sexta-feira, 20 de setembro de 2013

ESTETIZAÇÃO DO CORPO E GOZO

 Pe. João Inácio Kolling[1]

RESUMO: A tradicional primazia da espiritualidade sobre o corpo, ao lado da ênfase dos valores do espírito em detrimento a tudo quanto decorre do corpo, própria da clássica concepção platônica, deu espaço, no período medieval, ao enaltecimento da ascese e da mística em função do que poderia ser desfrutado depois desta vida. O deslocamento deste horizonte e a antecipação dos prazeres derradeiros para o ciclo humano passou a enaltecer o corpo como fonte de beleza, de realização de prazer, e também, como objeto de manuseio para se tornar mais estético e mais insinuante como objeto de consumo. Tal perspectiva impôs também nova caracterização da luta contra o “demônio” que estraga as mediações do prazer: já não prevalece mais a necessidade de empenho para livrar-se das seduções demoníacas que desviam o alcance dos parâmetros espirituais, mas, requer-se empenho fora do comum para não sucumbir na tentação sedutora que estimula o corpo humano a consumir incontáveis ofertas de dietas e receitas, das mais saborosas, que incorporam o inferno da gordura. Enquanto que os antigos embates de resistência contra os poderes satânicos, ou “satanizados”, implicavam em penitência, abnegação e mortificação do corpo, os atuais requerem a mesma amarga judiação do corpo, porém, através de dietas, de cirurgias restauradoras, de exercícios, de fisioterapia, de malhação e de um extraordinário consumo de produtos, tanto para embelezar, quanto para assegurar ao corpo, pelo menos na aparência, uma boa forma. Esta mudança afeta as subjetividades quanto os parâmetros educacionais.
Palavras-chave: Corpo. Arte. Prazer. Gordura. Receitas. Dietas.


Introdução
         O corpo, objeto diminuído e desconsiderado diante da ascese do espírito desde o tempo grego clássico, passou a desfrutar, em nossos dias, não somente de elevado prestígio e da mais excelsa forma para a expressão da arte, mas, também passou a ser constituído em objeto sujeito de modelagens artísticas e, ainda mais, a objeto para seduzir ao consumo, sobretudo pela estetização e pela insinuação de conceitos culturais em torno do corpo perfeito.
            O intento deste texto é o de relacionar, numa perspectiva filosófica, algumas idéias antigas e medievais a respeito da negação do corpo e destacar que a estetização do corpo, em nossos dias, apenas deslocou alguns focos de tensão entre a subjetividade e a educação. Para a cultura antiga e medieval era importante mortificar o corpo, a fim de elevar-se para além do corpo no caminho da ascese ou de uma mística espiritualizada, e, tal projeto implicava em imputar muitos sofrimentos ao corpo para que pudesse vencer as tentações do “demônio”. A estetização hodierna luta contra o mesmo demônio secularizado e encarnado na gordura. Ao invés de mortificação, o endeusamento do corpo estabelece o ato de fruir o próprio corpo, mas continua refém, da mesma forma, das diatribes do “demônio” da atualidade[2], que, de forma sorrateira, estimula o pecado através de muitíssimos milhões de receitas gostosas, saudáveis e saborosas, e deixa os fracos e combalidos seres humanos numa incontida tentação de entregar-se a uma irresistível gula, sem, contudo, desvincular-se da fulcral e irredutível exigência de dietas, exercícios físicos e insuportáveis malhações: tudo em nome de um poderoso e elevado patamar cultural de um presumido céu, projetado como corpo em boa forma e, produzido para ser deleitado, fruído e consumido.


