Há dias atrás o senhor conhecido como “Seu Zé”, com
aparência preocupada, falou: Não sei se conto ou se confesso, pois, já matei
cinco lobos, e continuam a aparecer outros para comer os carneiros e as
galinhas, lá na Fazenda.
Mesmo que os lobos, sobretudo os guarás, constituam
uma espécie em extinção e, apesar da legislação proibitiva do abate desta
espécie de animais, eles continuam sendo vítimas de um antigo preconceito de
que são maus, e pela característica de seu modo de caçar para sobreviver,
encontram na vida sedentária das Fazendas o que já não encontram nas matas do
cerrado. Diante dos avanços agro-industriais, os lobos estão categoricamente
fadados ao extermínio completo.
Há milhares de anos os lobos vêm sendo discriminados por
um preconceito humano por uma razão simples: gostam de algumas iguarias
alimentares que os seres humanos apreciam em seus confinamentos como carneiros
e galinhas. Só este gosto peculiar os rotulou como “lobos maus” e,
conseqüentemente, como inimigos dos seres humanos.
O desejo de conservar as galinhas, os carneiros e
outros animais domesticáveis da Fazenda, para as finalidades do seu dono e, não
as dos lobos, oferece uma rica analogia para entender nossa sociedade de
controle. Os lobos, desde tempos remotos, se constituíram em concorrentes
rivais em torno do mesmo interesse de consumo de parte do que se produz na
Fazenda. Ocorre, porém, uma diferença notável: se o dono abate uma galinha,
sente-se grato pelo alimento que a dádiva divina ou da natureza lhe concedeu.
Por isto, frui o saboroso alimento com um sentimento satisfação.
Se o dono da Fazenda mata o lobo, o sentimento já não
é o mesmo do que ocorre com a galinha. Afinal, matando um lobo, elimina um
concorrente e sente-se vitorioso e mais poderoso no controle dos seus animais
domésticos. Interessante é que o lobo mesmo não atacando o dono da Fazenda,
passa a ser considerado inimigo do Fazendeiro, porque quer as mesmas galinhas e
os mesmos carneiros para o seu alimento. Por que o Fazendeiro pode e o lobo não
pode apossar-se da carne produzida pela natureza?
A passagem da vida nômade para a sedentária,
certamente abriu este traço cultural que já vem se perpetuando há cerca de quatro
a cinco mil anos: o direito de matar quem ameaça o foco de interesses. Assim
como no controle de alguns animais, evitando que sejam transformados em natural
alimento para concorrentes, os seres humanos acharam-se no direito de eliminar
tudo quanto representa “lobo mau” nas relações consumistas do mercado. Nesta
relação, muito mais predadora do que a dos lobos, impõe-se em nosso sistema
social o ditame da dominação e da subordinação. Sob esta ordem, os verbos predominantes
da comunicação são os de controlar, dominar, e neutralizar tudo quanto possa
vir a constituir eventual risco destrutivo dos interesses.
Quem ameaça os interesses, é transformado em inimigo
ou “lobo mau”. Como inimigo, merece ameaça, perseguição e morte. Ele sempre é
razão de guerra. Como os interesses são produzidos e, ao mesmo tempo
decorrentes de encantamentos em torno das idealizações projetadas, já não se
espera segurança da espontânea produção de animais e de plantas, mas, se
interfere na bio-engenharia para acelerar ainda mais a produção. O olhar
unidirecional aponta a necessidade de abundância e a urgente necessidade de
protegê-la cada vez mais contra os “lobos maus” que possam, mesmo num momento
de muita fome, desejar parte desta acumulação. Como não há limites no desejo de
assegurar o necessário, os “os lobos maus”, que aprendam a comer folhas e a
sobreviver com o oxigênio!
Na sociedade o sistema acumulativo leva a rechaçar e a
perseguir quem possa ameaçar os desejos, e aumenta-se a atenção em torno dos
eventuais atrevidos, inimigos potenciais, a fim de que sejam eliminados, ou
pelo menos, sob ameaças, mantido a distância quilométrica. A emoção em torno da
defesa do que foi apropriado é o argumento suficiente para matar quem possa pretender
parte da apropriação deste fruto da emoção desejada: isso é meu! Daí porque em
todos estes milhares de anos, fala-se muito da miséria e da fome, mas não se
muda a barreira criada em torno do declarado “inimigo”. Afinal, sua morte
representa alegria da conquista e de aumento de poder e já não é mais pensada
como homicídio.
Grande parte dos seres humanos é perseguida para que
não tenha acesso à alimentação normal. O natural ato de proteger implica em
outro, que é o da desconfiança. E a simples suspeita de que alguém é “lobo mau”
já justifica exclusão de morte e todo arsenal de guerra contra ele.
Para assegurar o êxito da guerra, seja a da
provocação, da difamação ou da real eliminação, cria-se o complexo messiânico:
é preciso admoestar, corrigir e convencer a todos para que sejam submissos e
aceitem ser orientados no bom caminho; que morram de fome, mas que não comam as
“galinhas da Fazenda”. A desconfiança aumenta em relação aos que não se
submetem, pois, a autonomia, seja ela política, civil ou religiosa, já irradia
pelos olhos o perfil do “lobo mau”. Na linguagem religiosa o “lobo mau” esconde
sob a pele a ação demoníaca o “chifrudo”. Disso decorre a evidente
justificativa de que tudo precisa ser hierarquizado e que a ordem desta
hierarquização precisa contar impreterivelmente com a obediência. Tudo deve
estar fundamentado na autoridade e na subordinação desta autoridade, e por ela
ser conduzida nos rumos do “bem”.
As galinhas não podem ficar sob a tutela dos lobos,
ainda que os donos das Fazendas as matem de forma similar. Competir e caçar os
“lobos maus’ passa a constituir a ordem máxima e da maior excelência, na
competição por mais prosperidade e progresso de nossos dias. Na “grande Fazenda”
dos carneiros e das galinhas, (ambiente social) não há lugar para quem pensa
diferente, seja, no quadro religioso, político ou sócio-cultural.
O lobo que precisa da carne das galinhas para
sobreviver, não tem mais este direito. Este direito foi assumido pelo
Fazendeiro, seu rival de luta, de autoridade e de poder, que é capaz de
controlar os outros a fim de que fiquem submissos aos ditames do que a sua
verdade, nascida de um encantamento emocional, lhe indica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário