NA VASTITAS BOREALIS DE MARTE
João Inácio Kolling
APRESENTAÇÃO
Na intencionalidade do incauto
escrevedor deste texto inquietou, para além da imaginação fictícia, um tema
candente em torno do modo de produzir e de consumir bens aqui na Terra, em
tempos de crise de sustentabilidade. Assim, mesmo nos rápidos lumes dos poucos
aspectos econômicos salientados para uma presumida mudança no modo de produzir
e consumir, neles estão, contudo, impregnadas muitas esperanças de que certos procedimentos
humanos ainda podem propiciar relações mais satisfatórias do que as decorrentes
dos excessivos poderes de controle. Muito
distante da pretensão de apontar para uma Constituição ou um Estatuto capaz de
engendrar a vida, ou ainda, qualquer coisa parecida com ordenamento e sistematização
de um programa social, o assunto aqui abordado se delineou por pretensões apenas
do limiar de entrada desta ampla perspectiva de vida social. Pretendeu somente
realçar alguns valores que poderiam fazer bem na convivência social e aguçar,
na mente dos eventuais leitores, a sensibilidade para pensar coisas mais
completas e significativas.
Como em nossos dias ocorre acelerada
compressão do espaço e do tempo em função do muito que se pode e se quer fazer,
reduzem-se, em contrapartida, a disponibilidade de muitas horas e as motivações
para longas leituras. Considerando esta contingência, optou-se por uma
abordagem rápida e que possa ser lida no tempo de apenas uma hora. Tal opção
evidentemente foge da exaustividade que o assunto comportaria, mas, na
fugacidade de tudo que muda muito rapidamente, salienta, mesmo assim, alguns
lampejos relevantes para alargar a consciência crítica em torno de muitas
coisas que se passam sorrateiramente na organização da vida social de nossos
dias.
O
Autor
I
Nas planuras de Olympus Mons
No
dia 1º de janeiro de 2030, ainda segundo a contagem terrena do tempo, pousou em
Marte o primeiro e enorme trem espacial, vindo da Terra, numa velocidade de
mais de 32 mil quilômetros por hora num túnel de vácuo, com a primeira leva de
seres humanos, vindos para habitar no solo ocre deste imenso planeta.
O trem espacial continha, além das 500
pessoas, uma série de materiais, de alimentos e de equipamentos para os
serviços básicos de instalação de um primeiro grande balão, com capacidade de
abrigar dez mil pessoas na vasta planície que se estende da calota polar sul de
Marte, não muito distante do grande vulcão Olympus Mons que ocupa uma área de
aproximadamente 500km².
Escolheram
esta região de imensas lagoas congeladas, de coloração esbranquiçada, que
contrastavam com o fundo dos belíssimos desfiladeiros a se perderem da
capacidade visual. A imensidão destes vales sequer deixava limiares de
distância aos olhos de tão extensas que se apresentavam. O vulcão Olympus Mons,
além da sua deslumbrante e altaneira imponência, elevada a muitos mil metros de
altitude, constituía um referencial vistoso e iluminador, e elevava a
temperatura da região, o que a tornava suportável aos humanos.
II
Desembarque na Vastitas Borealis
Na
segunda semana do mês de fevereiro do mesmo ano de 2030, novamente no clarear
do dia, que foi o dia 13, aterrissou em Marte o segundo trem espacial com mil
pessoas humanas e com grande quantidade de alimentos e de material para a
instalação de um segundo grande balão - com perspectiva de abrigar cerca de
cinqüenta mil pessoas, - e capaz de adequar as condições do ar à vida e à lida
dos seres humanos. Este grupo não veio às proximidades do Olympus Mons, mas
desceu mansamente, como o vôo da águia, bem distante dali, na Vastitas
Borealis.
O
intuito de evitar dificuldades imediatas que certamente adviriam da grande
aglomeração de traços culturais e étnicos muito distintos, sobretudo, em torno
de disputas de poder e das guerras frias pela conquista de mais espaços, levou
esta segunda leva a estabelecer-se na planície Vastitas Borealis, na latitude
norte de Marte, e, próximo a um grande lago de gelo de aproximadamente 35 km de
diâmetro, por dois de profundidade.