1.    Platão e os Prazeres da Alma

Platão sustentou a existência de três partes da alma e três espécies de prazer. As três partes seriam: a que leva a aprender; a que leva a irritar-se; e a da concupiscência, - que é violenta de desejos por comida, bebida, amor - e, por dinheiro, para satisfazer estes desejos.[3] Assim, existiriam também três espécies de homens, com prazeres correspondentes: a) o filósofo: que curte o prazer da experiência, da vigilância e do raciocínio; b) o ambicioso: que faz o prazer girar em torno da honra; c) o interesseiro: que busca o prazer no lucro. A reflexão daria ao filósofo o mesmo prazer que as outras espécies de alma seriam capazes de propiciar.[4] O prazer do ambicioso estaria mais próximo do prazer do filósofo, ficando o último lugar par o interesseiro. Somente o prazer do sábio seria puro; os outros propiciariam apenas uma espécie de sombra do prazer filosófico.[5] Até o apreço dos deuses seria pela verdade e não estariam nada sensíveis a manifestações que implicam em riso.[6]
Estes dados indicam o que Platão reforçou também através do mito da caverna, porque somente os habituados com as coisas do mundo superior seriam capazes de contemplar as coisas do céu e, por isso, sem necessidade de envolvimento com as sombras do mundo sensível das realidades do corpo.
Platão valorizou o mundo das idéias, dando primazia à transcendência sobre o mundo sensível. Este mundo sensível seria apenas uma cópia imperfeita do mundo das idéias. Tal conclusão levou Platão a relativizar a arte, vista como mero disfarce ou simulacro do real. Ao colocar a arte num patamar tão insignificante, não sobraria no corpo algo merecedor de traços artísticos.


2. Estetização do corpo no período medieval

O cristianismo se destacou em meio a outras expressões religiosas pelo uso de referenciais simbólicos. Deixou de lado as marcas no corpo para celebrar a iniciação ou a pertença a uma entidade religiosa, tal como a circuncisão efetuada pelo judaísmo. Destacou, por exemplo, no batismo, o significado do nome dado à pessoa inserida na comunidade, que já não envolvia a marcação física na pele ou em algum membro do corpo. Mas, na perspectiva cultural e artística, o cristianismo absorveu o horizonte do espírito ascético grego. Mesmo que na área da poesia tenha, paulatinamente, avançado a noção cavalheiresca, o período medieval enaltecia o amor, mas o fazia num quadro espiritual, com ênfase na ternura, na elevação do sentimento e na devoção à pessoa.[7]
O misticismo religioso absorvia grande parte os ideais de estetização. Por isso, era considerado belo tudo quanto fosse verdadeiro: a verdade, no período medieval, era bela.[8] Em razão desta visão, os corpos também não passavam de símbolos, de representações e de figuras. Havia, no entanto, certa ambigüidade e uma tensão entre repressão e exaltação do corpo, ou seja, entre o estímulo do jejum e da abstinência e o da gula nos banquetes.[9] Este aspecto alargou-se com a Ordem de São Bento, que, ao lado da vida monacal, estimulou a renúncia ao prazer e a luta incessante contra as tentações, o que deixava transparecer um desprezo ao mundo e, evidentemente, ao corpo. O pecado original era pensado como um pecado de envolvimento sexual. O desprezo ao corpo trazia uma correspondente normatividade para a penitência corporal. O papa Gregório, chamado o grande, sustentava que o corpo constituía “uma abominável vestimenta da alma”.[10] Por isso, a recomendação do uso do silício indicava o cultivo de uma piedade superior. Entre as virtudes mais elevadas estavam continência e abstinência. A gula e luxúria entraram na lista dos pecados capitais.[11] Exemplos ilustrativos desta concepção de desprezo ao corpo, constituem os santos São Luiz e São Francisco. Luiz humilhou seu corpo ao máximo para salvar-se; Francisco subjugou o corpo com muitas mortificações e aceitou nos estigmas a identificação com o sofrimento de Cristo.
A partir do século XVIII entrou na vida medieval uma concepção mais positiva do corpo. Sobretudo a partir dos proclamados santos Boaventura e Tomás de Aquino, estabeleceu-se, mesmo muito tempo depois dos seus escritos, a excelência dos altares na perspectiva de um movimento de baixo para cima, pois, as almas fracas poderiam fortalecer-se através dos sacramentos e elevar-se até Deus. Até mesmo a sexualidade estaria situada no caminho da elevação da natureza humana para a perfeição divina. Assim, Tomás de Aquino considerava o prazer corporal como um bem humano fundamental, quando regido pela razão, pois seria capaz de elevar-se aos prazeres superiores do espírito. Por conseguinte, as paixões humanas poderiam dinamizar o impulso espiritual. Tratava-se de uma glorificação do corpo em relação aos tempos anteriores, mas, mesmo assim, apontava que este pleno gozo só poderia viabilizar-se na vida eterna, onde voltaria a reinar a nudez da inocência primitiva e o pudor do corpo. Nem por isso a mulher deixou de ser inferiorizada devido às suas menstruações. Já não se exigia que se submetesse a ritos de purificação como na tradição judaica, mas, se justificava que eventuais relacionamentos fora do período menstrual da mulher implicariam em nascimentos de crianças com a temida e detestada doença da lepra, ou Hanseníase.[12]


