação demoníaca o “chifrudo”. Disso decorre a evidente justificativa de que tudo precisa ser hierarquizado e que a ordem desta hierarquização precisa contar impreterivelmente com a obediência. Tudo deve estar fundamentado na autoridade e na subordinação desta autoridade, e por ela ser conduzida nos rumos do “bem”.

As galinhas não podem ficar sob a tutela dos lobos, ainda que os donos das Fazendas as matem de forma similar. Competir e caçar os “lobos maus’ passa a constituir a ordem máxima e da maior excelência, na competição por mais prosperidade e progresso de nossos dias. Na “grande Fazenda” dos carneiros e das galinhas, (ambiente social) não há lugar para quem pensa diferente, seja, no quadro religioso, político ou sócio-cultural.

O lobo que precisa da carne das galinhas para sobreviver, não tem mais este direito. Este direito foi assumido pelo Fazendeiro, seu rival de luta, de autoridade e de poder, que é capaz de controlar os outros a fim de que fiquem submissos aos ditames do que a sua verdade, nascida de um encantamento emocional, lhe indica.

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