sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Perfil teológico-pastoral do Papa Francisco


 João Inácio Kolling
PERFIL TEOLÓGICO-PASTORAL DO PAPA FRANCISCO


Introdução

            O que transparece de inusitado no modo de ser e de falar do nosso Papa Francisco?
            É nítida a diferença se comparado aos dois Papas que o antecederam, não apenas por questão de traços de personalidade, mas, sobretudo pela notável diferença do papa Francisco em termos de motivações, muito mais focadas na prospecção da Igreja, do que no seu legado histórico e teológico.
            Esta mudança de perspectiva deve contar, evidentemente, com pressupostos que fogem dos parâmetros tradicionais de reflexão teológica-pastoral a este que foi nomeado para animar este momento histórico da Igreja Católica.
            À parte das questões de simpatia, o Papa Francisco surpreende por uma capacidade muito genuína, peculiar e original na animação da Igreja católica. Mesmo lidando com contrariedades cotidianas, oriundas das inúmeras adversidades procedentes do âmbito da própria Igreja, algo também se torna notável: a espiritualidade lhe dá um elã de firmeza bem acima dos padrões do senso comum de espiritualidade desta mesma Igreja.
             Sabe-se que amplos setores da Igreja detestam o Papa por razões ideológicas muito variadas. No entanto, ele dá sinais evidentes de intuições profundas e capazes de mudar radicalmente a eclesiologia católica, enrustida sobre si mesma.
            Nosso Papa, como não poderia deixar de ser, é fruto de um entorno cultural, político, econômico, filosófico e teológico, aliado a um momento histórico e a uma peculiaridade da Argentina, ao lado de todo âmbito latino-americano. Deste suporte decorre o substrato da sua cosmovisão, da qual emergem riquezas humanas extraordinárias, mas, também, balizas que o orientam para a vida cristã de forma tão distinta daquela que foi insinuada durante os últimos séculos e explicitada pelos papas recentes que o antecederam.
            Desta diferença decorre uma curiosidade imediata: que perfil teológico-pastoral subjaz às intuições e à novidade do discurso do Papa? Seria a Teologia da Libertação? Ou algum ramo desta forma de fazer Teologia?
            No intuito de situar algumas rápidas noções sobre pressupostos teológicos do Papa Francisco, fugimos da linguagem rigorosamente acadêmica e científica, a fim de priorizar algumas noções que consideramos importantes na gênese do pensamento deste Papa e para destacar a sua fonte teológica, - com certeza, bem menos diabólica do que muitos católicos presumem, - mas, é precisamente desta fonte que resulta esta originalidade peculiar e a extraordinária capacidade profética para os tempos atuais da Igreja.

1 – A inusitada emergência do cardeal Jorge Mário Bergoglio como Papa da Igreja Católica

            A proeminência da figura do papa Francisco decorre especialmente da sua capacidade de ultrapassar o convencional, quer do sistema econômico mundial, ou da hermenêutica, ou das praxes e formalidades que a Igreja se acostumou a repetir, sobretudo, sobre si e sobre o mundo de suas condições.
            Tal capacidade intuitiva, também rende ao Papa uma vigorosa adversidade de grupos, organizados sob outros interesses teóricos, diversos dos que engendraram sua vida e seu modo de pensar, e, que, além do mais, não querem perder nem sua segurança e nem sua condição conquistada.
            O simples fato de não ser originário de lugar hegemônico do poder mundial, já surpreende. Basta lembrar que sua nomeação em 13 de março de 2013, revelou um fato inédito, pois, há mil e trezentos anos, não se nomeava um Papa não europeu.
            O primeiro aspecto impactante de Jorge Bergoglio, ao ser nomeado Papa, foi o da escolha do nome Francisco. Muito mais do que o nome, Francisco reportava a alguém que causou um fenômeno extraordinário na Igreja católica – há quase um milênio atrás - ao fazê-la perceber que a dimensão mais importante a ser produzida no discipulado de Jesus Cristo não era a do minucioso escrúpulo da execução de piedades e devoções, mas, o de gestar fraternidade, o que enriqueceu a vivência cristã com a elevação do aspecto psíquico-afetivo. O estar de bem com as pessoas, configurou-se como mais importante do que executar escrupulosamente preceitos religiosos intimistas.
            Logo depois de empossado, o Papa surpreendeu com posturas emblemáticas: a humildade de pedir orações; e, de renunciar a morar no Palácio apostólico para residir na Casa Santa Maria, junto com outras pessoas. Ao lado destes procedimentos, também não se pode ignorar a escolha do nome, não ocorreu, certamente, por acaso: um religioso jesuíta, argentino, escolher o nome Francisco, fundador da ordem franciscana, constitui um referencial simbólico muito maior do que, à primeira vista se possa pensar.
            É preciso lembrar que, em torno do ano de 1200, momento histórico em que a Igreja perpassava sua fase mais negra de obscurantismo e formalismo exterior, Francisco de Assis abriu uma saída notável para a Igreja transcender aquele marasmo. Sob o conhecido lema “Paz e Bem”, ele enalteceu o itinerário da cordialidade, como característica central da relacionalidade entre as pessoas, e, nesta intuição ultrapassou a clássica forma da espiritualidade individualista, hierárquica, própria de uma sociedade decadente para lhe apontar um vigoroso processo de inovação.

