sexta-feira, 20 de setembro de 2013

NA VASTITAS BOREALIS DE MARTE

NA VASTITAS BOREALIS DE MARTE

João Inácio Kolling


APRESENTAÇÃO

            Na intencionalidade do incauto escrevedor deste texto inquietou, para além da imaginação fictícia, um tema candente em torno do modo de produzir e de consumir bens aqui na Terra, em tempos de crise de sustentabilidade. Assim, mesmo nos rápidos lumes dos poucos aspectos econômicos salientados para uma presumida mudança no modo de produzir e consumir, neles estão, contudo, impregnadas muitas esperanças de que certos procedimentos humanos ainda podem propiciar relações mais satisfatórias do que as decorrentes dos excessivos poderes de controle. Muito distante da pretensão de apontar para uma Constituição ou um Estatuto capaz de engendrar a vida, ou ainda, qualquer coisa parecida com ordenamento e sistematização de um programa social, o assunto aqui abordado se delineou por pretensões apenas do limiar de entrada desta ampla perspectiva de vida social. Pretendeu somente realçar alguns valores que poderiam fazer bem na convivência social e aguçar, na mente dos eventuais leitores, a sensibilidade para pensar coisas mais completas e significativas.
            Como em nossos dias ocorre acelerada compressão do espaço e do tempo em função do muito que se pode e se quer fazer, reduzem-se, em contrapartida, a disponibilidade de muitas horas e as motivações para longas leituras. Considerando esta contingência, optou-se por uma abordagem rápida e que possa ser lida no tempo de apenas uma hora. Tal opção evidentemente foge da exaustividade que o assunto comportaria, mas, na fugacidade de tudo que muda muito rapidamente, salienta, mesmo assim, alguns lampejos relevantes para alargar a consciência crítica em torno de muitas coisas que se passam sorrateiramente na organização da vida social de nossos dias.
           O Autor




I
Nas planuras de Olympus Mons
           
 No dia 1º de janeiro de 2030, ainda segundo a contagem terrena do tempo, pousou em Marte o primeiro e enorme trem espacial, vindo da Terra, numa velocidade de mais de 32 mil quilômetros por hora num túnel de vácuo, com a primeira leva de seres humanos, vindos para habitar no solo ocre deste imenso planeta.
 O trem espacial continha, além das 500 pessoas, uma série de materiais, de alimentos e de equipamentos para os serviços básicos de instalação de um primeiro grande balão, com capacidade de abrigar dez mil pessoas na vasta planície que se estende da calota polar sul de Marte, não muito distante do grande vulcão Olympus Mons que ocupa uma área de aproximadamente 500km².
Escolheram esta região de imensas lagoas congeladas, de coloração esbranquiçada, que contrastavam com o fundo dos belíssimos desfiladeiros a se perderem da capacidade visual. A imensidão destes vales sequer deixava limiares de distância aos olhos de tão extensas que se apresentavam. O vulcão Olympus Mons, além da sua deslumbrante e altaneira imponência, elevada a muitos mil metros de altitude, constituía um referencial vistoso e iluminador, e elevava a temperatura da região, o que a tornava suportável aos humanos.




