segunda-feira, 23 de setembro de 2013

NORMATIVIDADE TECNOLÓGICA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

João Inácio Kolling[1]

Resumo: A normatividade tecnológica apresenta dupla procedência. Ao lado da legislação dos órgãos sociais controladores e delimitadores a respeito do que pode e o que não pode ser feito, bem como sobre o que, necessariamente, precisa ser observado na utilização das TICs (Tecnologias de informação e comunicação), existe também um poder de barganha e de legislação indireta de normatividade a partir dos grupos que produzem tais tecnologias. Esta dupla fonte de incidência sobre o ambiente escolar tolhe praticamente todas as possibilidades de professores planejarem programas educacionais. 
Palavras-chave: TICs. Normatividade. Controle social. Poder decisório. A verdade dos controladores.


Introdução

Existem dois tipos de normatividade na educação escolar: um, é o das regras e dos limites estabelecidos pelos órgãos de controle social, através de leis, decretos, portarias e normas; o outro tipo de normatividade decorre da própria tecnologia aplicada na educação escolar.

Nossa abordagem vai ocupar-se brevemente destes aspectos sem, contudo, ponderar sobre os incontáveis decretos normativos. Visa mais uma análise do que, de forma mais sutil e sorrateira, atua sobre o condicionamento da atividade pedagógica. A partir de uma perspectiva filosófica e, no âmbito da linha 04 de pesquisa da Faculdade La Salle de Lucas do Rio Verde, - sobre “Identidade e Cultura”, - pretendemos salientar que no espaço escolar, sob a égide das TICs, ocorrem mínimas possibilidades para intuições criativas do agir pedagógico.

O espaço escolar se encontra sob rígido sistema de controle e de ação, procedente de fontes exteriores ao ambiente escolar. Pode uma escola estabelecer bonitas e boas metas, mas o que prevalece, são aspirações alienígenas ao ambiente escolar.


1.    A definição dos conteúdos

Uma pergunta óbvia a respeito de quem define os conteúdos irá, com certeza, remeter-nos a professores. No entanto, a definição procede de um ambiente político ideológico que não é o da escola e nem o das peculiaridades da cultura local. Mesmo quando os professores são convidados a estruturar o conteúdo e a metodologia, precisam seguir normas pré-estabelecidas a respeito do que os alunos podem e devem conhecer independente do seu passado e do quanto já o dominam.

Parte desta presença alienígena procede da normatividade oficial do governo. Outra parte procede das Tics (Tecnologias da informação e comunicação)[2]. Estas se encontram de tal forma estruturadas e imbricadas que não abrem espaço para o que lhes é externo e, por isso mesmo, impõem um discurso homogeneizante. É como imaginar uma piscina num navio: o nadador opta por nadar na direção sul, mas, o navio o leva ao rumo norte. Assim, torna-se muito difícil manter a tecnologia a serviço do ensino de algo peculiar, pois o “navio tecnológico” se impõe sobre o método da “piscina escolar”. O cotidiano de uma ambiente escolar, com valores específicos do seu ambiente social, passa a ser sublevado pelos valores da tecnologia educacional. Disto resulta uma evidente inversão: a tecnologia já não está a serviço do processo de ensino-aprendizagem, mas, molda e conforma a prática educacional à sua própria dinâmica. Nesta reconfiguração, o trabalho docente torna-se refém da tecnologia da educação.


2.    A fonte do poder decisório

Segundo Michel Focault o estudo da genealogia das relações de saber e poder permite concluir que a construção do saber é uma resultante do poder estabelecido nas sociedades. A legitimação deste poder costuma ocorrer através de dois procedimentos:
a) Pelo Direito: que costuma estabelecer regras jurídicas para delimitar o poder;
b) Pela Verdade: através dos discursos legitimadores que reconduzem ao poder.
Disto decorre uma pergunta: como se consegue exercer o poder? Mediante produção e afirmação de verdades. Como pressuposto do poder, está uma lógica da autonomia dos discursos relativos à verdade. Quando os discursos são considerados verdadeiros, então, acabam gerando dispositivos de poder: na sociedade ocorre certo tipo de procedimentos que exorcizam o risco de outros poderes com vistas a disfarçar a materialidade que está em jogo, um discurso controlado, selecionado, redistribuído para refrear algo que possa ser diferente.[3]

Ao discurso atribui-se o poder de dizer a verdade oculta, de anunciar o futuro e de ver o que os outros por si mesmos não conseguem atingir. Por isso Focault entende que a verdade é implantada através de muitas coerções, capazes de regulamentar o poder. Assim, cada sociedade implanta esquemas e políticas de verdade. Para tanto seleciona, escolhe e faz funcionar certo tipo de discurso a fim de induzir uma distinção do que é considerado verdadeiro e do que é afirmado como falso. Escolhem-se até mesmo os melhores caminhos para valorizar o que é tido como verdade, o que, por sua vez, reforça o estatuto dos que podem afirmar o que é eficaz e verdadeiro.[4]

A verdade, ou melhor, a sua afirmação, está estreitamente ligada a sistemas de poder que a produzem e, pelos efeitos do poder, induzem para que seja reproduzida. Assim, numa escola, uma disciplina não constitui tudo quanto pode ser dito sobre qualquer assunto ou coisa e o que pode ser aceito, mas, constitui uma forma de controle através do discurso que estabelece limites e regras a respeito do que pode e do que não pode ser dito[5].