1 - Da pedra ignorada que virou angular na Igreja

            É de conhecimento geral que o Papa Francisco veio da Argentina. Que mundo relacional e religioso estava vigente em seu tempo de formação?
            Bem sabemos que tendências totalitárias tentavam alargar seus domínios, tanto econômicos, quanto político-sociais e religiosos. E qual era a experiência marcante na América Latina e, mais especificamente, na Argentina?
            Não será possível entender este mundo fora do contexto global do Liberalismo expansionista e explorador, da reação do Socialismo de muitas correntes, como a do Marxismo, Leninismo, Trostkismo e de tantas outras vertentes como a de Gramschi, Althusser e outros.
            Ao lado da Filosofia clássica antiga, Platônico-aristotélica, bifurcada em muitos ramos, expandia-se o Tomismo no interior da Igreja católica e grandes convulsões a partir do pensamento filosófico moderno. Cada corrente queria, melhor que as demais, ser universal e captar com maior profundidade a explicação do que causava o agir humano, tanto coletivo, quanto pessoal. Neste jogo, muitos estudiosos conseguiram ponderar sobre aspectos realmente importantes da vida humana.
            Na América Latina, além do avanço das muitas correntes filosóficas advindas do continente europeu, havia um clima de inquietação diante de muitos procedimentos que incidiam sobre a América Latina. A análise marxista da sociedade era a que ia mais fundo na explicação do porque desta crescente desigualdade entre os seres humanos e com tamanhas crueldades de injustiça.
            Como Karl Marx se debruçou sobre esta questão da pobreza, chegou a uma conclusão impressionante, que aqui apenas menciono através de uma forma muito simplificada: os pobres são fruto de duas estruturas (a super-estrutura e a infra-estrutura). Exemplificando, o pobre estaria na condição do queijo com presunto, entre duas fatias de pão, e duas chapas quentes, a “de cima” e a “de baixo” estariam pressionando e “fritando” este queijo com presunto. O ferro de baixo equivale à infra-estrutura das condições de trabalho, como alimentação, higiene, tempo de trabalho, etc.; a chapa quente de cima, equivalente à super-estrutura, estaria constituída pela Religião, Escola, Estado e Ideologias, e funcionaria como alienadora das pessoas, pois, as levaria  a suportar a espoliação mediante promessas ilusórias de felicidade no céu e assim por diante, de modos que os indivíduos operários não estariam recebendo pelo trabalho que produzem, mas, apenas pelo sangue, músculos em desgaste, vegetando em vícios e na morte prematura por inadequada e insuficiente alimentação.
            A super-estrutura, devido à formação do psiquismo humano era vista como muito mais perversa do que a infra-estrutura. Resultado: se os pobres (queijo e presunto) aceitam este jogo, a injustiça humana nunca será superada. Seria também evidente, que a religião, no papel de esvaziar o miolo das pessoas com promessas ilusórias, não passaria de um ópio, isto é, uma droga que aliena as pessoas de seus valores reais, a fim de leva-las a vegetar neste submundo de exploração no trabalho e compensar-se na degradação de vícios.
            Imagina se cristãos e capitalistas liberais iriam engolir tal explicação! No entanto, esta análise social levou muitos latino-americanos a se darem conta de um dado elementar: onde são decididos os rumos dos povos latino-americanos?
             A constatação preclara que logo se evidenciou como notória, foi a de que o dedo indicador das ordens sobre a América Latina, não estava aqui neste continente, mas, ou na Europa, ou nos Estados Unidos.
            A conclusão lógica que resulta da constatação apontava logo a evidência: somos dominados, colonizados e espoliados, e, nesta condição, como podemos decidir qualquer coisa para nós e relativa ao nosso futuro e o dos povos desta América Latina?
            Esta enganação dos povos latino-americanos envolveria um fator de alienação e ilusão: aceitam continuar subjugados? Esta perversidade só se tornava viável devido a um deslocamento do foco das mediações de felicidade. Estaria funcionando um fetiche (significa, no aspecto psicológico, um desvio que leva uma pessoa a excitar-se diante de uma roupa íntima, sem, todavia, excitar-se com a pessoa real e completa), ou seja, adora-se algo secundário, que não mereceria adoração. Este objeto deslocado seria o capital, o dinheiro.
            Os verdadeiros valores humanos, ignorados e negados, estariam induzindo as pessoas a sonhar e a viver apenas em função do capital.  Neste quadro de espoliação que extorquia dos latino-americanos do que lhes era essencial, jamais seria possível a liberdade de escolha dos rumos, sejam políticos, religiosos ou de outra natureza.           Nasceria desta constatação a razão básica da necessidade de libertação deste jugo humano. A emergência da Filosofia da Libertação passaria a refletir precisamente sobre esta realidade, altamente injusta e desumanizadora. Para que latino-americanos pudessem decidir sobre seu futuro e seu modo de ser, necessitariam, em primeiro lugar, da soltura do jugo colonizador que lhes tolhia a liberdade de escolha e de ação.

