quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O peso enfadonho das leis



            Bem sabemos do peso do “sim” e o do “sim, Senhor!”. No entanto, temos que lidar todos os dias, com o desconforto dos inúmeros “nãos”. Uns, pela palavra; e outros pelos gestos ou pela linguagem não verbal. O pior é que tende a aumentar a incidência de muito “sim”, que, na prática, significa um escancarado “não!”, ou mera protelação do que é prometido.
            Basta observar uma criança: o quanto requer de insistentes repetições de “nãos” para que venha a apresentar elementares indicativos de que aprendeu a respeitar limites e assegurar mais integridade à sua vida. São milhares de “nãos”, exaustivamente repetidos, que se fazem necessários para que ela aprenda a repartir, a respeitar, a conviver e a colocar-se no lugar de outras crianças, a fim de se tornar suportável nas primárias condições de tolerância em torno dos brinquedos e dos atos de beber, comer e constituir-se referencia de afetos e admirações menos egocêntricas.
            Igualmente sabemos que as leis são sempre ambíguas. São criadas e implantadas para resolver problemas de convivência e, geralmente, a partir de práticas ou intuições que foram exitosas em ocasiões e momentos que já passaram. Todavia, como a sociedade muda constantemente, e, a cada dia se torna diferente dos momentos que ensejaram a implantação das leis, estas tendem a ficar obsoletas e a facilitar vantagens aos legisladores ou a grupos de maior poder de barganha, que se impõem sobre os demais, e fazem prevalecer leis que favoreçam suas próprias ambições, muitas vezes, meramente ideológicas. Por isto, sempre se evidencia a pergunta paradoxal: leis de quem; para quem; e, por quê?
            Os fracos e perdedores precisam inevitavelmente resignar-se com os “nãos”, mas, nem todos se conformam à submissão das leis dos mais fortes, e partem para vinganças e agressões verbais e até físicas. Neste vai-e-vem, a inadequação das leis estabelecidas força grupos a fazer vigorar outras leis, não explicitadas oficialmente, mas, que lhes favoreçam maior alcance de seus interesses. Nisto, porém, já despertam reação contrária por ferir, inevitavelmente, interesses de outros grupos ou pessoas. Trata-se de briga a enrodilhar-se numa espiral que não tem fim.
Se a alegria e satisfação de alguns, na apelação às leis jurídicas estabelecidas representa vitória, êxito e conquistas, o fracasso e a derrota dos outros, vai despertar-lhes imediatos mecanismos e procedimentos de revide, que, em casos mais extremos, implicam na eliminação da vida dos adversários vitoriosos.
Como o jogo de emulação na exploração das leis ou, na melhor e mais astuta artimanha valer-se das lacunas ou detalhes ambíguos e de omissão contidas nestas leis, estas tendem a favorecer vitórias, não pelo certo, verídico, reto e bom procedimento, mas pela astúcia dos argumentadores, que, por sua vez, já não agem segundo o idôneo juramento da sua profissão, mas, pelo que rende mais dinheiro.
 Neste deslocamento, vemos referendar-se a constatação de que toda violência gera outra violência. Não convém, tampouco, induzir os perdedores a apelar aos poderes divinos e superiores, sob o pressuposto de incumbir o próprio Deus para que efetive uma vingança honrosa e capaz de humilhar quem triunfara.
 E quantos pregadores invocam vistosas e revanchistas vinganças da parte de Deus, com olhos fitos em inimigos personificados, que estariam agindo sob os impulsos do Maligno. O diabo passa, assim, a constituir-se na vítima expiatória dos desencontros da fragilidade humana e da exploração dos magoados perdedores.
Ainda em nossos dias, repete-se antigo dilema que Jesus Cristo enfrentou diante do esvaziamento das ainda mais antigas regras ético-religiosas dos “Dez Mandamentos”. Ao perceber que o legalismo de longos séculos lhes acrescentara mais de seiscentas outras regras, a fim de não se perder nada da precípua riqueza religiosa e humana destas dez regras, acabaram todos estes acréscimos, - com as dez leis, - se prestando muito mais para frear, coibir e imobilizar, do que para promover elementares gestos humanitários.
Jesus Cristo tocou, sem rodeios, no âmago da questão: se as regras não partirem do coração, não solucionam em nada as fraquezas humanas.
 Em nossos dias o místico alemão Anselm Grün costuma salientar que os cristãos não carecem de espiritualidades do “alto”, a dos poderes, dos desejos, das ambições, das conquistas, mesmo precipuamente religiosas, e que leva a insistentes apelos de rezas, de novenas, de promessas, de discursos inflamados, e, muita conversa fiada, - mais persuasiva do que as antigas apelações sofísticas, - com o intuito de dobrar Deus sobre suas vontades, e, com aquele ar de finalmente tê-lo superado, enfim, receber o atendimento do que insistentemente lhe fora solicitado. Contudo, não rezam nada para serem melhores em seus procedimentos, nem para sanar os múltiplos problemas subjetivos.
O referido místico indica o caminho da espiritualidade de “baixo”, - o caminho mais coerente ao de Jesus Cristo, - que remete a lidar com a fraqueza interior, experimentada lá nos porões da intimidade, na miséria humana que ali se manifesta, pois, somente ali, neste âmago de incontáveis limitações e incoerências, é que se encontra aberta a porta do Senhor e que permite pedir uma ajuda a fim de ajustar aquela bagunça toda e que impede que o coração fale mais alto do que os problemas, as decepções, os desencontros, os deslocamentos, as projeções e as neuroses.

Lei do coração é um belo itinerário para um caminho místico, pois pode levar-nos a agir muito mais em torno da vida e suas anelantes manifestações do que em torno de questiúnculas relativas ao que pode, e, que não pode ser feito. Há acentuada tentação de explorar pessoas e a infantilizá-las pelo atrelamento de leis meramente cerceadoras de pretensos salvadores em torno do que os súditos devem ou não devem fazer. Amor, fraternidade, sinceridade e solidariedade, implicam em passos para além das leis, sejam explícitas ou implícitas, públicas ou não codificadas em textos legislativos.

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