Também não pode passar despercebido o exagero e a exacerbação das justificativas de que o poder das forças microeletrônicas seja capaz de gerir mudanças sociais e levar a sociedade a ser mais justa e solidária. Há uma visão determinista que tende a atribuir às TICs um poder regulador da economia, capaz de sanar tudo quanto possa não estar no melhor nível de êxito do sistema capitalista. Sob a apregoada sociedade da informação pode estar sendo desfocado o velho problema das desigualdades sociais, pois, nem todos terão os mesmos recursos de acesso às informações veiculadas. Por outro lado, isso não significa negar o alto e elevado potencial que as TICs representam como ferramentas para atos educativos, mesmo que ainda estejam sendo usadas no âmbito de formas mais tradicionais e conservadoras de programação escolar. Significa, por conseguinte, que não é preciso ser “tecnólatra” (perceber nas TICs poderosa arma libertadora para gerar progresso na cultura, na educação, na ciência e na economia) e, tampouco, “tecnófobo” que recusa a tecnologia e a vê como nefasta contra os bons costumes e as riquezas da cultura[6]. As TICs, na verdade, são frutos da cultura.

Um efeito visível das TICs certamente não está na polarização que lhes atribui, de um lado, a capacidade de gerar novo sistema de acumulação, ou, de outro lado, de ver nelas a superação de todas as mazelas econômicas e políticas da nossa sociedade excludente, mas, é o de afetar menos o desgaste muscular com a correspondente valorização da intelectualidade. De fato, ocorrem mudanças expressivas no campo laboral, nas formas de gerenciamento e de produção. Mesmo assim, as TICs não são portadoras de valor intrínseco, a partir de si mesmas, mas têm seu valor relacionado com instituições e convenções sociais. Elas ajudam a reproduzir a base material da nossa sociedade e, em razão disto, tornam-se objeto de tantas e de tão acirradas disputas políticas.


                                3- O controle através da normatividade social

Os mecanismos de imposição do poder não procedem apenas dos grupos que fabricam Hardware e Software, mas, também das práticas do controle social. A sociedade apresenta sistemas coercitivos de fiscalização que atingem muitas instâncias da vida coletiva. Basta lembrar o controle que exerce sobre presídios, fábricas, espaços religiosos e também sobre as escolas. Em todos estes âmbitos, procura adequar indivíduos às regras estabelecidas. Assim, as pessoas ficam sujeitas aos imperativos dos que detêm poderes nas instituições sociais.

O que seria do devoto que não quisesse subordinar-se diante da autoridade eclesiástica, ou do presidiário que não quisesse acatar as ordens policiais ou ainda do operário que não quisesse trabalhar para os interesses do patrão?

A tendência é a de que os detentores do poder justifiquem a necessidade de comportamentos disciplinados, de modos que, o discurso da autoridade precisa ser silenciosamente ouvido e acolhido. Da mesma forma, justifica-se que a disciplina torna o indivíduo menos contestador e muito mais dócil, pois lhe permite domesticar os eventuais impulsos capazes de incitar possíveis revoltas.

As forças de controle social esperam dos indivíduos nada menos do que a capacidade de produzir resultados que possam ser benéficos à sociedade, com procedimentos apaziguados, mas ativos, isto é, que não fiquem muito no ócio. E para que possam produzir bem, até mesmo o final de semana passa a ser divulgado como período de apatia e de esforços físicos mínimos, estimulando-se apenas o ato de ligar e desligar o televisor e fixar os olhos e a atenção sobre o que aparece na sua tela, a fim de estejam em boas condições de serviço produtivo na segunda-feira.

Existe um controle quase onisciente sobre os indivíduos a partir dos sistemas dos organismos sociais e que procuram tirar destes indivíduos toda a capacidade contestadora. Ao lado deste olho onisciente, criou-se um sistema “panóptico” (do olho que enxerga tudo) e que projeta uma idéia moral, como a atribuída por longo tempo do pensamento cristão ao olhar de Deus: teria a capacidade de perceber e de conhecer de antemão tudo o que pode vir a ser importante e bom para os indivíduos. Assim, justifica-se a imposição rigorosa de regras com vistas a gerar comportamentos uniformes em todos aqueles que se encontram vigiados, sejam alunos, empregados ou prisioneiros.

Sob este quadro, o poder “panóptico” dos sistemas de controle social tende a massificar para o anonimato e será muito pouco provável que escolas, por exemplo, possam educar para inovações na cultura. O próprio sistema de controle já existe para evitar que possam surgir sobressaltos que venham a suplantar seu domínio. Neste paradoxo de controlar as aspirações individuais através da normatividade, como pressupor que entidades educacionais venham a orientar para o que possa desestabilizar a sociedade?