A opção deste segundo grupo foi a de
estabelecer residência mais próxima da latitude norte porque ali o clima, mesmo
altamente oscilante entre frio que vai até 30 ou 40 ºC abaixo de zero, chega,
contudo, a 27ºC durante partes do dia. Como
lá as estações do ano apresentam o dobro de duração das estações terrenas,
apresentam-se, todavia, parecidas com as da Terra, o que facilita a adaptação
às oscilações do tempo.
A
imagem deslumbrante escondia, aos recém chegados terráqueos, o baixíssimo nível
de oxigênio no ar, mas, como o grupo já veio ciente e prevenido para lidar com
esta contrariedade, iniciou rapidamente os serviços de organização, segundo já
fora programado antes da viagem, e, sem demora, os primeiros iglus foram
surgindo sob a ocre alaranjada coloração do solo, avermelhada e amarelada ao
mesmo tempo, devido à abundante presença de óxido de ferro, e passaram a
abrigar-se nestes agradáveis espaços para uma primeira experiência de aconchego
fora do trem espacial.
Em
poucos dias, muitos iglus comportavam as pessoas e os alimentos. Rapidamente
começaram a aparecer os efeitos do intenso trabalho, que, apesar da atmosfera
com pouco oxigênio se desenvolveu com impressionante bom humor devido à grande
motivação em torno do auspicioso começo de atividades nesta região inóspita de
Marte.
Já
prevendo o aproveitamento, tantos dos ventos regulares quanto da irradiação
solar, o grupo veio munido de equipamentos para instalar, em poucas horas,
usinas de captação de energia, capazes de mover os geradores que iriam
propiciar, aos novos habitantes, as necessárias condições de ar e de
temperatura para uma vida confortável dentro dos grandes balões humanos.
Embora
significativo o número de membros deste grupo, seria ainda possível organizar a
vida sem toda a enorme quantidade de instâncias e de regras. Por isso mesmo,
abria uma virtualidade toda peculiar para estabelecer regras capazes de evitar
tanto a burocracia decorrente das intermináveis leis jurídicas e das igualmente
intermináveis formas de burlar estas regras, sobretudo para quem possuísse
condições de custear as buscas das sutilezas de leis para se amparar e da
esperteza para explorar nuances ambíguas e justificar ainda melhor sua defesa.
Apesar
de que este grupo tenha sido muito bem selecionado por prévias avaliações,
ocorreu por parte dos organizadores destas migrações a Marte, também outra
intencionalidade explícita: a de enviar pessoas entendidas em todas as áreas do
conhecimento e de todos os ramos técnicos e científicos. Desta forma, poderiam
rapidamente emancipar-se e superar eventual simbiose de dependências diretas
das orientações advindas da Terra. Ocorreu ainda a particular atenção para
evitar que viessem a repetir-se as inúmeras e históricas formas de colonização
de todos os novos espaços de Marte a fim de evitar o que fora feito na Terra
por parte dos que invadiram e ocuparam novos espaços.
A
presença dos distintos domínios no conhecimento e na técnica, sem as motivações
capitalistas da terra, daria todo um novo perfil aos serviços e às
especializações, pois contribuiria para uma sociedade única, nova e distinta
daquela que deixaram para trás, e ajudaria a dar um salto de qualidade na
capacidade de convivência desta nova sociedade. Com o passar do tempo, muitas
reuniões, assembléias e ponderações se fariam impreterivelmente necessárias
para estabelecer novas regras de organização.
III
A lida com as predisposições da Terra
Com
os esquemas mentais da Terra, os membros desta segunda leva logo planejaram
como distribuir e alinhar espaços para residências mais definitivas dentro do
grande balão, bem como os modos de deslocamento e o incipiente início de
organização social. Ninguém poderia mais pensar em depender precipuamente do
húmus da Terra, mas todos teriam que pensar em como extrair os necessários
elementos químicos do solo marciano para processar os alimentos, cultivar
plantas dentro dos balões e assegurar o necessário abastecimento. Não poderiam
tampouco depender eminentemente de produtos advindos da Terra através dos
sofisticados trens espaciais. Ainda que tivessem trazido provisão de alimentos
suficiente para muitos meses, teriam que pensar em garantir algo mais estável para
o futuro de sua presença no planeta. Também precisariam vasculhar a região a
fim de descobrir o quanto a dádiva da natureza marciana poderia propiciar-lhes
em termos de boa e saudável alimentação. Ao lado da abundância do ferro,
precisariam contar com inúmeros outros elementos químicos de Marte para
pensarem em vestuário, em modos de deslocamento e em materiais para aprimorar a
qualidade de vida e de saúde.