II
Desembarque na Vastitas Borealis

Na segunda semana do mês de fevereiro do mesmo ano de 2030, novamente no clarear do dia, que foi o dia 13, aterrissou em Marte o segundo trem espacial com mil pessoas humanas e com grande quantidade de alimentos e de material para a instalação de um segundo grande balão - com perspectiva de abrigar cerca de cinqüenta mil pessoas, - e capaz de adequar as condições do ar à vida e à lida dos seres humanos. Este grupo não veio às proximidades do Olympus Mons, mas desceu mansamente, como o vôo da águia, bem distante dali, na Vastitas Borealis.
O intuito de evitar dificuldades imediatas que certamente adviriam da grande aglomeração de traços culturais e étnicos muito distintos, sobretudo, em torno de disputas de poder e das guerras frias pela conquista de mais espaços, levou esta segunda leva a estabelecer-se na planície Vastitas Borealis, na latitude norte de Marte, e, próximo a um grande lago de gelo de aproximadamente 35 km de diâmetro, por dois de profundidade.
 A opção deste segundo grupo foi a de estabelecer residência mais próxima da latitude norte porque ali o clima, mesmo altamente oscilante entre frio que vai até 30 ou 40 ºC abaixo de zero, chega, contudo, a 27ºC durante partes do dia.  Como lá as estações do ano apresentam o dobro de duração das estações terrenas, apresentam-se, todavia, parecidas com as da Terra, o que facilita a adaptação às oscilações do tempo.
A imagem deslumbrante escondia, aos recém chegados terráqueos, o baixíssimo nível de oxigênio no ar, mas, como o grupo já veio ciente e prevenido para lidar com esta contrariedade, iniciou rapidamente os serviços de organização, segundo já fora programado antes da viagem, e, sem demora, os primeiros iglus foram surgindo sob a ocre alaranjada coloração do solo, avermelhada e amarelada ao mesmo tempo, devido à abundante presença de óxido de ferro, e passaram a abrigar-se nestes agradáveis espaços para uma primeira experiência de aconchego fora do trem espacial.
Em poucos dias, muitos iglus comportavam as pessoas e os alimentos. Rapidamente começaram a aparecer os efeitos do intenso trabalho, que, apesar da atmosfera com pouco oxigênio se desenvolveu com impressionante bom humor devido à grande motivação em torno do auspicioso começo de atividades nesta região inóspita de Marte.
Já prevendo o aproveitamento, tantos dos ventos regulares quanto da irradiação solar, o grupo veio munido de equipamentos para instalar, em poucas horas, usinas de captação de energia, capazes de mover os geradores que iriam propiciar, aos novos habitantes, as necessárias condições de ar e de temperatura para uma vida confortável dentro dos grandes balões humanos.
Embora significativo o número de membros deste grupo, seria ainda possível organizar a vida sem toda a enorme quantidade de instâncias e de regras. Por isso mesmo, abria uma virtualidade toda peculiar para estabelecer regras capazes de evitar tanto a burocracia decorrente das intermináveis leis jurídicas e das igualmente intermináveis formas de burlar estas regras, sobretudo para quem possuísse condições de custear as buscas das sutilezas de leis para se amparar e da esperteza para explorar nuances ambíguas e justificar ainda melhor sua defesa.
Apesar de que este grupo tenha sido muito bem selecionado por prévias avaliações, ocorreu por parte dos organizadores destas migrações a Marte, também outra intencionalidade explícita: a de enviar pessoas entendidas em todas as áreas do conhecimento e de todos os ramos técnicos e científicos. Desta forma, poderiam rapidamente emancipar-se e superar eventual simbiose de dependências diretas das orientações advindas da Terra. Ocorreu ainda a particular atenção para evitar que viessem a repetir-se as inúmeras e históricas formas de colonização de todos os novos espaços de Marte a fim de evitar o que fora feito na Terra por parte dos que invadiram e ocuparam novos espaços.
A presença dos distintos domínios no conhecimento e na técnica, sem as motivações capitalistas da terra, daria todo um novo perfil aos serviços e às especializações, pois contribuiria para uma sociedade única, nova e distinta daquela que deixaram para trás, e ajudaria a dar um salto de qualidade na capacidade de convivência desta nova sociedade. Com o passar do tempo, muitas reuniões, assembléias e ponderações se fariam impreterivelmente necessárias para estabelecer novas regras de organização.




