João Inácio Kolling[1]
Resumo: A normatividade tecnológica apresenta
dupla procedência. Ao lado da legislação dos órgãos sociais controladores e
delimitadores a respeito do que pode e o que não pode ser feito, bem como sobre
o que, necessariamente, precisa ser observado na utilização das TICs
(Tecnologias de informação e comunicação), existe também um poder de barganha e
de legislação indireta de normatividade a partir dos grupos que produzem tais
tecnologias. Esta dupla fonte de incidência sobre o ambiente escolar tolhe
praticamente todas as possibilidades de professores planejarem programas
educacionais.
Palavras-chave: TICs.
Normatividade. Controle social. Poder decisório. A verdade dos controladores.
Introdução
Existem dois tipos de normatividade
na educação escolar: um, é o das regras e dos limites estabelecidos pelos
órgãos de controle social, através de leis, decretos, portarias e normas; o
outro tipo de normatividade decorre da própria tecnologia aplicada na educação
escolar.
Nossa abordagem vai ocupar-se brevemente
destes aspectos sem, contudo, ponderar sobre os incontáveis decretos normativos.
Visa mais uma análise do que, de forma mais sutil e sorrateira, atua sobre o
condicionamento da atividade pedagógica. A partir de uma perspectiva filosófica
e, no âmbito da linha 04 de pesquisa da Faculdade La Salle de Lucas do Rio
Verde, - sobre “Identidade e Cultura”, - pretendemos salientar que no espaço
escolar, sob a égide das TICs, ocorrem mínimas possibilidades para intuições
criativas do agir pedagógico.
O espaço escolar se encontra sob rígido
sistema de controle e de ação, procedente de fontes exteriores ao ambiente
escolar. Pode uma escola estabelecer bonitas e boas metas, mas o que prevalece,
são aspirações alienígenas ao ambiente escolar.
1.
A definição dos conteúdos
Uma pergunta óbvia a respeito de quem define os conteúdos irá,
com certeza, remeter-nos a professores. No entanto, a definição procede de um
ambiente político ideológico que não é o da escola e nem o das peculiaridades
da cultura local. Mesmo quando os professores são convidados a estruturar o
conteúdo e a metodologia, precisam seguir normas pré-estabelecidas a respeito
do que os alunos podem e devem conhecer independente do seu passado e do quanto
já o dominam.
Parte desta presença alienígena procede da normatividade
oficial do governo. Outra parte procede das Tics (Tecnologias da informação e
comunicação)[2]. Estas
se encontram de tal forma estruturadas e imbricadas que não abrem espaço para o
que lhes é externo e, por isso mesmo, impõem um discurso homogeneizante. É como
imaginar uma piscina num navio: o nadador opta por nadar na direção sul, mas, o
navio o leva ao rumo norte. Assim, torna-se muito difícil manter a tecnologia a
serviço do ensino de algo peculiar, pois o “navio tecnológico” se impõe sobre o
método da “piscina escolar”. O cotidiano de uma ambiente escolar, com valores
específicos do seu ambiente social, passa a ser sublevado pelos valores da
tecnologia educacional. Disto resulta uma evidente inversão: a tecnologia já
não está a serviço do processo de ensino-aprendizagem, mas, molda e conforma a
prática educacional à sua própria dinâmica. Nesta reconfiguração, o trabalho
docente torna-se refém da tecnologia da educação.
2.
A fonte do poder decisório
Segundo Michel Focault o estudo da genealogia das relações de
saber e poder permite concluir que a construção do saber é uma resultante do
poder estabelecido nas sociedades. A legitimação deste poder costuma ocorrer
através de dois procedimentos:
a) Pelo Direito: que costuma estabelecer regras jurídicas
para delimitar o poder;
b) Pela Verdade: através dos discursos legitimadores que
reconduzem ao poder.
Disto decorre uma pergunta: como se consegue exercer o poder?