Todos movidos pelo insaciável desejo de
acúmulo de posses e de bens, trazidos da Terra, estavam naturalmente muito
atentos para o quanto a vastidão daquelas terras planas poderia propiciar para
acumulação e para empanturrar-se à exaustão infinita. A ancestralidade
colonizadora estava muito viva nos arquétipos mentais de praticamente todos
estes novos marcianos, na maioria, jovens, e com grandes sonhos de prosperidade
material.
A
mudança do modo pré-concebido de pensar e agir, haurido na Terra, levaria a um
penoso processo de aprendizagem e de criação de novas formas organizativas
plausíveis de serem melhores do que as vigentes no planeta que deixaram para
trás. Em razão disto, parte considerável do tempo deveria ser dedicado ao
cultivo da capacidade crítica e hermenêutica do que os moveu na terra, pois
isso seria fundamental para delinear o que pretendiam estabelecer em patamares
mais justos, ordeiros e de elevação humanizada.
IV
A emergência das ambições colonizadoras
Na primeira e altaneira montanha, contornada
pelas planuras do monte Morocó, o bispo católico Dom Pituquí logo deu asas às
suas fantasiosas e megalomaníacas ambições de poder e exigiu aquele espaço para
ali, no topo da montanha, edificar um vistoso e imponente santuário, dedicado
ao Deus grande e supremo do Universo. Ali, em nome de Jesus Cristo, todos os
recém chegados encontrariam o mais excelso referencial para elevar-se acima das
contingências marcianas e entrar no certeiro e exotérico caminho das instâncias
superiores da divindade.
Com seu espírito romano imperialista
e expansionista, Dom Pituquí, agiu rapidamente para convencer seus colegas da
Terra, e, haurir de lá ajuda econômica a fim de que seus planos mirabolantes
viessem a operacionalizar-se, uma vez que os configurava como o mais lídimo
poder espiritual a serviço dos novos marcianos e dos eventuais remanescentes
que porventura viessem a ser encontrados por lá.
Quem, afinal daria suporte para
edificar um santuário naquele espaço privilegiado? Desde o tempo dos guerreiros romanos, no
planeta Terra, eventuais marcianos deveriam estar indignados, pois, seu lindo
planeta recebeu dos guerreiros romanos a péssima denominação de constituir-se
no deus da guerra, enquanto que por lá nunca ninguém se moveu por um deus de
natureza tão vil e grosseira.
Muito pouco das grandes e boas virtualidades
humanas foram aprimoradas pelos humanos da Terra, porque se moveram
eminentemente pela obsessão por fazer guerras com vistas a subjugar, explorar e
espoliar outros seres humanos e seus pertences, - este milenar traço
indo-europeu - que em nada se alterou e nem evoluiu para níveis mais elevados
de bom-senso no longo e fracassado processo de convivência humana na Terra dos
últimos milênios. O mesmo espírito, porém, ameaçava prolongar-se em Marte.
Os romanos provavelmente herdaram dos gregos
esta noção deturpada do valor humano e firmaram, sobre a exploração de outros
seres humanos, a excelência da vida urbana. No espírito da guerra, a cultura
romana passou a impregnar também a concepção religiosa católica que, para
prosperar nos seus intentos salvacionistas, absorveu os traços romanos e os
perenizou através dos séculos, o que lhe conferiu uma rigorosa hierarquização
de poder.