III
A lida com as predisposições da Terra

Com os esquemas mentais da Terra, os membros desta segunda leva logo planejaram como distribuir e alinhar espaços para residências mais definitivas dentro do grande balão, bem como os modos de deslocamento e o incipiente início de organização social. Ninguém poderia mais pensar em depender precipuamente do húmus da Terra, mas todos teriam que pensar em como extrair os necessários elementos químicos do solo marciano para processar os alimentos, cultivar plantas dentro dos balões e assegurar o necessário abastecimento. Não poderiam tampouco depender eminentemente de produtos advindos da Terra através dos sofisticados trens espaciais. Ainda que tivessem trazido provisão de alimentos suficiente para muitos meses, teriam que pensar em garantir algo mais estável para o futuro de sua presença no planeta. Também precisariam vasculhar a região a fim de descobrir o quanto a dádiva da natureza marciana poderia propiciar-lhes em termos de boa e saudável alimentação. Ao lado da abundância do ferro, precisariam contar com inúmeros outros elementos químicos de Marte para pensarem em vestuário, em modos de deslocamento e em materiais para aprimorar a qualidade de vida e de saúde.
 Todos movidos pelo insaciável desejo de acúmulo de posses e de bens, trazidos da Terra, estavam naturalmente muito atentos para o quanto a vastidão daquelas terras planas poderia propiciar para acumulação e para empanturrar-se à exaustão infinita. A ancestralidade colonizadora estava muito viva nos arquétipos mentais de praticamente todos estes novos marcianos, na maioria, jovens, e com grandes sonhos de prosperidade material.
A mudança do modo pré-concebido de pensar e agir, haurido na Terra, levaria a um penoso processo de aprendizagem e de criação de novas formas organizativas plausíveis de serem melhores do que as vigentes no planeta que deixaram para trás. Em razão disto, parte considerável do tempo deveria ser dedicado ao cultivo da capacidade crítica e hermenêutica do que os moveu na terra, pois isso seria fundamental para delinear o que pretendiam estabelecer em patamares mais justos, ordeiros e de elevação humanizada.
  



IV
A emergência das ambições colonizadoras

Na primeira e altaneira montanha, contornada pelas planuras do monte Morocó, o bispo católico Dom Pituquí logo deu asas às suas fantasiosas e megalomaníacas ambições de poder e exigiu aquele espaço para ali, no topo da montanha, edificar um vistoso e imponente santuário, dedicado ao Deus grande e supremo do Universo. Ali, em nome de Jesus Cristo, todos os recém chegados encontrariam o mais excelso referencial para elevar-se acima das contingências marcianas e entrar no certeiro e exotérico caminho das instâncias superiores da divindade.
           Com seu espírito romano imperialista e expansionista, Dom Pituquí, agiu rapidamente para convencer seus colegas da Terra, e, haurir de lá ajuda econômica a fim de que seus planos mirabolantes viessem a operacionalizar-se, uma vez que os configurava como o mais lídimo poder espiritual a serviço dos novos marcianos e dos eventuais remanescentes que porventura viessem a ser encontrados por lá.
         Quem, afinal daria suporte para edificar um santuário naquele espaço privilegiado?  Desde o tempo dos guerreiros romanos, no planeta Terra, eventuais marcianos deveriam estar indignados, pois, seu lindo planeta recebeu dos guerreiros romanos a péssima denominação de constituir-se no deus da guerra, enquanto que por lá nunca ninguém se moveu por um deus de natureza tão vil e grosseira.
Muito pouco das grandes e boas virtualidades humanas foram aprimoradas pelos humanos da Terra, porque se moveram eminentemente pela obsessão por fazer guerras com vistas a subjugar, explorar e espoliar outros seres humanos e seus pertences, - este milenar traço indo-europeu - que em nada se alterou e nem evoluiu para níveis mais elevados de bom-senso no longo e fracassado processo de convivência humana na Terra dos últimos milênios. O mesmo espírito, porém, ameaçava prolongar-se em Marte.
Os romanos provavelmente herdaram dos gregos esta noção deturpada do valor humano e firmaram, sobre a exploração de outros seres humanos, a excelência da vida urbana. No espírito da guerra, a cultura romana passou a impregnar também a concepção religiosa católica que, para prosperar nos seus intentos salvacionistas, absorveu os traços romanos e os perenizou através dos séculos, o que lhe conferiu uma rigorosa hierarquização de poder.
Mesmo que no seguimento de Cristo o papel de um bispo fosse o de ser itinerante para animar as comunidades no crescimento das orientações centrais por ele deixadas, a aura romana do poder, através da Mitra, desceu na cabeça de incontáveis bispos, ocupou o lugar dos seus neurônios capazes de despertar ações edificantes em favor das outras pessoas, e eles, deixaram os ensinamentos de Jesus Cristo para um segundo plano e passaram a nortear sua vida e a de muitas outras pessoas, simplesmente em torno do poder de sua função.
O antigo vício de mais de dois mil e quinhentos anos estava visivelmente manifesto no bispo Dom Pituquí. Mostrava paixão, mas, também obsessiva compulsão para dar ordens, para mandar, para dominar, controlar, possuir, e, eliminar da proximidade quem quisesse atrever-se a não aceitar a submissão aos seus ditames.
         O pior de tudo consistia em não tratar-se de um defeito meramente pessoal de Dom Pituquí. Ele estava ladeado por um séquito de mais três padres com características muito similares. Três palavras resumem seus traços mais proeminentes: fundamentalistas, integristas e rubricistas. Esta sedimentação os deixava, em contrapartida, convencidos, mandões e autoritários. Presumiam ter a última palavra sobre tudo, quer a respeito dos céus, da condição humana na Terra e, agora, sobre os rumos a serem percorridos em Marte.
          Diante dos vícios do catolicismo da Terra, os novos emigrados, poderiam desenvolver em Marte a possibilidade de caminhar para uma religião de “espírito e de verdade”, tal como Cristo propugnou diante do Templo de Jerusalém, porque ali os sumos sacerdotes coagiam as pessoas à submissão do poder religioso e as espoliavam.