Mediante produção e afirmação de verdades. Como pressuposto do poder, está uma
lógica da autonomia dos discursos relativos à verdade. Quando os discursos são
considerados verdadeiros, então, acabam gerando dispositivos de poder: na
sociedade ocorre certo tipo de procedimentos que exorcizam o risco de outros
poderes com vistas a disfarçar a materialidade que está em jogo, um discurso
controlado, selecionado, redistribuído para refrear algo que possa ser
diferente.[3]
Ao discurso atribui-se o poder de dizer a verdade oculta, de
anunciar o futuro e de ver o que os outros por si mesmos não conseguem atingir.
Por isso Focault entende que a verdade é implantada através de muitas coerções,
capazes de regulamentar o poder. Assim, cada sociedade implanta esquemas e
políticas de verdade. Para tanto seleciona, escolhe e faz funcionar certo tipo
de discurso a fim de induzir uma distinção do que é considerado verdadeiro e do
que é afirmado como falso. Escolhem-se até mesmo os melhores caminhos para
valorizar o que é tido como verdade, o que, por sua vez, reforça o estatuto dos
que podem afirmar o que é eficaz e verdadeiro.[4]
A verdade, ou melhor, a sua
afirmação, está estreitamente ligada a sistemas de poder que a produzem e,
pelos efeitos do poder, induzem para que seja reproduzida. Assim, numa escola,
uma disciplina não constitui tudo quanto pode ser dito sobre qualquer assunto
ou coisa e o que pode ser aceito, mas, constitui uma forma de controle através
do discurso que estabelece limites e regras a respeito do que pode e do que não
pode ser dito[5].
Também não pode passar despercebido o
exagero e a exacerbação das justificativas de que o poder das forças
microeletrônicas seja capaz de gerir mudanças sociais e levar a sociedade a ser
mais justa e solidária. Há uma visão determinista que tende a atribuir às TICs
um poder regulador da economia, capaz de sanar tudo quanto possa não estar no
melhor nível de êxito do sistema capitalista. Sob a apregoada sociedade da
informação pode estar sendo desfocado o velho problema das desigualdades
sociais, pois, nem todos terão os mesmos recursos de acesso às informações
veiculadas. Por outro lado, isso não significa negar o alto e elevado potencial
que as TICs representam como ferramentas para atos educativos, mesmo que ainda
estejam sendo usadas no âmbito de formas mais tradicionais e conservadoras de
programação escolar. Significa, por conseguinte, que não é preciso ser
“tecnólatra” (perceber nas TICs poderosa arma libertadora para gerar progresso
na cultura, na educação, na ciência e na economia) e, tampouco, “tecnófobo” que
recusa a tecnologia e a vê como nefasta contra os bons costumes e as riquezas
da cultura[6].
As TICs, na verdade, são frutos da cultura.
Um efeito visível das TICs certamente
não está na polarização que lhes atribui, de um lado, a capacidade de gerar
novo sistema de acumulação, ou, de outro lado, de ver nelas a superação de
todas as mazelas econômicas e políticas da nossa sociedade excludente, mas, é o
de afetar menos o desgaste muscular com a correspondente valorização da
intelectualidade. De fato, ocorrem mudanças expressivas no campo laboral, nas
formas de gerenciamento e de produção. Mesmo assim, as TICs não são portadoras de
valor intrínseco, a partir de si mesmas, mas têm seu valor relacionado com
instituições e convenções sociais. Elas ajudam a reproduzir a base material da
nossa sociedade e, em razão disto, tornam-se objeto de tantas e de tão
acirradas disputas políticas.
3-
O controle através da normatividade social
Os mecanismos de imposição do poder
não procedem apenas dos grupos que fabricam Hardware e Software, mas, também
das práticas do controle social. A sociedade apresenta sistemas coercitivos de
fiscalização que atingem muitas instâncias da vida coletiva. Basta lembrar o
controle que exerce sobre presídios, fábricas, espaços religiosos e também
sobre as escolas. Em todos estes âmbitos, procura adequar indivíduos às regras
estabelecidas. Assim, as pessoas ficam sujeitas aos imperativos dos que detêm
poderes nas instituições sociais.