Mesmo que no seguimento de Cristo o papel de
um bispo fosse o de ser itinerante para animar as comunidades no crescimento
das orientações centrais por ele deixadas, a aura romana do poder, através da
Mitra, desceu na cabeça de incontáveis bispos, ocupou o lugar dos seus
neurônios capazes de despertar ações edificantes em favor das outras pessoas, e
eles, deixaram os ensinamentos de Jesus Cristo para um segundo plano e passaram
a nortear sua vida e a de muitas outras pessoas, simplesmente em torno do poder
de sua função.
O
antigo vício de mais de dois mil e quinhentos anos estava visivelmente manifesto
no bispo Dom Pituquí. Mostrava paixão, mas, também obsessiva compulsão para dar
ordens, para mandar, para dominar, controlar, possuir, e, eliminar da
proximidade quem quisesse atrever-se a não aceitar a submissão aos seus
ditames.
O pior de tudo consistia em não
tratar-se de um defeito meramente pessoal de Dom Pituquí. Ele estava ladeado
por um séquito de mais três padres com características muito similares. Três
palavras resumem seus traços mais proeminentes: fundamentalistas, integristas e
rubricistas. Esta sedimentação os deixava, em contrapartida, convencidos,
mandões e autoritários. Presumiam ter a última palavra sobre tudo, quer a
respeito dos céus, da condição humana na Terra e, agora, sobre os rumos a serem
percorridos em Marte.
Diante dos vícios do catolicismo da
Terra, os novos emigrados, poderiam desenvolver em Marte a possibilidade de
caminhar para uma religião de “espírito e de verdade”, tal como Cristo
propugnou diante do Templo de Jerusalém, porque ali os sumos sacerdotes coagiam
as pessoas à submissão do poder religioso e as espoliavam.
V
A vinda de concorrentes religiosos
O
pioneirismo dos católicos na planície de Vastitas Borealis durou pouco. Já na
terceira leva de março de 2030, veio na comitiva um grupo de diversos muçulmanos.
Embora ampla a planície, viriam certamente mostrar que seria pequena para
estabelecer conflitos imediatos com dom Pituquí e seus três padres.
Começou
a desencadear-se imediatamente o velho maniqueísmo da guerra do bem contra o
mal. Distantes dos mais elementares traços de respeito perante as diferenças
religiosas e culturais iniciaram-se, sem demora, conflitos em torno da
rivalidade pela incorporação dos demais, repetindo o velho e traiçoeiro monismo
grego, caracterizado pela postura de integrar ou, então, eliminar quem não se
submetesse.
A quarta comitiva que aterrissou em
Marte trouxe um tempero especial aos dois grupos religiosos, já estabelecidos
como antagônicos e rivais. Estava constituída por número expressivo de
evangélicos fundamentalistas, vindos do Brasil e que não perderam tempo para
iniciar um ataque sistemático contra os grupos anteriores, estabelecidos como
expressão das forças do demônio. Por isso mesmo, deram início à preconização da
religião de prosperidade material, com intensa exploração afetiva, e, movidos
pelo intento de absorver adeptos dentre estes poucos habitantes estabelecidos
na Vastitas Borealis. Estavam fortemente impregnados pela visão pragmatista
liberal, advinda do neo-pentecostalismo norte-americano que acabou entrando
também na Igreja católica brasileira.
Tudo o que poderia iniciar com os
melhores sentimentos de cordialidade, de respeito e de amparo, começou sob os
signos da guerra, velho traço da história humana terrena. Não poderiam ter dado
outro nome ao planeta para livrar-se de sina tão vil, pois, advindos de uma
deplorável ancestralidade de guerras, vêm aportar precisamente no planeta que
batizaram de deus da guerra para ali continuar sua detestável obsessão de matar
e destruir tudo quanto é diferente do seu modo monístico de conceber a vida e
as coisas?
Como a sucessão de guerras, apesar
da sua dimensão hedionda, sempre envolveu razões religiosas e de acúmulo de
bens, milhões de seres humanos foram brutamente mortos e outros tantos tiveram
que morrer de fome e de subnutrição a fim de permitir que astronômicas fortunas
fossem gastas para sofisticar os equipamentos de destruição e de matança de
seres humanos. Em contrapartida, praticamente nada foi investido para melhorar
a convivência humana e o código genético a ponto de eliminar as perversas
assimilações filogenéticas e sócio-culturais de saquear, extorquir, roubar e
matar.