 V
A vinda de concorrentes religiosos

O pioneirismo dos católicos na planície de Vastitas Borealis durou pouco. Já na terceira leva de março de 2030, veio na comitiva um grupo de diversos muçulmanos. Embora ampla a planície, viriam certamente mostrar que seria pequena para estabelecer conflitos imediatos com dom Pituquí e seus três padres.
Começou a desencadear-se imediatamente o velho maniqueísmo da guerra do bem contra o mal. Distantes dos mais elementares traços de respeito perante as diferenças religiosas e culturais iniciaram-se, sem demora, conflitos em torno da rivalidade pela incorporação dos demais, repetindo o velho e traiçoeiro monismo grego, caracterizado pela postura de integrar ou, então, eliminar quem não se submetesse.
            A quarta comitiva que aterrissou em Marte trouxe um tempero especial aos dois grupos religiosos, já estabelecidos como antagônicos e rivais. Estava constituída por número expressivo de evangélicos fundamentalistas, vindos do Brasil e que não perderam tempo para iniciar um ataque sistemático contra os grupos anteriores, estabelecidos como expressão das forças do demônio. Por isso mesmo, deram início à preconização da religião de prosperidade material, com intensa exploração afetiva, e, movidos pelo intento de absorver adeptos dentre estes poucos habitantes estabelecidos na Vastitas Borealis. Estavam fortemente impregnados pela visão pragmatista liberal, advinda do neo-pentecostalismo norte-americano que acabou entrando também na Igreja católica brasileira.
            Tudo o que poderia iniciar com os melhores sentimentos de cordialidade, de respeito e de amparo, começou sob os signos da guerra, velho traço da história humana terrena. Não poderiam ter dado outro nome ao planeta para livrar-se de sina tão vil, pois, advindos de uma deplorável ancestralidade de guerras, vêm aportar precisamente no planeta que batizaram de deus da guerra para ali continuar sua detestável obsessão de matar e destruir tudo quanto é diferente do seu modo monístico de conceber a vida e as coisas?
            Como a sucessão de guerras, apesar da sua dimensão hedionda, sempre envolveu razões religiosas e de acúmulo de bens, milhões de seres humanos foram brutamente mortos e outros tantos tiveram que morrer de fome e de subnutrição a fim de permitir que astronômicas fortunas fossem gastas para sofisticar os equipamentos de destruição e de matança de seres humanos. Em contrapartida, praticamente nada foi investido para melhorar a convivência humana e o código genético a ponto de eliminar as perversas assimilações filogenéticas e sócio-culturais de saquear, extorquir, roubar e matar.