O que seria do devoto que não
quisesse subordinar-se diante da autoridade eclesiástica, ou do presidiário que
não quisesse acatar as ordens policiais ou ainda do operário que não quisesse
trabalhar para os interesses do patrão?
A tendência é a de que os detentores
do poder justifiquem a necessidade de comportamentos disciplinados, de modos
que, o discurso da autoridade precisa ser silenciosamente ouvido e acolhido. Da
mesma forma, justifica-se que a disciplina torna o indivíduo menos contestador
e muito mais dócil, pois lhe permite domesticar os eventuais impulsos capazes
de incitar possíveis revoltas.
As forças de controle social esperam
dos indivíduos nada menos do que a capacidade de produzir resultados que possam
ser benéficos à sociedade, com procedimentos apaziguados, mas ativos, isto é,
que não fiquem muito no ócio. E para que possam produzir bem, até mesmo o final
de semana passa a ser divulgado como período de apatia e de esforços físicos
mínimos, estimulando-se apenas o ato de ligar e desligar o televisor e fixar os
olhos e a atenção sobre o que aparece na sua tela, a fim de estejam em boas
condições de serviço produtivo na segunda-feira.
Existe um controle quase onisciente
sobre os indivíduos a partir dos sistemas dos organismos sociais e que procuram
tirar destes indivíduos toda a capacidade contestadora. Ao lado deste olho
onisciente, criou-se um sistema “panóptico” (do olho que enxerga tudo) e que
projeta uma idéia moral, como a atribuída por longo tempo do pensamento cristão
ao olhar de Deus: teria a capacidade de perceber e de conhecer de antemão tudo
o que pode vir a ser importante e bom para os indivíduos. Assim, justifica-se a
imposição rigorosa de regras com vistas a gerar comportamentos uniformes em
todos aqueles que se encontram vigiados, sejam alunos, empregados ou
prisioneiros.
Sob este quadro, o poder “panóptico”
dos sistemas de controle social tende a massificar para o anonimato e será
muito pouco provável que escolas, por exemplo, possam educar para inovações na
cultura. O próprio sistema de controle já existe para evitar que possam surgir
sobressaltos que venham a suplantar seu domínio. Neste paradoxo de controlar as
aspirações individuais através da normatividade, como pressupor que entidades
educacionais venham a orientar para o que possa desestabilizar a sociedade?
O papel preponderante do controle
social vem sendo incrementado precisamente através dos recursos dos modernos
meios de informação e de comunicação social. Consegue tal alcance, invertendo o
foco da espionagem. Se um indivíduo espiona o que não lhe é permitido, é levado
a se pensar como imoral, porque está invadindo a privacidade alheia. E para
continuar a sentir tal sentimento de culpa, é levado a invadir a privacidade
dos programas tipo “Big Brother”, sem ser considerado um criminoso, que invade
a privacidade de um grupo de pessoas desconhecidas em relação a tudo quanto
fazem num determinado confinamento. Estes indivíduos são, todavia, transformados
em objetos observáveis para despertar prazer mediante olhares inadvertidos de
concupiscência. Só que o culpado parece ser o espectador sentado no sofá. Para
sentir o alívio deste peso, os mecanismos de controle do poder logo indicam o
que em tudo isso destoa do padrão estabelecido e o espectador passa a ser o
juiz a julgar o ato. Quem na verdade faz isso, são as câmaras oniscientes da
própria sociedade.
Concluindo, podemos destacar que a
normatividade tende a falar mais alto do que a criatividade e a inovação. Se o
discurso valoriza sobremaneira estes últimos aspectos, esconde, com certeza, o
cerceamento que permite margens muito estreitas de efetivas inovações no
ambiente escolar.