3. Discursos recentes sobre a estetização do corpo

            Parte razoável dos textos disponíveis sobre o tema, - talvez influenciada pela tradicional ótica platônica, - faz leituras pessimistas sobre a exuberância da estetização do corpo, tão notável em nossos dias. Tende a perceber a promoção de beleza com finalidades meramente alienantes e opressoras. Por outro lado, estes textos destacam o lado sombrio e os males que decorrem deste fenômeno, como propensos a prejudicar a auto-estima e a auto-imagem. Também seriam favoráveis à perda da riqueza do mundo subjetivo. Por isso, além das doenças, como a anorexia, a estetização do corpo levaria a uma superficialidade de aparências. A estetização constituiria uma exploração que projeta uma idealização de beleza e submeteria as pessoas, a ponto de torná-las vítimas desta idealização.
            Outro perfil de discursos enaltece a estetização do corpo, mesmo que parece induzir a verdadeiras manias. Justifica que a estetização do corpo é o melhor caminho para o alcance de felicidade. Sugere que as pessoas sejam vaidosas e que invistam muito em si mesmas. As mediações sugeridas vão desde dietas, determinados exercícios, cosméticos, cirurgias reparadoras, terapias e muitos produtos de enfeite.[13]
            A beleza do corpo requer malhação, perda de gorduras, cultivo de cabelos bonitos, bem tratados e um corpo “sarado” e bem cultivado. Tudo precisa ser liso, polido, fresco, belo, cheiroso, magro e musculoso. A obsessão pelo corpo perfeito reflete a amplitude do culto ao corpo. O próprio mercado de trabalho exige cada dia mais que as pessoas tenham forma atlética e boa aparência. As sofisticações eletrônicas também ajudam no processo de insinuação para disciplinar o corpo. O que, no entanto, poderia estar por trás de todo suor e do extraordinário empenho para a aquisição de um corpo bonito e atraente?
            A estetização do corpo pode ser vista como linguagem de inconformismo diante de tudo o que advêm do passado e do que se projeta para o futuro. Reflete uma visão de mundo que valoriza essencialmente o momento presente. Já salientamos acima que uma antiga ancestralidade de desconsideração do corpo, oriunda do filósofo grego Platão, há bem mais de dois mil anos atrás, perpetuou este modo de lidar com o corpo como lida insignificante de algo inferior.[14]

3.1 – As tatuagens
            Uma das formas muito visíveis da estetização do corpo é a das tatuagens. É uma marca típica das maciças práticas de modificação do corpo. Inicialmente, no século XVIII, a tatuagem apareceu como expressão de quem já não contava na sociedade: os presos, os loucos e as prostitutas. Como já se sentiam negados em sua corporeidade, valeram-se do objeto de negação, apropriando-se do seu corpo para fazer dele uma expressão de singularidade. A tatuagem surge, por conseguinte, como a transformação do corpo para fazê-lo despertar atenção dos outros. Nisto superaram a negação do corpo, porquanto este passou a ser constituído em objeto de exibição e, capaz de mediar uma imposição sobre os demais.[15]