VI
 Karl Blank e a convocação de uma assembléia.

            Dentre as três comitivas que se estabeleceram em Vastitas Borealis, um de seus membros, o senhor Karl Blank, logo se notabilizou por extraordinário bom-senso. Embora sendo um dos mais provectos em idade, possuía uma enorme bagagem de síntese a partir do que vivenciou com guerras, humilhações, contrariedades e perseguições ideológicas. Apesar de tudo, era um homem alegre, esportivo e, certamente por isso, soube transformar com rara sabedoria os desencantos humanos em intuições para pensar algo melhor e mais significativo para a vida dos novos seres humanos habitantes em Marte. Era cristão, mas não fanático; político, mas não interesseiro em favor de acúmulo pessoal; era brincalhão, mas sabia levar a vida a sério para chegar a patamares mais dignos. Era homem culto, mas simples. Era, na verdade, uma pessoa sábia.
            Ao constatar a rivalidade das agremiações religiosas, que, de imediato, passaram a reproduzir a lamentável característica do planeta Terra, Karl Blank teve logo a intuição de convocar uma assembléia geral para sugerir algumas providências importantes e capazes de delinear um bom futuro humano em Marte. Afinal, se os mesmos problemas da Terra viessem a perpetuar-se, Marte rapidamente seria insuficiente para as ambições de poucos seres e acabaria prejudicada por guerras humanas.
            Blank elaborou um esboço de projeto e como seu perfil de personalidade era o de pensar mais em função dos outros do que em si mesmo, e, de não mover-se apenas em função de acúmulo e de poder, delineou algumas balizas que poderiam ser benéficas para uma boa organização deste incipiente grupo humano na planície de Vastitas Borealis em Marte. Delineou seis necessidades fundamentais para serem apresentadas nesta primeira assembléia: superação das disputas religiosas; necessidade de mudança da concepção capitalista acumulativa; perspectiva de mais tempo para lazer e entretenimento do que para trabalho; precípua necessidade de eliminar a remuneração dos serviços públicos e essenciais, a primordial necessidade de suplantar o estágio humano de apostar tempo, tecnologia e dinheiro em armas de destruição e, ainda, a condição de pensar a sociedade numa perspectiva matricial.
            Convocada a assembléia, todos se dispuseram a participar e, surpreendentemente, até os religiosos fanáticos demonstraram raro bom-senso e souberam compreender que precisariam assumir uma conduta nova e inusitada, mesmo que exigisse gradual conversão a fim de mudar os velhos esquemas mentais trazidos da Terra; e eles, teriam que aproximar-se e trabalhar em conjunto para o bem comum desta pequena e esperançosa comunidade de Marte. Afinal, o que significaria não comprar pão e leite e não precisar pagar um jantar? Evidentemente, algumas regras teriam que estabelecer balizas ou parâmetros a respeito de quantos jantares e de quanto pão cada pessoa teria direito.
            Nem todos gostaram da sugestão de pensar um sistema social de organização isento de traços monarquistas, ditatoriais, militaristas e de lucros desmedidos. Todos, no entanto, entenderam que algo novo e bem melhor do que os sistemas da Terra deveriam, impreterivelmente, ser engendrados para a vida coletiva sustentável em Marte.
            O que todos valorizaram eminentemente foi uma perspectiva da possibilidade de organização do trabalho em ritmo menos acelerado do que o da Terra, a fim de não provocar um processo similar de desequilíbrio ambiental também em Marte. Desta maneira, poderiam assegurar maior liberação de espaço e de tempo para lazer, para ócio e para atividades de congraçamento.
            Quanto ao desarmamento, todos foram unânimes em concordar que jamais se deveria gastar um único centavo sequer para fabricação de armas e instrumentos letais, utilizáveis contra a vida alheia.
            Em relação à possibilidade de organização de uma vida mais matricial, a argumentação foi extremamente simpática, pois todos se deram conta de que o traço mais peculiar da organização social e civilizatória da Terra se baseava sobre controle e a ordem, típico do pensamento patriarcal e masculino. Em Marte deveria prevalecer não uma sociedade contrária e feminista, mas uma vida social marcada por um traço mais precípuo das mulheres do que dos homens, que é o de colaborar, participar e pensar as coisas de forma mais coletiva do que do que aquela forma linear, conquistadora e controladora dos homens.
            Por fim, para evitar que alguns logo pudessem sobrepor-se aos demais e, por isso, haurir salários injustos, também todos concordaram e aprovaram por unanimidade que jamais nenhum serviço público seria remunerado, tanto para evitar corrupção, quanto espoliação e exploração dos demais membros das comunidades marcianas. Com isso também se acabaria com todo este mundo velado das ideologias que levam a discursos sobre uma situação, quando o interesse real se move por outra diametralmente oposta.




