quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A fé poderosa de dona Benta



Com o código genético recheado de primariedade espanhola, dona Benta, volumosa e ciosa do seu patamar espiritual, é, no entanto, bem mais ágil do que a cobra “Bico de Jaca” para erguer a cabeça e, do alto dos seus exotéricos poderes espirituais, saltar para desferir um bote certeiro de condenação de tudo quanto considera inferior às divinas leis espirituais.
A língua da dona Benta, muito mais versátil que a da perigosa peçonhenta, consegue prender, na rapidez dos movimentos, o olhar das vítimas e hipnotizá-las para uma imobilidade de apenas acatar as ditas “verdades verdadeiras”.
Distante da memória do homônimo São Bento, que ficara conhecido e muito lembrado pela expressão “Ora et Labora” (Reza e trabalha), dona Benta preenche seus dias com devoções. O nome que lhe fora auferido no batismo, certamente representou a melhor adequação do que seus pais desejaram a seu respeito. Na vida real e efetiva, entretanto, dona Benta pendeu para outro caminho de piedade diverso da tradição. Trata-se de uma piedade sem espiritualidade, e, ineficaz para movê-la na vida como discípula de Jesus Cristo, porque enveredou para uma espiritualidade balofa, exterior, mágica e arrogante, donde dispensa as mediações apontadas por Cristo.
O nome da dona, por outro lado, combina perfeitamente com seus rituais cotidianos de muitos gestos, de genuflexões, de inclinações, benzeduras e de outros múltiplos malabarismos rituais diante do televisor, a fim de captar toda a riqueza da bênção que o padre Robson emite em suas verborragias televisivas e, com aquele ar de resignado e parcimonioso servidor, humildemente solícito e pronto para fazer o que o divino pai eterno lhe pede: abençoar a água que os devotos colocaram sobre os televisores, a fim de que eles possam sorver aos ínfimos e pausados goles aquele precioso néctar divino, e assim, captar toda a plenitude das forças dos mais escondidos segredos dos altos céus, contidos nesta generosa dádiva da oferenda divina.
 Junto com os rituais de ambíguas apelações religiosas, sempre vêm discretamente explicitado o que o divino pai eterno espera em troca do seu gratuito e espontâneo procedimento milagroso: que os fiéis agraciados com a água abençoada façam generosas doações, tanto quanto lhes é possível, em favor da construção da sua nova e futura residência, logo ali, no santuário de Trindade. Porventura, não estaria ele, o divino pai eterno, sendo merecedor da melhor residência deste paradisíaco “berço esplêndido” que é o Brasil?
Em troca da benfazeja oferta em favor da merecida e suntuosa residência, ele, o divino, já adianta algum sinal de cortesia, - o que já deve ter aprendido com políticos brasileiros – e deixa escorrer meloso como o mel sobre as barbas do novo profeta, a prateada água que faz borbulhar milagres de dar inveja aos outros que não sorvem estes preciosos goles impregnados de virtualidades espirituais, mas, fortes como torrentes de águas caudalosas. Tudo isto, contido num copo de água, deixado sobre o televisor.
Afinal, não mereceria tal benemerência divina também uma proporcional fartura de rituais, de piedosas inclinações, de genuflexões e malabarismos de gestos, a fim de solenizar a degustação prazerosa desta essência exotérica de milagres e graças?
A torrente de irradiação dos estupendos poderes divinos e milagrosos, que atalham os outros penosos caminhos da fé daqueles que, no discipulado de Jesus Cristo desejam encontrar alento, motivações e as mínimas forças para ainda apostar num mundo melhor, promove dona Benta a tão fácil e fictício poder superior.
Por presumir-se privilegiada neste caminho emotivo, fácil e intimista, dona Benta se constituiu a si mesma no patamar hegemônico da espiritualidade da comunidade católica. É, no entanto, uma espiritualidade que a torna vaidosa, cheia de si mesma e gulosa, a ponto de propiciar um estranho visual, uma vez que seus óculos se parecem a uma pequenina fresta na parede e salientam sobre os avermelhados pômulos faciais, a aparente fissura, por onde dona Benta visualiza tudo o que se passa no derredor. Este olhar escondido indica, todavia, uma analogia dos antolhos que limitam sua visão, porquanto enxerga tudo pela frincha fixa que propicia, apenas e inevitavelmente, a mesma visão parcial: tudo o que é novo e diferente do que pensa, está errado!

Sob a aparente, santa e piedosa enlevação divina, dona Benta desperta nas pessoas mais sentimentos de consternação do que de encantamento pela leveza do seu coração. Afinal, poderia viver mais feliz, dar-se bem com os filhos e com a vizinhança. Nas suspeitas sobre dona Benta persiste uma dúvida: será que ainda chegará um dia a persuadir-se de que pode trilhar um modo de vida bem mais simples e bem mais humana, capaz de transluzir a premonição de “um novo céu e de uma nova terra” e não apenas o cego obstinado poder?

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