3.2 – O lugar do corpo na sociedade
            Enquanto que para o pensamento platônico e o oficial de muitos séculos depois dele, a preocupação maior foi no sentido de direcionar a arte em função do transcendente, a reação de excluídos da sociedade e a leitura inversa que Deleuze e outros pensadores modernos fizeram a respeito da condição do corpo, acabaram despertando um novo foco de referência para a arte: não mais atrelada à transcendência, mas à vida concreta e real. Foi uma valorização do que Platão considerava mero simulacro, ou sombra da cópia perfeita.
            Uma bela ilustração desta inversão se engendrou com o carnaval: da antiga festa das máscaras, pois a arte estava em esconder-se atrás das máscaras, de modos que os encenadores não fossem identificados, fez-se também uma inversão entre superior e inferior. O superior, agora, passou a ser constituído pelo corpo, e, o grotesco passou a ocupar o lugar do que era dado à dimensão espiritual, culta e clássica. Desta forma, o ato de comer, o de beber e a promiscuidade, passaram a ser mais apreciados do que as tradicionais concepções superiores, nobres, ascéticas e de salvação. Em razão deste deslocamento, o carnaval mais recente valoriza eminentemente a desproporção, a impureza e pouco ou nada a simetria de corpos ideais da ancestralidade do mundo antigo. Já não há preocupação para mostrar um corpo puro, elevado e perfeito no sentido espiritual, mas valoriza-se o simulado, o da desordem, do sexo, das cores, dos exageros, do que é torto e do que é estranho. Eleva-se precisamente o que, por longos séculos, foi literalmente negado e excluído do conceito de arte e de beleza. É a valorização da dimensão física e emocional que antes ficara sublevada pela razão e pela racionalidade. Abre-se espaço para que estilos de vida sejam expressos como manifestação da arte de individualidades.[16]
            Depois do longo período histórico no qual o puritanismo e as vedações do corpo revelaram-se predominantes, nosso tempo começou a valorizar sobremaneira o corpo sob os augúrios da libertação física e sexual. O corpo passou a ser visto como fonte de prazer e, para gerar mais prazer, virou fetiche e, simultaneamente, feitiço.[17]


4. Corpo como espaço de gozo

            Mais do que fonte de prazer, de homeostase, de paz e de harmonização ou de bem-estar, o corpo passou a ser visto como lugar do gozo[18]. Grande parte deste novo encantamento decorre da cultura, pois se alguém se inventa a injetar-se anabolizante de cavalo, não o faz porque tal ato é gostoso, mas porque se sente movido por um imperativo cultural, que o leva a esperar o alcance dos efeitos da idealização de músculos protuberantes. Não injeta estes anabolizantes pelo gosto, mas é induzido a buscar o gozo do que o ideal lhe aponta. Sob este aspecto, pode alguém tornar-se vítima do ideal e realmente incorrer num processo destruidor, mas, pode também e, perfeitamente, a idealização prestar-se para que aspectos físicos sejam modificados e trabalhados. O risco está na obsessão que se desenvolve em torno da busca de corpos perfeitos.[19]