2 - Pressupostos da Teologia da Libertação

            Das deduções da Filosofia da Libertação, muitos teólogos começaram a olhar a realidade latino-americana sob um olhar novo e uma sensibilidade de ter que fazer algo em favor deste povo sofrido.
            Embora execrado e condenado aos infernos, o modo de teologizar a partir dos referenciais da Filosofia da libertação, fez desta Teologia um aporte conta as explicações universalizantes da Teologia oficial da Igreja Católica, feitas sob a pressuposição de um lugar hegemônico, superior e único da Teologia, a fim de ponderar sobre as experiências religiosas locais.
            Como filósofos, teólogos, economistas  e políticos, analisavam e interpretavam os acontecimentos situados num ‘outro” lugar, - e, suas deduções eram necessariamente impostas a todo o âmbito humano, - a Teologia da Libertação encontrou nas raízes bíblicas do Êxodo e dos livros sapienciais a iluminação para agir a partir da pequenez da fragilidade do povo latino-americano a fim de ajuda-lo a traçar seu próprio rumo de vida. Evidenciava-se uma ação impreterível: inverter esta ordem estabelecida e libertar-se do moderno jugo que incidia sobre a América Latina, também no aspecto teológico. Afinal, porque somente valia o proveniente do eurocentrismo? Não poderiam existir outros centros, em distintos ambientes étnico-culturais, capazes de aprofundar as razões e as esperanças da sua fé em Jesus Cristo?
            Sob a sistemática acusação de estar veiculando o “comunismo” marxista soviético, tanto a Filosofia quanto a Teologia da Libertação, foram cerceadas ao silêncio, não somente pelo sistema político-econômico vigente, mas também pela organização da ideologia criada em torno do pensamento tomista no interior da Igreja, que se apresentava como via única de salvação e de fidelidade a Jesus Cristo.