VI
Karl Blank e a
convocação de uma assembléia.
Dentre as três comitivas que se
estabeleceram em Vastitas Borealis, um de seus membros, o senhor Karl Blank,
logo se notabilizou por extraordinário bom-senso. Embora sendo um dos mais
provectos em idade, possuía uma enorme bagagem de síntese a partir do que
vivenciou com guerras, humilhações, contrariedades e perseguições ideológicas.
Apesar de tudo, era um homem alegre, esportivo e, certamente por isso, soube
transformar com rara sabedoria os desencantos humanos em intuições para pensar
algo melhor e mais significativo para a vida dos novos seres humanos habitantes
em Marte. Era cristão, mas não fanático; político, mas não interesseiro em
favor de acúmulo pessoal; era brincalhão, mas sabia levar a vida a sério para
chegar a patamares mais dignos. Era homem culto, mas simples. Era, na verdade,
uma pessoa sábia.
Ao constatar a rivalidade das
agremiações religiosas, que, de imediato, passaram a reproduzir a lamentável
característica do planeta Terra, Karl Blank teve logo a intuição de convocar
uma assembléia geral para sugerir algumas providências importantes e capazes de
delinear um bom futuro humano em Marte. Afinal, se os mesmos problemas da Terra
viessem a perpetuar-se, Marte rapidamente seria insuficiente para as ambições
de poucos seres e acabaria prejudicada por guerras humanas.
Blank elaborou um esboço de projeto
e como seu perfil de personalidade era o de pensar mais em função dos outros do
que em si mesmo, e, de não mover-se apenas em função de acúmulo e de poder,
delineou algumas balizas que poderiam ser benéficas para uma boa organização
deste incipiente grupo humano na planície de Vastitas Borealis em Marte.
Delineou seis necessidades fundamentais para serem apresentadas nesta primeira
assembléia: superação das disputas religiosas; necessidade de mudança da
concepção capitalista acumulativa; perspectiva de mais tempo para lazer e
entretenimento do que para trabalho; precípua necessidade de eliminar a
remuneração dos serviços públicos e essenciais, a primordial necessidade de
suplantar o estágio humano de apostar tempo, tecnologia e dinheiro em armas de
destruição e, ainda, a condição de pensar a sociedade numa perspectiva
matricial.
Convocada a assembléia, todos se
dispuseram a participar e, surpreendentemente, até os religiosos fanáticos
demonstraram raro bom-senso e souberam compreender que precisariam assumir uma
conduta nova e inusitada, mesmo que exigisse gradual conversão a fim de mudar
os velhos esquemas mentais trazidos da Terra; e eles, teriam que aproximar-se e
trabalhar em conjunto para o bem comum desta pequena e esperançosa comunidade
de Marte. Afinal, o que significaria não comprar pão e leite e não precisar
pagar um jantar? Evidentemente, algumas regras teriam que estabelecer balizas
ou parâmetros a respeito de quantos jantares e de quanto pão cada pessoa teria
direito.
Nem todos gostaram da sugestão de
pensar um sistema social de organização isento de traços monarquistas,
ditatoriais, militaristas e de lucros desmedidos. Todos, no entanto, entenderam
que algo novo e bem melhor do que os sistemas da Terra deveriam,
impreterivelmente, ser engendrados para a vida coletiva sustentável em Marte.
O que todos valorizaram
eminentemente foi uma perspectiva da possibilidade de organização do trabalho
em ritmo menos acelerado do que o da Terra, a fim de não provocar um processo
similar de desequilíbrio ambiental também em Marte. Desta maneira, poderiam
assegurar maior liberação de espaço e de tempo para lazer, para ócio e para
atividades de congraçamento.
Quanto ao desarmamento, todos foram
unânimes em concordar que jamais se deveria gastar um único centavo sequer para
fabricação de armas e instrumentos letais, utilizáveis contra a vida alheia.