4.1- Quando o “pum-pum” vale mais que uma cabeça inteligente
            A exacerbação em torno da estetização do corpo é também uma inovação no modo de entender a razão de ser da estética, porquanto não deseja resgatar nada do passado, nem dos seus erros e nem das suas conquistas. Ao mesmo tempo, a estetização do corpo pode ser vista como uma linguagem de rejeição dos valores da cultura européia, sempre tida como superior e delimitada aos parâmetros da racionalidade. Da rejeição deste quadro, abre-se a alternativa do colorido emocional, considerado mais valioso para a existência do que o império normativo decorrente da superior cultura européia. Deste modo, a arte deixa de ser vista por sua função social, educadora, restauradora ou de enaltecimento de uma conduta virtuosa. Ao deixar de ser meio, a expressão estética oferece espaço para a estetização do corpo.
            Na mídia eletrônica a possibilidade de acesso à visualização ou ao “voyerismo” de imagens, certamente desperta elevadíssima preferência pelas manchetes relativas a características de um “pum-pum” excepcional do que em relação a uma sumidade intelectual. O “pum-pum” constitui assunto muito mais sensacional e espetacular para ponderações, apreciações e comentários do que a genialidade de uma pessoa com idéias filosóficas ou científicas. Predomina a beleza física e o bem-estar do corpo atrelado à imagem.[20]
            Na estetização do corpo ocorre um fenômeno muito interessante de ser observado: a onda do consumo transformou o corpo em objeto para satisfazer desejos. Os desejos vinculados ao corpo foram transformados em hiper-reais; no entanto, mesmo que seduzem, não realizam, isto é, prometem, mas não realizam. A não satisfação dos desejos permite a imediata oferta de outros desejos a serem consumidos. Assim, nossa sociedade de consumo transformou o corpo num privilegiado objeto de consumo como qualquer outro objeto, como um carro, ou uma geladeira, por exemplo. A movimentação da insatisfação é constantemente levada a depreciar e a desvalorizar um produto, e, imediatamente apontar para outro, que é indicado como capaz de trazer plena satisfação e felicidade. Neste vai-vem de criar e frustrar expectativas de satisfação, as pessoas se tornam compulsivas, tanto para desfrutar o melhor, o novo, e os últimos segredos, quanto, também, para oferecer o que há de mais insinuante, novo e peculiar a ser exibido no seu corpo.
            Uma ilustração desta transformação do corpo em objeto de venda de prazer está ligada à extraordinária indústria da doença, envolvendo o que Ivan Illich chamava de “iatrogênica”, porque faz com que doenças e limitações devam ser tratadas em decorrência de outros tratamentos ou terapias anteriores que foram mal sucedidos. Problemas de pele são elucidativos, pois, quanto mais cremes e protetores alguém usa, mais aumenta a sensibilidade provocada pelo uso destes produtos. Tudo se situa no horizonte de ter que apresentar novas promessas, mais atraentes, bonitas e eficazes, a fim de manter viva a busca consumista diante do que as outras terapias frustraram.
            Trata-se, não de procedimentos individuais, mas, de uma indução social que transformou tudo em objeto de consumo. Além disso, estabeleceu a novidade como altamente superior à estabilidade ou à permanência duradoura. O encurtamento da distância entre o ato de desejar e o de adquirir objetos de consumo, foi fundamental para a síndrome consumista do nosso tempo se alargasse extraordinariamente. Por isso Zygmunt Bauman diz que a síndrome consumista implica em velocidade, excesso e desperdício.[21] Tudo precisa de duração curta e de desaparecimento rápido, isto é, que seja rapidamente usado e imediatamente descartado, porque tudo impregna limitações nas virtudes, o que, impreterivelmente, leva a buscar novos objetos e novas sensações, encontráveis na multiplicação de objetos de desejo. E quanto mais fugaz for este processo, tanto mais as pessoas necessitam de outros produtos, e até de parcerias de afeto e de sexo. Assim, a estetização do corpo induz a uma contínua lida de apostas e erros em que se fica no chão raso, devido aos constantes fracassos, mas se sonha com o topo do corpo em boa forma. Como qualquer objeto, também o corpo humano é situado nesta sina de ver-se rapidamente descartável. Em razão disto, a grande doença de nossos dias é a da neurose de virar lixo. Luta-se ferrenhamente para sair do lixo, porque tudo o que é bom, precisa durar pouco e ser descartável. Assim, a vida humana passa a ser envolvida nesta efemeridade curta e fugaz de permanecer importante por muito pouco tempo.