 VII
 Pacto para a harmonia religiosa.

            Para Dom Pituquí e seus três sacerdotes a proposta de Blank tornou-se fator de profunda contrariedade. Jamais poderiam esperar algo tão surpreendente e demolidor ante seus planos de poder. A crise, todavia, foi extraordinariamente benéfica, assim como foi para os muçulmanos e pastores evangélicos. Deram-se conta de que não poderiam agir em função de um mesmo Deus com estratégias tão excludentes e proselitistas, tal como estavam acostumados a fazer na Terra.
            Como todos se sentiam um tanto estranhos, num ambiente estranho, foram obrigados a programar um itinerário de reuniões para ponderar sobre as melhores formas de animar a vida dos novos marcianos. Aos poucos, foram criando respeito e uma crescente capacidade de escutar, de acolher e de respeitar as visões diferentes das outras entidades religiosas. Afinal, se vieram com pretensões missionárias, teriam que agir efetivamente para um bom ambiente religioso em Marte. Qualquer rivalidade significaria contradição diante do Deus de amor que queriam anunciar. Gradualmente foram dando evidentes sinais de ecumenismo e passaram a desfrutar da simpatia e do apreço dos demais marcianos.
            A religião de “espírito e verdade” seria, sem dúvida, um elemento básico da organização da vida e funcionaria como um cimento que dá consistência aos atos humanos em Marte.

  


 VIII
Aliança para um novo modo de produzir

            As insondáveis diferenças que os novos marcianos viam diante de tudo quanto prospectaram para o êxito da vida em Marte, extasiavam, de um lado, mas, também traziam as inquietações profundas diante do porvir. Como iriam assegurar o necessário pão de cada dia, num ambiente tão inóspito?
            Eles sabiam que lá não encontrariam nem mato, nem peixes, nem animais e nem sementes. A alimentação teria que ser processada quimicamente e, em parte, produzida através de plantas na grande estufa ali instalada, com o aproveitamento das grandes reservas de produtos químicos disponíveis em Marte. Esta insegurança básica representava, todavia, uma inaudita mudança no modo de entender a vida, estribada sobre o eixo do trabalho. Este passaria para um nível secundário e, como índios e povos ágrafos da Terra, poderiam aprender a viver com tempo ínfimo de trabalho. Como os grandes geradores de oxigênio, nitrogênio, gás carbônico e hidrogênio se encarregariam de grande parte da produção que, altamente informatizada, dispensava serviços pesados de mão de obra, sobraria muito tempo para aprendizagem, para jogos, passatempos e para momentos de ócio.
            Um dos efeitos inerentes da nova perspectiva de vida em Marte também daria outra dimensão às pesquisas científicas, não mais movidas por grandes grupos, com altíssimo poder de barganha para descobrir algo a ser vendido como mediação para obtenção de extraordinários lucros, mas, como busca coletiva e solidária do que realmente poderia ser favorável à vida e à boa saúde dos habitantes de Marte.




