quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A histriônica enrustida



            Há quase quatro décadas atrás o saudoso sociólogo Dr. Pe. Ernesto Goeth, admirado professor da PUC de Porto Alegre, costumava alertar aos que viessem atuar em ambientes sociais para que tivessem muitas e especiais precauções na lida com mulheres histéricas, muito mais comuns do que se imaginava. Seriam pessoas altamente tinhosas para infernizar a vida.
            Na época, dona Fidência, vivendo a crise psico-social da proximidade dos cinqüenta anos, mesmo com marido e filhos adultos e casados, constituía um exemplo de quem sabia tumultuar exaustivamente a vida do então pároco no bairro Passo das Pedras, padre Roberto. Mesmo que todos a definissem como histérica, não deixava de provocar verdadeiros sururus por todo lado.
            Por mais que padre Roberto a mandasse seguidamente para o quinto dos infernos, voltava todo dia e, diversas vezes ao dia, para falar com ele. O pouco que se podia saber destes encontros eram os gritos do padre ameaçando chamar a polícia ou de mandá-la a coices para fora da sala. Nada dava efeitos eficazes, e, toda vez que a campainha tocava a imaginação já indicava quem era.
 Dona Fidência não dava sossego de forma alguma ao corpulento careca padre Roberto. Como católica praticante, dona Fidência foi paulatinamente descobrindo táticas mais sutis para provocar o padre e deixar sua careca ruborizada de incontida raiva.
Certo dia, em plena celebração, dona Fidência foi sentar-se na parte central do primeiro banco, e ali ria e se mexia para todo lado a fim de chamar a atenção do olhar do padre sobre si. Ao perceber que ele a olhava com mil censuras, puxava a saia para cima das pernas e as abria escancaradamente para os lados e, com um detalhe, sem roupa íntima.
            Com a testa ainda mais ruborizada, padre Roberto, depois dos repetidos procedimentos similares de dona Fidência, pediu para que alguns homens a retirassem daquele ambiente. Chegando à porta, desvencilhou-se dos acompanhantes e saiu correndo rua afora e gritando por socorro, com toda a potência dos seus gritos, sob a alegação de que o padre quis estuprá-la... Na celebração seguinte, voltou ao mesmo lugar e, depois de iniciada a celebração, puxou da bolsa uma lâmina de barbear e se cortou os pulsos para chamar atenção tanto do padre quanto dos outros e merecer o necessário aporte para ser levada rapidamente a um pronto-socorro. Repetiu a cena muitas outras vezes, mas sempre quando estava segura do atendimento imediato. Assim, a toda hora, ocorria alguma novidade envolvendo a dona Fidência.
            O andar da vida levou à efetiva constatação de que pessoas com dissociações mentais de fato conseguem tirar o sono, tanto pela astúcia de suas artimanhas, quanto pela maldade do que inventam. Esta labilidade emocional já recebeu diversas explicações desde as que partem do termo grego histeria, que significa útero.            
Num momento se pensava que disfunções no estágio uterino seriam as causas desencadeadoras dos sintomas clássicos de mudanças rápidas, afetando principalmente mulheres e envolvendo-as em posturas variadas como sonambulismo, paralisia, cegueira, dores intensas e excessiva sensibilidade às dores.
 Em outro momento observou-se que os fatores de predisposição à histeria teriam causas muito mais psíquicas do que físicas. Dependeria essencialmente de um tipo de ambiente de convivência de intensa repressão sexual. Sob este aspecto, estados emocionais conseguiriam levar o sistema nervoso a alterar suas costumeiras enervações neurotransmissoras e gerar sinapses com alterações de informação ao cérebro. Seria como pessoa alcoolizada ou drogada, que visualiza imagens não existentes, mas as visualiza como reais e objetivas.
            Outra peculiaridade da histeria, no entanto, é a manifestação histriônica, que foge dos tradicionais sintomas e leva pessoas a viver como se estivessem num palco, diante de uma grande platéia, e ali tivessem que vivenciar intensamente o papel encenado a ponto de exagerar exaustivamente, e, ao máximo, tanto na argumentação quanto na dramatização do que encenam.
            Na vida real a convivência com a proximidade de pessoas desta natureza dramatúrgica leva ao limiar da paciência: parece que todos os neurônios das histriônicas trabalham em sentido contrário ao das outras pessoas e levam estas pessoas a falar o oposto do que ouvem, a dizer o contrário do que pensam e a justificar essencialmente o inverso do que manifestam. Chamá-las de mentirosas, fofoqueiras, linguarudas, queixosas, falsas, traiçoeiras, lamuriosas e outra dúzia de termos qualificativos não abarca suficientemente os poderes perversos que exercem nos ambientes de convívio.
            Na cidade de Morocó, uma afamada histriônica, chamada Brunilda, vive intensamente os traços da dramatização e sabe como ninguém, colocar-se de vítima e, ao mesmo tempo, de atacante voraz e sorrateira para condenar tudo quanto não concorre à sua presumida megalomania, ou seja, como só pensa grandeza, nada é pequeno, nada é simples, nada é fácil e nem discreto. Em tudo há dramatização sangrenta; em todos os gestos há ameaças ao seu status, à sua função e ao seu bom nome.
Brunilda não é nenhuma artista de palco, mas, domina melhor do que todos eles o malabarismo encenador dos mínimos detalhes para transformá-los em fatos altamente trágicos e comoventes. Qualquer espinho tirado do dedo vira cirurgia de alto risco e de incontáveis imprevistos para além dos choques anafiláticos e das paradas cardíacas. As dores que alega suportar são de causar comoção efusiva e consternação contagiante. Ela, no entanto, não deixa de ser a heroína dos êxitos e da salvação do que estava na iminência de perder-se para sempre. Sabe elogiar seus atos e suas idéias, bem como seus atos heróicos, com incontáveis detalhes. Já que os outros não destacam seus méritos e suas conquistas, ela mesma os enaltece aos píncaros das mais altas benemerências e honras.
            Uma eventual remessa de dona Brunilda ao “quinto dos infernos”, com certeza, reverteria em procedimento decepcionante, pois, ao retornar, voltaria exaltando ainda mais seus megalomaníacos pendores e suas incontidas grandezas, e, o que seria pior, numa dramática encenação mostraria em detalhes como derrotou o capeta, e conquistou um lugar um pouco acima de Deus. Como não condoer-se com as dramaticidades megalomaníacas da dona Brunilda? Ai, que dó!

Nem a terapia do analista de Bagé, a de aplicar alguns “joelhaços”, daria resultado relaxante, porque, também neste caso, encontraria um novo enredo magistral para mais uma encenação de superação e de vitória brilhante.

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