Em relação à possibilidade de
organização de uma vida mais matricial, a argumentação foi extremamente
simpática, pois todos se deram conta de que o traço mais peculiar da
organização social e civilizatória da Terra se baseava sobre controle e a
ordem, típico do pensamento patriarcal e masculino. Em Marte deveria prevalecer
não uma sociedade contrária e feminista, mas uma vida social marcada por um
traço mais precípuo das mulheres do que dos homens, que é o de colaborar,
participar e pensar as coisas de forma mais coletiva do que do que aquela forma
linear, conquistadora e controladora dos homens.
Por fim, para evitar que alguns logo
pudessem sobrepor-se aos demais e, por isso, haurir salários injustos, também
todos concordaram e aprovaram por unanimidade que jamais nenhum serviço público
seria remunerado, tanto para evitar corrupção, quanto espoliação e exploração
dos demais membros das comunidades marcianas. Com isso também se acabaria com
todo este mundo velado das ideologias que levam a discursos sobre uma situação,
quando o interesse real se move por outra diametralmente oposta.
VII
Pacto para a
harmonia religiosa.
Para Dom Pituquí e seus três
sacerdotes a proposta de Blank tornou-se fator de profunda contrariedade.
Jamais poderiam esperar algo tão surpreendente e demolidor ante seus planos de
poder. A crise, todavia, foi extraordinariamente benéfica, assim como foi para
os muçulmanos e pastores evangélicos. Deram-se conta de que não poderiam agir em
função de um mesmo Deus com estratégias tão excludentes e proselitistas, tal
como estavam acostumados a fazer na Terra.
Como todos se sentiam um tanto
estranhos, num ambiente estranho, foram obrigados a programar um itinerário de
reuniões para ponderar sobre as melhores formas de animar a vida dos novos
marcianos. Aos poucos, foram criando respeito e uma crescente capacidade de
escutar, de acolher e de respeitar as visões diferentes das outras entidades
religiosas. Afinal, se vieram com pretensões missionárias, teriam que agir
efetivamente para um bom ambiente religioso em Marte. Qualquer rivalidade
significaria contradição diante do Deus de amor que queriam anunciar.
Gradualmente foram dando evidentes sinais de ecumenismo e passaram a desfrutar
da simpatia e do apreço dos demais marcianos.
A religião de “espírito e verdade”
seria, sem dúvida, um elemento básico da organização da vida e funcionaria como
um cimento que dá consistência aos atos humanos em Marte.
VIII
Aliança para um novo modo de produzir
As insondáveis diferenças que os
novos marcianos viam diante de tudo quanto prospectaram para o êxito da vida em
Marte, extasiavam, de um lado, mas, também traziam as inquietações profundas
diante do porvir. Como iriam assegurar o necessário pão de cada dia, num
ambiente tão inóspito?
Eles sabiam que lá não encontrariam
nem mato, nem peixes, nem animais e nem sementes. A alimentação teria que ser
processada quimicamente e, em parte, produzida através de plantas na grande
estufa ali instalada, com o aproveitamento das grandes reservas de produtos
químicos disponíveis em Marte. Esta insegurança básica representava, todavia,
uma inaudita mudança no modo de entender a vida, estribada sobre o eixo do
trabalho. Este passaria para um nível secundário e, como índios e povos ágrafos
da Terra, poderiam aprender a viver com tempo ínfimo de trabalho. Como os
grandes geradores de oxigênio, nitrogênio, gás carbônico e hidrogênio se
encarregariam de grande parte da produção que, altamente informatizada, dispensava
serviços pesados de mão de obra, sobraria muito tempo para aprendizagem, para
jogos, passatempos e para momentos de ócio.
Um dos efeitos inerentes da nova
perspectiva de vida em Marte também daria outra dimensão às pesquisas
científicas, não mais movidas por grandes grupos, com altíssimo poder de
barganha para descobrir algo a ser vendido como mediação para obtenção de
extraordinários lucros, mas, como busca coletiva e solidária do que realmente
poderia ser favorável à vida e à boa saúde dos habitantes de Marte.
IX
Definição contra
armas
Sem gastos para fabricação de armas
e de instrumentos de guerra, a vida marciana daria um salto imenso de qualidade
sobre a ancestralidade do planeta Terra, pois, o presumido investimento a ser
gasto em armamentismo e manutenção de guerras, poderia ser aplicado em saúde e
qualidade de vida. Nada de exército e nada de educação perversa de jovens para
aprender técnicas de domínio, de controle e de matança de rivais.
