quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

VOCAÇÃO E AUTOATRIBUIÇÕES




            Em tempos de farta exploração de caminhos exotéricos para acessos especiais a vantagens raras auferidas por Deus e privilegiadas pela sua particular afinidade com o senhor das graças Deus, não faltam os que se sentem superiores devido às informações precípuas que lhes estariam sendo concedidas por Deus ou pelo Espírito Santo. Sobretudo no Movimento carismático, multiplicam-se cada dia mais os casos em que as pessoas narram a respeito de como o Espírito Santo lhes mandou tomar certos procedimentos e lhes disse o que falar para outras pessoas. Tais procedimentos parecem pender mais para o alargamento de arrogantes presunções de que o Espírito Santo estaria a lhes conceder informações privilegiadas. Por isso repetem que “Ele me mandou dizer”...
            Primeiramente, tal quadro levanta aquela dúvida que Emmanuel Kant já fez há séculos passados, em relação à moral heterônoma: é realmente Deus ou o Espírito Santo que falam tais coisas? E porque só para alguns, quando Jesus pregava a proposta de um povo sacerdotal... Quando as ditas inspirações são tão banais e tão eivadas de senso comum, emerge a evidente desconfiança básica: não teriam sido meramente estratégias de uma auto-atribuição, feitas por alguém que quer se afirmar sobre outros, e que recorre ao falacioso argumento de que o Espírito Santo mandou dizer isso e mais aquilo, ou tomar estes ou aqueles procedimentos. Tudo indica que se trata de mero recurso apelativo para afirmar poder sobre outras pessoas.
            E o que seria, então, uma vocação, ou um chamado de Deus? Certamente é possível que Deus possa interpelar-nos para algo valioso e importante na vida, através de vozes advindas de estados mórbidos, de sonhos e até de alucinações.
            Do pouco que entendo de vocação, creio que se trata sempre de um chamado vago e duvidoso, mas, que pode amadurecer uma resposta provisória. Certamente nunca será confirmação imediata, categórica e absoluta, mas vai requerer, ao longo do tempo, uma renovação das motivações para manter-se fiel à resposta inicial. Igualmente se farão necessárias muitas conversas para amadurecer as interpelações iniciais e lhes dar consistência ao longo dos anos e da vida.
            Uma apelação triunfalista mágica tende a explorar a vocação como algo privilegiado, concedido com pompas e méritos especiais a algumas pessoas, muito seletas, abençoadas, e muito agraciadas por dotes especiais. Se realmente fosse assim, não deveríamos estar presenciando tantos casos contraditórios de vocacionados especiais, e que ostentam na vida real, condutas nada condizentes com a função que exercem. Sob a fantasiosa atribuição de um chamado muito privilegiado por parte de Deus, muita gente esperta ostenta a fragilidade comum do mais crasso nível de pecados.
            O que se espera de um chamado, é que possa tornar-se uma resposta que gradualmente se aprimora para o exercício mais adequado e eficaz do serviço ao qual alguém se sentiu chamado. Portanto, vocação parece não rimar bem com poder, precedência e fama crescente, mas, se aproxima mais com a perspectiva visionária, profética, e do serviço para que a convivência humana possa tornar-se mais edificante e menos opressora.



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