sábado, 8 de fevereiro de 2014

A histriônica enrustida II



            Na fenomenal capacidade de dramatizar, dona Brunilda mostra-se muito além e acima do que acontece com as outras pessoas. Sob a aparente e introvertida moderação, as descrição das façanhas, levam-na, contudo a se assemelhar a um controle remoto de duas teclas: acionar uma delas, desperta sua falácia sobre doenças, bem como as correspondentes curas milagrosas; e, se for acionada a outra tecla, só fala de grandezas e megalomanias do que fez. Nelas, todavia, deixa transluzir o que se torna muito escancarado e evidente: sua histeria histriônica de dramatizar tudo além das medidas.
            Sob a eventual alusão de fato que venha a acionar a tecla da doença, dona Brunilda manifesta uma peculiaridade precípua: diante de qualquer informação ou comentário de alguém, relativo à doença ou enfermidade de outra pessoa, - seja internada no Hospital, envolvida num acidente, ou acamada em casa, - encampa imediatamente o assunto e envereda para a narrativa, com todas as minudências e intermináveis floreios, como lidou com esta inusitada enfermidade, de sintomas similares, mas, de efeitos ainda mais graves e de riscos muito mais amplos do que aquela informação mencionada.
Dona Brunilda entra rápida no auge da exuberância patética e desanda a descrever enfaticamente como seu caso foi do limiar entre vida e morte, e, o que é mais bombástico, como sobreviveu, graças a um pequeno detalhe, aparentemente secundário, e que até o presumido médico, o melhor que se conhece na área, interpretou como o mais lídimo e espetacular milagre do qual tem conhecimento.
            A voz de dona Brunilda chega a ficar embargada quando passa a narrar cenas e ocorrências fantasiosas, abundantes lágrimas vertem dos olhos e seu semblante vai se ruborizando gradualmente até acabar em momentos de choro, porém, misturados com a efusiva conversa, solta, fluente e impregnada daquele ar de comoção de quem, na verdade, está apenas querendo embasbacar através da mendicância de afeto e atenção.
            O desencadeamento das descrições mirabolantes em torno dos imprevistos, dos detalhes e dos contratempos ocorridos na tragédia de dona Brunilda, costuma não apresentar espaços para uma eventual interlocução. O assunto somente pode vir a ser interrompido com o a introdução supina de outra conversa: como a de perguntar algo de outro tema, ou para desculpar-se com a menção de outro assunto antes de esquecê-lo, ou ainda, para alegar a necessidade de ir rapidamente embora a fim de atender outro compromisso urgente. Enquanto isso, a histriônica prossegue a narrativa de pelo menos mais um detalhe dramático do extraordinário episódio ocorrido com ela.
            O impressionante das ladainhas descritivas dos casos de enfermidade, é que as poças de sangue são sempre maiores do que a quantia total que poderia circular pelas veias da pessoa envolvida. Assim, dona Brunilda mente de forma altamente escancarada e realmente consegue confundir e persuadir as pessoas a ponto de levá-las a acreditar que suas descrições sejam pelo menos parcialmente verídicas. Nestas enrustidas manobras chama atenção de qualquer forma: ou pela compaixão e complacência que procura atrair sobre si com a dramaticidade dos sofrimentos, ou ainda pela forma como foi prestimosa e humanitária na prestação de serviço que salvou e que curou as pessoas das quais fala. É o chá que ela fez; é o comprimido extraviado que achou por um acaso, ou a técnica que utilizou no procedimento.
            Certo dia, acometida por um panarício no dedo indicador, fez este dedo tornar-se ao longo de muitas semanas o único e central assunto de suas conversas e gerar certa consternação e empatia coletiva da comunidade. Com o dedo envolto em fartas ataduras, sabia dona Brunilda, como somente ela, explorar o universo escondido e misterioso sob aquele curativo e recontar os incontáveis imprevistos decorrentes desta pequena faceta do dedo: desmaios decorrentes das dores insuportáveis, entradas em coma; inúmeras cirurgias, remoções a Unidades de Tratamento Intensivo e a transferência para, finalmente, com os melhores médicos da capital, ser milagrosamente desviada da morte iminente.

            

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