O papel preponderante do controle social vem sendo incrementado precisamente através dos recursos dos modernos meios de informação e de comunicação social. Consegue tal alcance, invertendo o foco da espionagem. Se um indivíduo espiona o que não lhe é permitido, é levado a se pensar como imoral, porque está invadindo a privacidade alheia. E para continuar a sentir tal sentimento de culpa, é levado a invadir a privacidade dos programas tipo “Big Brother”, sem ser considerado um criminoso, que invade a privacidade de um grupo de pessoas desconhecidas em relação a tudo quanto fazem num determinado confinamento. Estes indivíduos são, todavia, transformados em objetos observáveis para despertar prazer mediante olhares inadvertidos de concupiscência. Só que o culpado parece ser o espectador sentado no sofá. Para sentir o alívio deste peso, os mecanismos de controle do poder logo indicam o que em tudo isso destoa do padrão estabelecido e o espectador passa a ser o juiz a julgar o ato. Quem na verdade faz isso, são as câmaras oniscientes da própria sociedade.

Concluindo, podemos destacar que a normatividade tende a falar mais alto do que a criatividade e a inovação. Se o discurso valoriza sobremaneira estes últimos aspectos, esconde, com certeza, o cerceamento que permite margens muito estreitas de efetivas inovações no ambiente escolar.

As TICs realmente aceleram processos já existentes. Também aceleram novas maneiras de entender a realidade, novas formas de linguagem e novas formas de ler, de escrever e de comunicar-se. Deste modo, afetam a subjetividade tanto de professores como de alunos e alteram as formas tradicionais de pensar a experiência.

Se as TICs tendem a direcionar para certas opções sociais e culturais, direcionam segundo técnicas oriundas da própria cultura para o controle social. Disto decorre um evidente risco: o de imaginar que o progresso técnico produza por si mesmo um desenvolvimento humano e social.

Geralmente não se explicitam os pressupostos das normatividades tecnológicas que não apontam o tipo de sujeitos, de sociedade e de projetos culturais que querem desencadear. Portanto, uma grande e vistosa parafernália de TICs no ambiente escolar não significa que automática e necessariamente ocorram avanços educacionais porque além da apropriação e do domínio das TICs, supõem-se que professores queiram usá-los para despertar pessoas livres e responsáveis e não apenas uma grande homogeneidade de seres subservientes, atrelados a grupos de controle.

                       BIBLIOGRAFIA

BARRETO, Raquel Goulart. Tecnologia e educação: trabalho e formação docente. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v25n89/22617.pdf
BITTENCURT, Renato Nunes. A sociedade de controle e seu indiscreto olhar normativo. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/094/94bit
CHAVARRIA, Fátima. A Importância das TIC no Processo de Desenvolvimento Curricular. Disponível em: http://elisacarvalho.no.sapo.pt/pdf  
CHAVES, Eduardo. Tecnologia da Educação: conceitos básicos. Disponível em: http://pt.shawong.com/social-ciences
ESTERHUYSEN, Anriette. A Sociedade da Informação de quem? Disponível em: http://unesdoc.unesco.org.
FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso (trad. de Edmundo Cordeiro e Antônio Bento). Disponível em: http://pt.scribt-com.doc/2520353
LOPES, Gills. A Cibersociedade anárquica: análise do uso das TIC nos conflitos internacionais do século XXI à luz da Escola Inglesa de Relações Internacionais. Disponível em: http://www.mundialistas.com.br    
LOPES, Ruy Sardinha. As TICs e a Nova economia para além do Determinismo Tecnológico. Disponível em: Doc838(As TICs e a Nova Economia para além do Determinismo Tecnológico).pdf - Adobe Reader
PELAEZ, Víctor. Biopoder e regulação da tecnologia: o caráter normativo da análise de risco dos OGMs. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/asoc/v7n2/24692/pdf
RIVAS, Teobaldo. Docência no ensino superior e tecnologia. Disponível em: http://teobaldorivas.com/2011/05/17
Teorias normativas da estrutura dos media. In: Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Ed., 2003 – 2011. [Consult. 2011-07-15]. Disponível em: http://infopedia.pt/$teorias-normativas-da-estrutura-dos-media  




[1]  Texto já disponível no site das Faculdades La Salle de Lucas do Rio Verde – MT.
[2]  A Tecnologia constitui o acervo de tudo quanto se inventou com artefatos técnicos e métodos capazes de estender a capacidade física, sensório-motora e psíquica com vistas a facilitar o trabalho e as relações interpessoais. A Tecnologia em Educação é mais ampla que a informática e a sala de aulas, pois envolve a conexão da informática com a Internet, o que a alarga com a acessibilidade ao rádio, televisão, vídeo, cinema, etc.
[3]  No livro a Ordem do Discurso, p. 2
[4]  Idem, p. 10.
[5]  Por isso Focault escreveu que “penso que, através do ódio que o povo tem da justiça, dos juízes, dos tribunais, das prisões, não se deve ver apenas a idéia de outra justiça melhor e mais justa, mas antes de tudo a percepção de um ponto singular em que o poder se exerce em detrimento do povo” (p. 44).
[6]  Será, pois, de suma importância perceber que, no âmbito das TICs, como em tantos outros âmbitos da organização humana, existem donos e controladores de políticas e de normatividades.

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