 IX
 Definição contra armas

            Sem gastos para fabricação de armas e de instrumentos de guerra, a vida marciana daria um salto imenso de qualidade sobre a ancestralidade do planeta Terra, pois, o presumido investimento a ser gasto em armamentismo e manutenção de guerras, poderia ser aplicado em saúde e qualidade de vida. Nada de exército e nada de educação perversa de jovens para aprender técnicas de domínio, de controle e de matança de rivais.
            A ausência de graduações de cargos e de poderes para o êxito das guerras descartava também as razões das guerras frias. Desapareceria igualmente todo o poder de barganha para submeter outras pessoas e lhes extorquir impostos, “Royalties” e outras formas de espoliação.
            Sem as grandes neuroses criadas em torno do que os adversários e presumidos inimigos estariam inventando de sofisticado para matar mais e melhor, deixar-se-ia de gastar verdadeiras fortunas na construção de navios de guerra, de aviões, de tanques e mil outras parafernálias de destruição, espionagem e provocação. Tudo isso poderia ser investido em formas bem mais edificantes de vida.
            A ausência de armas constituiria, finalmente, um grande e verdadeiro salto de qualidade na vida dos terráqueos em Marte.
            Outra importante superação da ausência de armas seria a de dispensar toda a parafernália de sistemas de alarme, de controle e de segurança das casas. A vida nas grandes bolhas seria muito mais translúcida e os espaços privativos das famílias, como as ocas indígenas, não apresentariam nem portas e nem trancas. 




X
 Serviços governamentais gratuitos

            A proposição de Karl Blank foi certeira e objetiva para desativar sonhos dos que já pensavam que poderiam vir a ser nomeados Presidentes, Senadores, Deputados, Prefeitos, Vereadores, ou então, pelo menos assegurar uma função mais subserviente, mas, ainda de salário privilegiado, ou até mesmo, um cargo em qualquer das instâncias do poder legislativo, judiciário, bem como do serviço público ou de alguma outra entidade federal.
            Terminaria, enfim, a velha sofística de convencimento por discursos mentirosos e enganadores, meramente movidos para persuadir e encobrir os reais desejos de vantagens pessoais através de toda hierarquização de cargos públicos e de salários gritantemente injustos diante do que outros recebem por atividades muito mais difíceis e desgastantes.
            A simples ausência de grupos a estabelecer salários através de legislação em favor de causa própria, já daria condições razoáveis a todos os trabalhadores, e ninguém precisaria estar passando fome ou necessidades básicas. Ademais, o fim da falácia discursiva e da protelação das promessas feitas, daria objetividade, clareza e definição em torno das tarefas urgentes e importantes a serem efetuadas.
            De acordo com a intuição de Karl Blank, dar-se-ia, enfim, uma reviravolta profunda no conceito de Estado, tão amargamente socado goela abaixo aqui na Terra, e tão maldosamente executado sobre as pessoas, sem sequer lhes dar a mínima chance de promover organização da vida livre da ingerência de governantes que, em nome do Estado, exercem verdadeira tirania sobre os súditos.




