quinta-feira, 10 de março de 2016

Autocrítica das madrugadas



            As madrugadas, ocultam, revelam e desmantelam. Podem esconder procedimentos e intimidades, podem revelar extravagâncias e excentricidades, e podem revelar monstruosidades, patologias e obsessões de mentes perturbadas.
            As madrugadas também podem ser poéticas e inspiradoras, reconfortantes e reconciliadoras. O entorno escuro ou iluminado pode também permitir a percepção do que a consciência registrou com emoções mais intensas: algumas vezes são alegrias e surpresas; outras vezes, são dores assimiladas e superadas; por vezes, também latejam fortes as mágoas e as incapacidades de aceitação de fatos desagradáveis. E, vez por outra, aparece a agradável recordação de momentos gratos, alegres, edificantes e inspiradores que até dispensam o sono.
            No evangelho de São João (8,1-11) consta uma descrição muito interessante: Jesus tinha ido rezar no monte das Oliveiras e, de madrugada, foi ao templo, onde encontrou muita gente. É, o texto fala que foi de madrugada. Fato, ou simbólico, ou, no mínimo, intrigante! Mas, lá também encontrou uma cena pouco comum para um lugar religioso, com pessoas piedosas e, naquele horário: o julgamento de uma mulher encontrada em ato de adultério.
            Dois fatos relevantes: o procedimento da mulher e o procedimento dos bons, que, em vez de dormir ou rezar, estavam bisbilhotando a vida alheia e, com ares autoritários tramando, no lugar de encontro com Deus, a morte daquela mulher, por merecido apedrejamento. Jesus, diante do desejo de obtenção de aval condenatório por parte dos presumidos bons piedosos, declarou que se alguém não tivesse nenhum pecado, poderia atirar pedra naquela mulher. Veio uma surpresa: ninguém atirou pedra e nem Jesus a condenou, mas, despediu-a com um pedido: “de agora em diante, não peques mais!”.
            O episódio permite entender uma novidade da parte de Jesus Cristo: deu ocasião para que uma mulher adúltera se tornasse mulher de fé, e, com o despertar de extraordinária capacidade para construir algo novo. Isso abre uma perspectiva para qualquer pessoa capaz de reconhecer seus limites, resultantes de ambientes sociais ou de maldades interiores: também ela, pode irrigar a vida com outras riquezas e gestar algo que vai além do desfrute de pessoas e da contravenção das regras estabelecidas.
            Nossos dias correspondem a uma intensa e estimulada visualização do reflexo produzido pelo espelho, capaz de produzir tantos narcisistas a contemplarem intensamente os detalhes de sua própria beleza fascinadora, quanto dos inovadores retoques para facilitar a persuasão de outras pessoas em razão de desejos bem variados. Entretanto, tais dias de tantos espelhos e de tantas buscas de reflexos especulares, ainda não significam capacidade de autocrítica para ponderar sobre a coerência dos procedimentos pessoais e comunitários, sobretudo, dos religiosos.
            Enquanto muitos cristãos – apresentados como membros de famílias bem constituídas - fazem campanhas contra algumas pecadoras públicas, traem suas palavras, seus pactos e seus blocos familiares e, nas madrugadas das noites ou dos refúgios, usam e abusam de outras, sem lhes dar a mesma atribuição. Quer na intimidade afetiva, quer nos negócios, ou nas transgressões dos próprios limites do corpo por excesso de comidas e de bebidas, vivem de aparências falsas, como tantos corruptos do governo a iludir o povo da nação.
           


            

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