3 – Um pensamento revolucionário

            Para o pensamento oficial tanto político-econômico quanto religioso, a Filosofia e a Teologia da Libertação foram rotuladas, sem demora, como subversivas. De fato, visavam uma subversão da ordem estabelecida, porque sob a centralidade do poder oficial, milhões e milhões de seres humanos estavam fadados a ter sua vida negada, não somente em seus direitos mínimos, mas, até ao direito de existir. Estavam fadados a terem que desaparecer de alguma forma, porque não interessavam em nada ao sistema acumulativo e centralizador do capitalismo selvagem que ambicionava alargamento progressivo dos lucros.
            A Teologia da Libertação, como a perspectiva teológica do Evangelho de Lucas, começou a ver os sinais e as interpelações de Deus a partir de uma inversão dos históricos lugares de ação de Deus: em Jesus Cristo, Ele tinha Deus tinha confirmado a inversão do arquétipo cultural e religioso clássico, convencido de que as coisas aconteciam de “cima para baixo” isto é, a ação de Deus sempre vem de cima. Dali decorreu toda uma vasta ideologia de enaltecimento dos poderes elevados, pois através deles é que Deus mais estaria agindo.
            A ação subversiva da Teologia da Libertação foi realmente a de pensar a Teologia de “baixo para cima” e a de ver que a verdade de Deus não estava nos textos oficiais, mas no amor, no movimento em favor de maior solidariedade entre os seres humanos.
            Desta leitura revolucionária de “baixo para cima” evidenciou-se, sem demora, o porquê, de um continente tão rico, ostentar uma população tão pobre. Na verdade, o pobre da América latina era pobre não porque o destino de Deus o deixou fadado a esta humilhante condição, mas, porque outro homem, similar, o espoliava. Viu-se que o aparato superior da Europa, iniciou numa data precisa: 1492, quando a Europa se viu livre das ameaças dos mouros e invadiu a América Latina. Os navios carregados com preciosidades extraídas à custa da exploração, e do genocídio de milhões de pessoas nativas com milhares de etnias, permitia a europeus, muito tempo para ócio, festanças e produção de pensamento; e os colocava em nível superior. O que era interpretado como quadro de atraso e de inferioridade constituía, na verdade, o lado avesso de uma mesma moeda. A riqueza e a opulência, de um lado, causavam a miséria humana e a negação do ser humano que aparecia no outro lado desta moeda. Eram seres humanos explorando outros similares para seu proveito e sua vantagem.
            Enquanto que algumas ramificações da Filosofia da Libertação penderam mais para as necessárias lutas armadas e de guerrilha, as únicas saídas que do ponto de vista sociológico se mostravam viáveis, a Teologia da Libertação, longe desta opção, optou pela revolução no sentido de subverter a ordem estabelecida, mas, não pela violência, e, sim, pela conscientização e pela mudança cultural. Nasceria dali a Filosofia do Povo, ou, a Filosofia da Cultura, da qual o Papa Francisco hauriu fortes e boas motivações para a sua ação pastoral.

4 - A Igreja sonhada pelo Papa Francisco

            Em muitas conversas o Papa deixou evidente o motivo do porque a Igreja católica motivar-se em torno da própria conversão, mais do que à conversão de outras pessoas, pois, sob este novo enfoque, a instituição Igreja teria que quebrar a forma mórbida de centralizar-se sobre si mesma, com obsessões em torno de tradições e liturgias e explicações filosóficas tomistas.
            O Papa Francisco entende que o Evangelho não pode constituir um recurso simplesmente próprio de uma ideologia que assegura o funcionalismo e o clericalismo de padres. No lugar desta tentadora e ferrenha defesa em favor do próprio engrandecimento, a Igreja teria que conversar com o mundo atual e sair desta “Psicologia de Príncipe”, meramente ornamental, a viver de bajulações em torno da precedência.
            Esta reviravolta do lugar para o Evangelho, também implica em necessária e profunda reforma da Cúria romana, cada dia mais tentada a fugir da simplicidade e da condição de gerir uma espiritualidade cristológica capaz de encantar o mundo. Ao invés disso tende a isolar-se no engrandecimento da sua própria jaula de presumida capacidade acima do bem e do mal.

5 - Uma “Igreja em saída”