As TICs realmente aceleram processos
já existentes. Também aceleram novas maneiras de entender a realidade, novas
formas de linguagem e novas formas de ler, de escrever e de comunicar-se. Deste
modo, afetam a subjetividade tanto de professores como de alunos e alteram as
formas tradicionais de pensar a experiência.
Se as TICs tendem a direcionar para
certas opções sociais e culturais, direcionam segundo técnicas oriundas da
própria cultura para o controle social. Disto decorre um evidente risco: o de
imaginar que o progresso técnico produza por si mesmo um desenvolvimento humano
e social.
Geralmente não se explicitam os
pressupostos das normatividades tecnológicas que não apontam o tipo de
sujeitos, de sociedade e de projetos culturais que querem desencadear.
Portanto, uma grande e vistosa parafernália de TICs no ambiente escolar não
significa que automática e necessariamente ocorram avanços educacionais porque
além da apropriação e do domínio das TICs, supõem-se que professores queiram
usá-los para despertar pessoas livres e responsáveis e não apenas uma grande
homogeneidade de seres subservientes, atrelados a grupos de controle.
BIBLIOGRAFIA
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docente. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v25n89/22617.pdf
BITTENCURT, Renato Nunes. A sociedade de controle e seu indiscreto
olhar normativo. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/094/94bit
CHAVARRIA, Fátima. A Importância das TIC no Processo de
Desenvolvimento Curricular. Disponível em: http://elisacarvalho.no.sapo.pt/pdf
CHAVES, Eduardo. Tecnologia da Educação: conceitos básicos. Disponível em: http://pt.shawong.com/social-ciences
ESTERHUYSEN,
Anriette. A Sociedade da Informação de
quem? Disponível em: http://unesdoc.unesco.org.
FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso (trad. de Edmundo Cordeiro e Antônio Bento). Disponível
em: http://pt.scribt-com.doc/2520353
LOPES, Gills. A Cibersociedade anárquica: análise do uso das TIC nos conflitos
internacionais do século XXI à luz da Escola Inglesa de Relações
Internacionais. Disponível em: http://www.mundialistas.com.br
LOPES, Ruy Sardinha. As TICs e a Nova economia para além do
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PELAEZ, Víctor. Biopoder e regulação da tecnologia: o caráter normativo da análise de
risco dos OGMs. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v7n2/24692/pdf
RIVAS, Teobaldo. Docência no ensino superior e tecnologia.
Disponível em: http://teobaldorivas.com/2011/05/17
Teorias normativas da estrutura dos
media. In: Infopédia
[Em linha]. Porto: Porto Ed., 2003 – 2011. [Consult. 2011-07-15]. Disponível
em: http://infopedia.pt/$teorias-normativas-da-estrutura-dos-media
[1] Texto já disponível no site das Faculdades La
Salle de Lucas do Rio Verde – MT.
[2] A Tecnologia constitui o acervo de tudo
quanto se inventou com artefatos técnicos e métodos capazes de estender a
capacidade física, sensório-motora e psíquica com vistas a facilitar o trabalho
e as relações interpessoais. A Tecnologia em Educação é mais ampla que a
informática e a sala de aulas, pois envolve a conexão da informática com a
Internet, o que a alarga com a acessibilidade ao rádio, televisão, vídeo,
cinema, etc.
[3] No livro a Ordem do Discurso, p. 2
[4] Idem, p. 10.
[5] Por isso Focault escreveu que “penso que,
através do ódio que o povo tem da justiça, dos juízes, dos tribunais, das
prisões, não se deve ver apenas a idéia de outra justiça melhor e mais justa,
mas antes de tudo a percepção de um ponto singular em que o poder se exerce em
detrimento do povo” (p. 44).
[6] Será, pois, de suma importância perceber que,
no âmbito das TICs, como em tantos outros âmbitos da organização humana,
existem donos e controladores de políticas e de normatividades.
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