sábado, 1 de fevereiro de 2014

Uma Constituição intrigante



            Da antiga herança bíblica, lembra-se, ainda hoje, uma grande Constituição, a promulgada por Moisés no alto da Montanha (10 Mandamentos), que desejava unir distintas tribos em torno de uma mesma meta: que elas se respeitassem e que fossem cordiais entre si, na difícil possibilidade de conquistar um chão para viver. O apresentador da Constituição desejava ardentemente o amparo de Deus para o êxito do grande sonho despertado naquelas tribos envolvidas.
            Junto com o acréscimo posterior de muitas outras leis, visando ratificar e alargar ainda mais e melhor aquela Constituição, vieram também deduções teológicas. Uma delas, e que ainda continua a impor-se diante das incontáveis outras Constituições promulgadas em nossos tempos, é a de que Deus abençoa pessoas com prosperidade material e com riquezas. Sem demora, evidenciou-se que pessoas pobres e estéreis constituíam um grupo de pessoas “malditas” por Deus e, por isso, elas ficavam relegadas à própria sorte, porque também a sociedade que se auto-interpretava abençoada, as excluía de sua convivência.
            Profetas, como Joel, tentaram despertar alguma pequena esperança naqueles considerados “malditos de Deus”. Apontavam que esta frágil esperança de amparo por parte de Deus, ainda poderia fomentar e fazer evoluir uma condição humana, na qual, eles também poderiam ser abençoados. Os profetas procuravam, igualmente, mostrar que até mesmo de pequenos e insignificantes grupos poderia gestar-se uma opinião capaz de subverter a teologia oficial da retribuição e da prosperidade material, como os mais evidentes sinais da bênção de Deus.
            Muitos séculos se passaram até que, novamente no alto de um monte, alguém apresentasse outra Constituição, não mais para os já presumidos abençoados, mas para as multidões dos “malditos” que não tinham voz e vez com ninguém. Tratava-se da promulgação da conhecida Constituição de Jesus Cristo (Bem-Aventuranças), altamente subversiva para os abençoados. Surpreendentemente, o promulgador desta Constituição inverteu o referencial dos abençoados, e chamou de felizes os grandes grupos humanos, classificados como “malditos”, porque neles constatou algo inusitado. Mesmo na exclusão social e, na pior pobreza, ainda manifestavam algo muito valioso em seu interior: contra tudo e contra todos, admitiam a esperança de que Deus, na verdade, poderia fazer algo para ajudá-los a terem vida mais digna.
            Como poderiam reagir os abençoados? Sabemos muitas coisas a respeito de como procederam diante daquela Constituição. O mais impactante foi que Jesus Cristo convidava estes “malditos” a serem protagonistas da implantação de uma mudança teológica e efetiva na organização da vida social. Poucos séculos de acirrada perseguição e difamação dos defensores da nova Constituição ficaram para trás e veio, gradualmente, a ratificação desta Constituição, porém, adaptada aos conceitos imperialistas indo-europeus e romanos de bênção. Dali para frente, a história registrada em livros, deixou fartos elementos de como este processo se desencadeou.
            Hoje, passados mais de dois mil anos da promulgação das regras subversivas de Jesus Cristo, não somente os principais artigos componentes da sua Constituição, mas, também a pessoa Dele prossegue sendo adaptada ao velho discurso teológico-religioso: mera fonte intimista de bênção e de acessos exotéricos para curas, milagres e muita conversa enganosa de prosperidade material! Tudo no mais lídimo processo de separação e de culpabilidade de quem não se submete aos ditames da bênção.
 Afinal, até mesmo as disputas acirradas e fanáticas em torno do aumento do rebanho – e como as “ovelhas” são disputadas! – revelam que na motivação do aumento das ovelhas salvas e abençoadas, subjazem interesses ambíguos de prosperidade material. Por outro lado, persiste e se alarga a antiga e crassa teologia que arrebanha mais para a prosperidade dos interesseiros do que por alguma motivação de discipulado segundo a constituição de Jesus Cristo a fim de envolvê-los na lida com a escancarada condição humana, tão injustamente contraditória sob a égide da bênção.
Sobra, pois, a esperança de que a milenar constatação de um “pequeno resto” com virtualidades de ainda demonstrar abertura de motivações para algo novo e diferente: lidar com um cotidiano extremamente difícil e se mover por sinceros desejos de ajudar na edificação de uma sociedade não mais dividida entre “abençoados” e “malditos”. A sensação, no entanto, é a de que os muitos “abençoados de Deus”, na verdade, - como pensam precipuamente e muito em si mesmos, - já não indicam esperanças, por tênues que possam evidenciar-se, para os malditos de nossos dias!
           



Nenhum comentário:

Postar um comentário

<center>ERA DIGITAL E DESCARTABILIDADE</center>

    Criativa e super-rápida na inovação, A era digital facilita a vida e a ação, Mas enfraquece relacionamentos, E produz humanos em...