            Pensar numa “Igreja em saída” remete de imediato, a duas perguntas: ir para onde e para fazer o quê?
            Como Francisco de Assis, o padre Jorge Mário Bergoglio (Papa Francisco) deve ter sentido que o caminho da Igreja deveria ser totalmente outro do que aquele que se delineava. Por isso, intuiu, de imediato, que a Igreja teria que fazer uma “saída de si mesma” e passar a colaborar para a salvação do planeta e a fomentar uma “globalização da solidariedade”, no lugar da “globalização da indiferença” e dos poderes pensados como universais para o controle mundial.
            O Papa também tornou largamente visível uma realidade que vinha sendo ocultada: a dos grandes genocídios, com milhões de migrantes, simplesmente ignorados. Acolheu uma família síria em sua residência e começou a sensibilizar o mundo em torno da necessária solidariedade com migrantes.
            Neste “ir para onde”, o papa Francisco já deixou muito evidente que é para as fronteiras humanas. Não as do status, nem da ascensão social e, menos ainda, da precedência no poder.
            Ali nas fronteiras humanas, onde brada a fragilidade humana, deveria a Igreja manifestar-se próxima, animadora, com serviços humanitários e com espírito revelador de uma grande misericórdia. Inúmeras vezes o Papa já repetiu que gostaria muito de ver uma Igreja dos pobres para os pobres.
                        Sob o encantamento da comunicação simples, cordial e direta do Papa Francisco, foi possível perceber, rapidamente, que sua linha de ação não era a de ratificar formalizadas precedências e, nem, tampouco, a de endossar o papel de praxes oficiais e pomposas do seu cargo.
            O efeito da Igreja “em saída”, expressão muito simpática, entretanto, implicaria em procedimentos de conversão radical: mudar a forma de empreender a missão evangelizadora e atuar nas “fronteiras da humanidade” em todos os sentidos, e, o que é mais exigente, que a Igreja seja mais “próxima do sofrimento e da exclusão social, do que da exclusão geográfica e física”. A Igreja teria que ser “pobre para os pobres”.
                       
6 – Um Papa revolucionário

            Na perspectiva do Evangelho a ação de Deus interpela para deslocar o que está em cima e em vez de promover o bem comum, o espolia e o suga para os seus próprios interesses. O Papa dá efetivos sinais de que quer recolocar o Evangelho no seu devido patamar: fonte de amor, de sensibilidade e de compaixão.
            Em razão do foco nas ações de Deus de “baixo para cima” o Papa aponta para outro cristianismo, porque este que se manifesta, e, da forma como se manifesta, não alarga a boa notícia do Evangelho porque realmente não amplia, ou amplia muito pouco os sinais do amor, da sensibilidade e da compaixão. Embora grandes parcelas da Igreja católica aspirem estas mediações por caminhos espiritualistas, intimistas e pela mediação de ritos mágicos, como essas absurdas celebrações de libertação e cura, o caminho proposto pelo Papa, é o caminho da mãe de Jesus: humilde, discreto e solidário agir em favor do bem comum.
            O Papa elencou duas listas de dificuldades que estão a entravar a efetiva “Igreja Católica em saída”: a dos sete pecados da Igreja e a das quinze tentações na Igreja. Estas listas são suficientemente claras para transluzir um diagnóstico do Papa relativo às resistências ao modo revolucionário de agir de “baixo para cima” no anúncio do Evangelho em nossos dias.
            Quanto às sete tentações, Papa Francisco salienta:
a)     Fraca espiritualidade: Oração fraca; só de alguns momentos; pouca vida interior; superficialidade espiritual. Disso decorre que vivem como se Deus não existisse; guiam-se pelo centralismo autoritário. Mesmo vivendo crise de identidade, desprezam pobres, são superficiais na pastoral, não expressam alegria e levam vida acomodada e fácil.
b)    Preguiça (ascédia egoísta): Andam folgados, sem motivação, fatigados e desiludidos e lamuriosos. Sem criatividade e ousadia, vivem a mesmice e a “tristeza melosa” sem esperança (o elixir do demônio!). Vivem a “psicologia do túmulo” que os torna “múmias de museu”. Reclamam de tudo e estão distantes do povo. São pessimistas estéreis, sem discrição e sem moderação.
            Sua maior ameaça é a do “pragmatismo cinzento pelo qual tudo é normal”; no entanto, a sua fé não passa de mesquinhez.
c)     Pessimismo estéril: Vivem como “profetas da desgraça” e, com “cara de vinagre”, pois, passam o tempo a lamentar-se numa ótica derrotista. Sucumbem com seus talentos na ansiedade e na lamúria.
            Vivem da sensação de derrota que os transforma em pessimistas lamurientos e desencantados.
d)    Isolamento da comunidade: Vivem distantes do povo e da comunidade, pois, escondem-se e livram-se dos outros. Também vivem desejando outro lugar! Isolados, priorizam o conforto, mas, acabam bebendo o “veneno amargo” que os fecha sobre si mesmos.
            Cultivam uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento. O complexo de inferioridade leva-os a esconder a identidade e as convicções. São infelizes e não se identificam com a missão.
e)     Mundanismo espiritual: Trata-se de uma tentação perversa que leva a usar Deus, a Igreja e o cargo, para se exibirem e se promoverem a si mesmos, movidos por desejos de glória. Apegam-se a seguranças doutrinais e disciplinares. Ao presumirem superioridade sobre os outros, controlam e se situam numa “elite especial”. São mundanos espirituais através de liturgias ritualísticas e exibicionistas com predomínio da vaidade.
f)      Ambiente de guerra: Vivem de brigas, ciúmes, invejas, contendas e geram divisões por questões de espiritualidade e de visão pastoral. São carreiristas, caluniosos, difamadores, vingativos, perseguidores e tendem a impor seu pensamento.
            Vivem em guerra, porque apenas almejam prestígio, poder, prazer e vantagem econômica. Isolam-se em grupos especiais. Não aceitam perdão e reconciliação.
g)     Omissão pastoral: Não se envolvem nas prementes questões em torno da mulher, do protagonismo dos jovens, do enfraquecimento da vida religiosa e da falta de atenção aos idosos.
            Sua entrega à Igreja é débil. Não são felizes e, tampouco, se identificam com a missão. Fogem de qualquer compromisso com vistas ao seu tempo pessoal, mas, acabam num desânimo que os paralisa. Falta espiritualidade capaz de mover à ação.