A ausência de graduações de cargos e
de poderes para o êxito das guerras descartava também as razões das guerras
frias. Desapareceria igualmente todo o poder de barganha para submeter outras
pessoas e lhes extorquir impostos, “Royalties” e outras formas de espoliação.
Sem as grandes neuroses criadas em
torno do que os adversários e presumidos inimigos estariam inventando de
sofisticado para matar mais e melhor, deixar-se-ia de gastar verdadeiras
fortunas na construção de navios de guerra, de aviões, de tanques e mil outras
parafernálias de destruição, espionagem e provocação. Tudo isso poderia ser
investido em formas bem mais edificantes de vida.
A ausência de armas constituiria,
finalmente, um grande e verdadeiro salto de qualidade na vida dos terráqueos em
Marte.
Outra importante superação da
ausência de armas seria a de dispensar toda a parafernália de sistemas de
alarme, de controle e de segurança das casas. A vida nas grandes bolhas seria
muito mais translúcida e os espaços privativos das famílias, como as ocas
indígenas, não apresentariam nem portas e nem trancas.
X
Serviços
governamentais gratuitos
A proposição de Karl Blank foi
certeira e objetiva para desativar sonhos dos que já pensavam que poderiam vir
a ser nomeados Presidentes, Senadores, Deputados, Prefeitos, Vereadores, ou
então, pelo menos assegurar uma função mais subserviente, mas, ainda de salário
privilegiado, ou até mesmo, um cargo em qualquer das instâncias do poder
legislativo, judiciário, bem como do serviço público ou de alguma outra
entidade federal.
Terminaria, enfim, a velha sofística
de convencimento por discursos mentirosos e enganadores, meramente movidos para
persuadir e encobrir os reais desejos de vantagens pessoais através de toda
hierarquização de cargos públicos e de salários gritantemente injustos diante
do que outros recebem por atividades muito mais difíceis e desgastantes.
A simples ausência de grupos a
estabelecer salários através de legislação em favor de causa própria, já daria
condições razoáveis a todos os trabalhadores, e ninguém precisaria estar
passando fome ou necessidades básicas. Ademais, o fim da falácia discursiva e
da protelação das promessas feitas, daria objetividade, clareza e definição em
torno das tarefas urgentes e importantes a serem efetuadas.
De acordo com a intuição de Karl
Blank, dar-se-ia, enfim, uma reviravolta profunda no conceito de Estado, tão
amargamente socado goela abaixo aqui na Terra, e tão maldosamente executado
sobre as pessoas, sem sequer lhes dar a mínima chance de promover organização
da vida livre da ingerência de governantes que, em nome do Estado, exercem
verdadeira tirania sobre os súditos.
XI
Ausência de Salários
A grande novidade da vida em
Vastitas Borealis viria ser a da possibilidade de vida sem salário. Como no
período terreno da humanidade, vivendo da coleta de frutos, poderiam os
marcianos dispensar parco tempo para ajuntar elementos químicos com vistas a
assegurar a composição da sua alimentação básica. Em decorrência, isto seria
feito, sem esta obsessão massacrante das longas horas de desgaste muscular ou
neurológico de subserviência para satisfazer interesses de patrões ou de grupos
altamente ambiciosos.
A ausência de salários terminaria
finalmente com a deplorável roubalheira de Bancos e que, em absolutamente nada,
ajudam os clientes, a não ser, para extorqui-los por abusivas cobranças de
juros, taxas, e ainda com péssimo atendimento.
Toda a humilhante espera em filas de
bancos poderia ser aproveitada para incontáveis modos de passar estas horas com
atividades mais gratificantes do que a tediosa e estúpida espera.
Como a centralidade da vida não
teria mais a necessidade de impregnar-se do sistema capitalista, terminaria,
também, a razão de procurar lucros, competitividade, superação dos outros,
pois, o modo de ser da vida marciana poderia nortear-se simplesmente pela
colaboração e pelo prazer de ajudar outras pessoas a se sentirem bem. Esta
perspectiva matricial devolveria, finalmente, aos moradores de Marte a
dignidade das ações participativas, solidárias, quer nas dificuldades, quer nas
buscas de superação, quanto na partilha do que os seres marcianos produziriam.