4.2- Receitas e dietas
            A necessidade de um corpo atraente para ser degustado e fruído, seja para o que for, é cotidianamente atormentada por um “demônio”, - não o “chifrudo” dos tempos de antanho, - mas, por um demônio chamado “gordura”. De um lado, as seduções de uma infinidade de receitas e cosméticos para degustar e ser mais feliz; de outro lado, a necessidade de sofrimento e de terapias diuturnas para livrar-se do “capeta” que está embutido e mesclado nestas fontes de prazer.
            Se a sociedade medieval incutia uma necessidade de abnegação, de penitência e de sacrifícios físicos para vencer a sedução tentadora e aliciante dos poderes demoníacos, este monstro continua a rondar o imagético da estetização do corpo para estragar o que é estabelecido como parâmetro da perfeição física, mas, agora pede verdadeiras torturas de malhação, de ginástica e de dietas. Parece que toda a vigilância não é suficiente para vencer um espectro de ameaças consorciadas em tudo quanto dá prazer. Aparece sob nova roupagem a antiga questão crucial: uma ansiedade profunda e exacerbada para encontrar saídas que não impliquem em desmanche das fontes de prazer das incontáveis receitas culinárias, - sempre as melhores, - e os segredos das terapias que prometem levar aos céus do corpo perfeito. De um lado, vai ao infinito o horizonte das fontes de prazer; de outro lado, este horizonte foge, sem saciar, e obriga a cultivar outros desejos para evitar o desaparecimento como lixo no meio das outras coisas descartáveis.
            Concluindo, podemos evidenciar que tudo quanto um itinerário de santidade uma vez representava na subjetividade da vida cristã, sobretudo pela influência cultural grega de ascetismo para os valores superiores do “céu das idéias” e que, no cristianismo, elevou aos altares muitas vidas deste desprendimento humano, não chega a empolgar e nem despertar motivações especiais diante do horizonte da boa forma física, céu projetado para uma sociedade consumista. Estar em boa forma: eis o segredo dos mais altos patamares celestiais de consumo. Todavia, como a santidade fugia do horizonte de muitos fiéis devotos, o corpo da “boa forma” está se afogando nos milhões de sedutores tentáculos que oferecem receitas culinárias e dietas especiais. De forma secularizada, perturbam e distraem os ascetas da boa forma com lenitivos de salvação, mas não lhes deixam sossego na oferta sedutora, doce, gostosa e saborosa das receitas e das dietas. No entanto, o demônio de nossos dias ameaça, fisga e desvia do presumido céu, - através da temível “forca”, - tudo quanto absorve alguma gordura. Deste modo, como se deleitar nos prazeres e ficar em boa forma?
            Parece que o sonhado bem-estar buscado na estetização do corpo está a requerer algum outro modelo de perfeição que vá um pouco mais longe do que a mera instrumentalidade para o consumo. Se uma ascética fez olhar demais para fora do corpo, cabe novo direcionamento para dentro da fragilidade humana, e que ali, de forma lúdica, ajude a brincar com as contingências e fracassos, a fim de facilitar e de recriar fantasias, ou sonhos de algo mais significativo do que mera aparência para ser produzida, trabalhada e consumida.