            Na abordagem dos grandes pecados, evidencia-se igualmente como o poder religioso “de cima para baixo” faz mal e distorce a razão de ser da Igreja.

                        Ante um grupo de eminentes e vistosos cardeais e presumidos rivais do    projeto de transformação da Igreja, o papa elencou os seguintes pecadores      merecedores de conversão. Primeiramente falou:
            “Seria bonito pensar a Cúria romana como um pequeno modelo de Igreja, como um corpo que cuida seriamente e cotidianamente de estar mais vivo, mais saudável, mais harmonioso e mais reunido com Cristo”. Mas, uma Cúria que não pratica a autocrítica, nem se atualiza, e tampouco trata de melhorar sempre, é um corpo doente. Em seguida, relacionou como pecados situações que impressionam por serem literalmente diversas das listas de pecados veiculadas nas orientações catequéticas e nas orientações espirituais de movimentos eclesiais da Igreja:
1 – A doença de se sentir imortal ou indispensável: Acomete os que se sentem superiores a todos e não “a serviço de todos”. Estes deveriam visitar um cemitério, e lembrar pessoas que agiram como se fossem imortais, imunes ou indispensáveis.
2 – A doença do excesso de trabalho: É própria dos que submergem no trabalho, descuidando da melhor parte, “sentar-se aos pés de Jesus”. Estes deveriam descansar um pouco, pois o descuido com o repouso leva à agitação e ao estresse.
3- A doença da fossilização mental e espiritual: Acomete os que se escondem atrás de pilhas de papel e se tornam “máquinas de práticas” em vez de homens de Deus. Perdem a capacidade de chorar com os que choram e de se alegrar com os que se alegram.
4 – A doença do excesso de planejamento: Embora seja importante planejar para fazer as coisas, não cabe impedir ou pretender dirigir a liberdade do Espírito Santo.
5- A doença da má coordenação: Acomete os que “perdem a comunhão com os outros” e se convertem em “orquestra que produz ruídos dissonantes, porque não vive o espírito de equipe”.
6- A doença de “Alzheimer espiritual”: Consiste na diminuição progressiva das faculdades espirituais, geradoras da perda de memória e do encontro com o Senhor. O apóstolo ergue ao seu redor “muros e hábitos, quase sempre imaginários” e se torna dependente de suas paixões, caprichos e manias.
7- A doença da rivalidade e da vaidade: Quando a aparência se torna o primeiro objetivo da vida!
8 – A doença da esquizofrenia existencial: Acomete os que “abandonam o serviço pastoral e se limitam a tarefas burocráticas, perdendo o contato com a realidade e as pessoas de verdade”.
9 – A doença da fofoca: É própria dos que não tem coragem de dizer as coisas abertamente e falam pelas costas das pessoas. Ao fazer isso, semeiam a discórdia, como satanás!
10 – A doença de divinizar os chefes: Própria dos que cortejam os superiores, são presos ao carreirismo e ao oportunismo. Vivem a serviço daquilo que querem obter e não do que querem dar ao próximo.
11- A doença da indiferença com os outros: “Quando só pensamos em nós mesmos e perdemos a sinceridade e o calor das relações humanas. Quando por inveja, ou astúcia, sentimos alegria em ver o outro cair, em vez de ajudá-lo a se levantar”.
12 – A doença da cara de enterro: Acomete as pessoas que consideram que, para ser comprometido e consistente, necessitam encher o rosto de melancolia e de dureza, assim como tratar os outros com rigidez e arrogância. Uma dose de humor saudável poderia fazer-nos um bem enorme.
13 – A doença da acumulação: Quando o apóstolo, para encher um vazio existencial em seu coração, só pensa em acumular bens materiais.
14 – A doença dos círculos fechados: Quando integram parte de uma panelinha se torna algo mais forte do que ser parte da Igreja como um todo e até mesmo ser um só com Cristo!
15 – A doença do prazer mundano: Quando o apóstolo transforma seu serviço em poder para obter mais proveitos mundanos e acumular ainda mais poder. São pessoas capazes de caluniar, difamar e desacreditar os demais para se exibirem e se mostrarem mais capazes do que os demais.