A inexistência de salários daria
ainda uma dimensão nova aos traços éticos e estéticos. O bom, o certo, o
correto e o justo seria fruto coletivo e não da prescrição de quem manda. O
real passaria a retomar a primazia que perdeu pelo endeusamento do virtual. A
sabedoria passaria a desfrutar novamente do seu valioso significado de síntese
e não se deixaria enterrar pela exploração do hiper-real, produzido apenas para
seduzir ao crasso consumo. O lugar da inteligência seria mais graduado do que o
altaneiro status da exploração do pum-pum. Ao mesmo tempo, desmoronaria toda
estrutura social estribada sobre a etiqueta, as vestes, as festas de esnobação,
os rituais de honra, os poderes e a fama. Voltaria a manifestar-se um antigo
traço, eminentemente valorizado por Jesus Cristo, que é o da cordialidade. A
cordialidade dispensaria todo o mundo da moda, dos desfiles, das aparências e
das minudências em torno do que é considerado chique, nobre, e de causar
esnobe.
XII
O nascimento da primeira menina
A gravidez de Francielle não ocupava
apenas os seus anseios e os de seu marido Marcos. Na Terra, os familiares dos
dois acompanhavam com expectativa e apreensão este estágio final da gestação.
Muita desconfiança se relacionava sobre os riscos que a viagem representaria e
as evidentes possibilidades de atrapalhar o fluxo natural do tempo de gestação.
Os demais da comitiva também alimentavam expectativas em torno do seu
nascimento. Ao chegar o momento do parto, nasceu, dentro da normalidade desta
hora, uma linda menina, aparentemente mais avermelhada do que as nascituras da
Terra, talvez pelo reflexo do ocre que circundava o ambiente. Saudável e sem
apresentar quaisquer traços de possíveis anormalidades, todos festejaram muito
este nascimento porquanto representava as esperanças da possibilidade de gerar
e expandir a vida dos que vieram estabelecer-se no planeta Marte. O maior risco
seria o do excesso de bajulação, pois se tentaria criar status em torno desta
primazia, e se transformaria seu estado em mito tal como na Terra fazem em
torno de alguns jogadores de futebol, alguns artistas e expositores de ossadas
mal revestidas de músculos da moda vigente. Em Marte já não se precisaria mais
de herói e nem de mito para ser reverenciado pelos outros. Dar-se-ia
proeminente valor à capacidade de partilhar os dotes e as virtualidades
pessoais de cada membro em favor do bem comum.
Dentre os mil palpites sobre a
definição do nome da menina, acabou prevalecendo um nome simples, mas, com nova
conotação de sentido: chamar-se-ia Marciana. As outras que viessem a nascer
depois teriam que receber nomes a serem elucubrados e delineados segundo
tendências do gosto marciano que viesse a emergir. Muitos começaram a projetar
idéias e nomes para os filhos de outras mulheres grávidas. Da condição de dar
nomes, alargar-se-ia, igualmente, a possibilidade de criar um mundo marciano
capaz de dar sentido à vida. Seria, por conseguinte, o fator primordial para
lidar com os limites e para a capacidade de dar razões aos atos e às
deliberações voltadas para um agir positivo do estar no planeta Marte.
Ao lado destes incipientes passos
dos primeiros habitantes da Vastitas Borealis, porém, valiosíssimos para
acalentar um futuro próspero às vida dos recém chegados a Marte, muitos outros
passos, necessariamente deverão ser delineados. De qualquer forma, o começo não
constituiu o mito primigênio da estreita sintonia da condição humana com Deus,
como paraíso terrestre, segundo a tradição bíblica, mas, refletiu
significativos passos de bom senso para caminhos de efetiva transcendência da
carga cultural levada da Terra para Marte. A soberania do poder conquistador
pelo menos abriu perspectivas de intuições para convivência de patamares mais
elevados de vida humana em Marte do que sob os poderes dominantes da Terra.
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