BIBLIOGRAFIA

ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. Nada além da epiderme: a performance romântica da tatuagem. Disponível em: http://books.google.br 
BABO, Maria Augusta. Tatuagem. In: http://www.arte.coa.pt 
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zahr Ed., 2007.   
BERGER, Mirela. O culto ao corpo. Disponível em: http://www.mirelaberger.com.br
CADEMARTORI, Lígia. Períodos Literários. Disponível em : http://www.scribt.com/doc/19499668
CERQUEIRA, Carla Preciosa Braga. O corpo: o protagonista da pós-modernidade. Disponível em: http://www.lasics.uminho.pt
FURTADO, José Luiz. A estetização do cotidiano e a realização da arte. Disponível em: http://www.fafich.ufmg.br/~Katharsis/textos
GOFF, Jacques e TROUNG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Disponível em: http://books.google.com.br
KOCH, Erec. O corpo estético: paixão, sensibilidade, corporeidade e na França do século XVII (Google e-Book). Disponível em: http://translate.google.com.br/translate?hl=pt.E  
MENDONÇA, Carlos Magno Camargos. Beleza Pura: e estetização da vida cotidiana como estratégia de resistência para o homossexual masculino. Disponível em: http://www.revistaseletronicas.pucrs.br
PORTINARI, Denise. A invasão dos belos corpos. Disponível em: http://www.fafich.ufgm.br/~Katharsis/textos
SILVA, Regina Coeli. Um rosto para vestir, um corpo para usar: narrativa literária e biotecnologia. Disponível em: http://scielo.br
VASCONCELOS, Martha Werneck. Signos românticos traduzidos em Bits. Disponível em: http://cencib.org/simposioabciber/PDFs