 XI
 Ausência de Salários

            A grande novidade da vida em Vastitas Borealis viria ser a da possibilidade de vida sem salário. Como no período terreno da humanidade, vivendo da coleta de frutos, poderiam os marcianos dispensar parco tempo para ajuntar elementos químicos com vistas a assegurar a composição da sua alimentação básica. Em decorrência, isto seria feito, sem esta obsessão massacrante das longas horas de desgaste muscular ou neurológico de subserviência para satisfazer interesses de patrões ou de grupos altamente ambiciosos.
            A ausência de salários terminaria finalmente com a deplorável roubalheira de Bancos e que, em absolutamente nada, ajudam os clientes, a não ser, para extorqui-los por abusivas cobranças de juros, taxas, e ainda com péssimo atendimento.
            Toda a humilhante espera em filas de bancos poderia ser aproveitada para incontáveis modos de passar estas horas com atividades mais gratificantes do que a tediosa e estúpida espera.
            Como a centralidade da vida não teria mais a necessidade de impregnar-se do sistema capitalista, terminaria, também, a razão de procurar lucros, competitividade, superação dos outros, pois, o modo de ser da vida marciana poderia nortear-se simplesmente pela colaboração e pelo prazer de ajudar outras pessoas a se sentirem bem. Esta perspectiva matricial devolveria, finalmente, aos moradores de Marte a dignidade das ações participativas, solidárias, quer nas dificuldades, quer nas buscas de superação, quanto na partilha do que os seres marcianos produziriam.
            A inexistência de salários daria ainda uma dimensão nova aos traços éticos e estéticos. O bom, o certo, o correto e o justo seria fruto coletivo e não da prescrição de quem manda. O real passaria a retomar a primazia que perdeu pelo endeusamento do virtual. A sabedoria passaria a desfrutar novamente do seu valioso significado de síntese e não se deixaria enterrar pela exploração do hiper-real, produzido apenas para seduzir ao crasso consumo. O lugar da inteligência seria mais graduado do que o altaneiro status da exploração do pum-pum. Ao mesmo tempo, desmoronaria toda estrutura social estribada sobre a etiqueta, as vestes, as festas de esnobação, os rituais de honra, os poderes e a fama. Voltaria a manifestar-se um antigo traço, eminentemente valorizado por Jesus Cristo, que é o da cordialidade. A cordialidade dispensaria todo o mundo da moda, dos desfiles, das aparências e das minudências em torno do que é considerado chique, nobre, e de causar esnobe.




XII
O nascimento da primeira menina

            A gravidez de Francielle não ocupava apenas os seus anseios e os de seu marido Marcos. Na Terra, os familiares dos dois acompanhavam com expectativa e apreensão este estágio final da gestação. Muita desconfiança se relacionava sobre os riscos que a viagem representaria e as evidentes possibilidades de atrapalhar o fluxo natural do tempo de gestação. Os demais da comitiva também alimentavam expectativas em torno do seu nascimento. Ao chegar o momento do parto, nasceu, dentro da normalidade desta hora, uma linda menina, aparentemente mais avermelhada do que as nascituras da Terra, talvez pelo reflexo do ocre que circundava o ambiente. Saudável e sem apresentar quaisquer traços de possíveis anormalidades, todos festejaram muito este nascimento porquanto representava as esperanças da possibilidade de gerar e expandir a vida dos que vieram estabelecer-se no planeta Marte. O maior risco seria o do excesso de bajulação, pois se tentaria criar status em torno desta primazia, e se transformaria seu estado em mito tal como na Terra fazem em torno de alguns jogadores de futebol, alguns artistas e expositores de ossadas mal revestidas de músculos da moda vigente. Em Marte já não se precisaria mais de herói e nem de mito para ser reverenciado pelos outros. Dar-se-ia proeminente valor à capacidade de partilhar os dotes e as virtualidades pessoais de cada membro em favor do bem comum.
            Dentre os mil palpites sobre a definição do nome da menina, acabou prevalecendo um nome simples, mas, com nova conotação de sentido: chamar-se-ia Marciana. As outras que viessem a nascer depois teriam que receber nomes a serem elucubrados e delineados segundo tendências do gosto marciano que viesse a emergir. Muitos começaram a projetar idéias e nomes para os filhos de outras mulheres grávidas. Da condição de dar nomes, alargar-se-ia, igualmente, a possibilidade de criar um mundo marciano capaz de dar sentido à vida. Seria, por conseguinte, o fator primordial para lidar com os limites e para a capacidade de dar razões aos atos e às deliberações voltadas para um agir positivo do estar no planeta Marte.
            Ao lado destes incipientes passos dos primeiros habitantes da Vastitas Borealis, porém, valiosíssimos para acalentar um futuro próspero às vida dos recém chegados a Marte, muitos outros passos, necessariamente deverão ser delineados. De qualquer forma, o começo não constituiu o mito primigênio da estreita sintonia da condição humana com Deus, como paraíso terrestre, segundo a tradição bíblica, mas, refletiu significativos passos de bom senso para caminhos de efetiva transcendência da carga cultural levada da Terra para Marte. A soberania do poder conquistador pelo menos abriu perspectivas de intuições para convivência de patamares mais elevados de vida humana em Marte do que sob os poderes dominantes da Terra.

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