[1]  Texto escrito em parceria com Ir. José Kolling, Diretor do Colégio La Salle de Lucas do Rio Verde-MT e publicado na Revista La Salle.
[2]  Visto como personificação do que se apresenta altamente adverso aos desejos mais elevados e mais propugnados.
[3]  Em seu livro A República, 580e, p.428.
[4]  “É forçoso que aquilo que elogiar quem for amigo da sabedoria e amigo do raciocínio seja a verdade absoluta. Portanto, dos três prazeres em causa, o desta parte da alma, através da qual aprendemos, será a mais agradável, e o homem em que esta parte for a que manda terá a vida mais aprazível? Como não havia de sê-lo?” (Platão, idem 582a, p.432)
[5]  “Logo, quando toda a alma obedece à parte filosófica e não se revolta contra nenhuma parte, é-lhe possível cumprir em tudo as suas funções e ser justa, e colher cada uma os prazeres que lhe são próprios, os de melhor qualidade e os mais verdadeiros possíveis... Mas quando é uma das duas partes que manda, não lhe é dado encontrar o prazer que lhe é próprio, e de mais a mais, força as outras partes na busca de um prazer que lhes é alheio e que não é verdadeiro.” (Idem, 586e-587a, p.441)
[6]  “Não é admissível que se representem homens dignos de consideração sob a ação do riso; e muito pior ainda, se tratar de deuses”. (Idem, 389a, p.107)
[7]  “A poesia cortês medieval é uma poesia convencional: a amada é dotada sempre das mesmas características e festejada de uma única maneira, dando a impressão de que o objeto da cantiga, não é uma mulher determinada, com traços individuais, mas uma imagem ideal”. (CADEMARTORI, Lígia. Períodos Literários. Disponível em: http://www.scribt.com.doc/19499668 , p. 12)
[8]  Segundo Martha Werneck de Vasconcelos, em: http://cencib.org/simposioabciber/PDFs , p.5
[9]  “O culto do corpo da antiguidade cede lugar, na Idade Média a uma derrocada do corpo na vida social. São os padres da Igreja que introduzem e fomentam esta grande reviravolta conceitual, com a instauração do monaquismo. O ‘ideal ascético’ conquista o cristianismo por meio de sua influência na Igreja e se torna o pilar da sociedade monacal, que, na alta Idade Média, buscará impor-se como o modelo ideal de vida cristã”. (Idem, p.37)
[10]  GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média, op. cit., p. 11.
[11]  Idem, ibidem.
[12]   Idem, p. 40.
[13]  Segundo Carla Preciosa Braga Cerqueira: “vive-se o culto da imagem e a importância da aparência cria uma indústria que se vai aperfeiçoando continuamente. As pessoas recorrem a técnicas de design, de regimes alimentares, cirurgias estéticas, cosméticos, cremes, ginástica, ingestão de produtos e marcas corporais. Procura-se, incansavelmente, a fonte da juventude...” (No texto: O corpo: o protagonista da pós-modernidade, disponível em http://www.lasics.uminho.pt )
[14]  Não se pode ignorar que muitas pessoas estetizam o corpo para uma espécie de compra de afeto. Como Renata Duarte afirma: “É triste pensar que atualmente muitas mulheres só se valorizam por ter uma ‘bundinha’ durinha e um par de seios com silicone e ainda por cima recebem apoio dos homens que na maioria das vezes valorizam apenas isso nelas”. (Em: Culto ao corpo. Disponível em: http://www.renatathc.web.officelive.com/cultoaocorpo ).
[15]  Ao mesmo tempo, “um corpo marcado, tatuado, é um corpo velado: superfície de inscrição, um corpo que se apaga pela profusão de elementos, pelo estilo adotado, etc. Tais marcas, por suas variantes estilísticas – piercing, branding (desenho ou sinal gravado na pele com um ferro em brasa ou com laser), cutting, escarrificação, laceração, produção de cicatrizes em relevo, stretching (alargamento de perfurações), implantes sub-cutâneos, etc. – fazem todas elas, à clássica idéia do belo que a cultura ocidental, desde as origens, desenvolveu, inscrevendo-se naquilo que Vítor Ferreira chamou uma estética da divergência(2008)” (BABO, Maria Augusta. Tatuagem. Disponível em: http://www.arte-coa.pt )
[16]  De acordo com Maria Augusta Babo “a intervenção no corpo, mais ou menos agressiva, vai sempre no sentido da padronização a uma estética vigente, fabricada de estereótipos de beleza, isto é, construindo uma matriz cultural perfeita”.(No texto: Tatuagem, disponível em http://www.arte.coa.pt).
[17]  Conforme Renata Duarte, “Nos nossos dias de hoje, são estes os rituais da verdadeira adoração: os cultos religiosos dedicados ao ‘corpo’, que o tornam ‘sacrossanto’. De desígnio divino ou de limitações anatômicas, a beleza passou a ser um ‘ato de vontade’, ‘de esforço’ e um ‘denotativo do caráter’. Sim, o corpo é considerado o mais belo objeto para ser utilizado na sedução do projeto de manipulação das pessoas, culminando ainda no gosto do sujeito pelo consumo exagerado e pela ‘artificialização’ dos corpos destes sujeitos e, com isso sua conseqüente perda de identidade”. (Idem, op. cit.).
[18]  Atualmente os significados de gozo, parecem restringir-se apenas ao que decorre de relacionamentos sexuais. Nós entendemos que o significado é mais amplo e que inclui fruir, degustar e os sentimentos de gratuidade e de sensibilização com a vida envolvente.
[19]  A mídia eletrônica, de uma forma geral, procura veicular imagens padronizadas que representam o imagético de corpos perfeitos. O mesmo acontece com grande parte de revistas que estampam corpos e imagens, muito maquiadas e alteradas com técnicas e intervenções para que um corpo de carne e osso realmente apareça como extraordinário. São variados os apelos que induzem a cirurgias estéticas e corretivas, que apelam a hormônios sintéticos e à injeção de produtos na pele, que alteram os olhos, que adaptam os dentes; que maquiam com cosméticos, que mudam a cor da pele, do cabelo, do rosto e até do sorriso. São, pois muito variados os meios que apontam para corpos perfeitos.
[20]  “Criamos, avaliamos, modificamos e aprendemos a habitar e usar nossos corpos – que são sempre ‘alheios’, por isso, quase não faz sentido distinguir entre os ‘nossos’ e os ’alheios’ - um pouco como o designer, cria, avalia, modifica e recria objetos. A apropriação do corpo é um trabalho e um projeto – nunca concluído – mas sempre em aberto e sujeito a novas modificações”. (Denise Portinari, no texto A invasão dos belos corpos, disponível em: http://www.fafich.ufgm.br/~katharsis/textos).
[21]  BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida, p.111.

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