            Se este quadro de tentações e pecados é elucidativo para mostrar a dimensão visionária que antevê outra maneira de ser Igreja católica, o Papa Francisco, em outros pronunciamentos, também salienta outro entrave da Igreja para visibilizar-se “em saída”: problema sério e que requer profunda mudança no processo formativo que é o da autorreferencialidade de bispos e padres, meramente focados em seguranças doutrinais e disciplinares.
            Trata-se de um quadro que o teólogo João Batista Libânio identificava como “volta à grande disciplina” num escancarado processo integrista e de reação fundamentalista. Esta febre carreirista tende a valorizar excessivamente os cargos de prestígio e a influência através da facilidade que canonistas e moralistas encontram para serem promovidos a cargos de bispo ou de outras representações importantes da Igreja.
            Um dos efeitos visíveis da autorreferencialidade é o do avanço de padres e bispos no domínio do espaço da Igreja, através de grande exibicionismo litúrgico, com rituais mais para si mesmos do que para uma eficaz celebração litúrgica da assembleia dos agregados em torno de Cristo.
            Estes aspectos abordados pelo Papa Francisco já delineiam um vislumbre relativo a alguns pressupostos teológicos, que, em hipótese nenhuma, poderiam advir de um continente norte-americano ou europeu.
            Basta lembrar a reação polêmica e furiosa do cardeal norte-americano Burke, nitidamente encantado com a teologia oficial e fundamentalista, muito adequada à visão hegemônica do pensamento único para todos.


7 – A Teologia do Povo

            A expressão “Teologia do Povo” foi criada pelo teólogo uruguaio Juán Luís Segundo, mas, tornou-se divulgada e alargada em seu significado por outro teólogo, o argentino e jesuíta, Juán Luís Scannone.
            Enquanto o teólogo uruguaio abriu estradas a partir da Filosofia da Libertação, para direcionar a Teologia da Libertação fora dos parâmetros marxistas, Juán Luís Scannone também abriu estradas, mas, numa outra perspectiva de libertação.
            Scannone – que foi professor de Filosofia e de Teologia do Papa enquanto era estudante, tinha sua leitura teológica mais vinculada ao teólogo alemão Karl Rahner e à síntese do Vaticano II. Nasceria dali a defesa da enculturação da Teologia e a análise sócio-histórica-cultural, em vez de meramente social.
            Outra peculiariedade fundamental de Juán Luís Scannone foi a de utilizar o método VER-JULGAR-AGIR e não a análise marxista da realidade ou a análise oficial colonialista-expansionista. Por outro lado, enquanto a Teologia da Libertação tinha correntes que assimilavam o conceito “povo” pela condição de classe, a teologia de Scannone assimilava “povo” na perspectiva de nação.
            Scannone não assumiu a mediação sócio-avaliativa da Teologia da Libertação, mas, deu ênfase à práxis pastoral através da ética antropológica. Esteve muito alinhado com outro pensador brasileiro, Hugo Asmann, muito culto e tido como sóbrio e moderado da Teologia da Libertação.
            A Teologia do Povo de feição argentina foi especialmente alargada por outro jesuíta italiano na Argentina, Rafael Gera e o padre Raffael Tello. Desta forma a “Teologia do Povo” foi assumida pelos bispos da Argentina em 1969.
            Situada na perspectiva contra-cultural dos movimentos sociais da América Latina, o foco da Teologia do Povo era favorável às minorias culturais e que, pelo seu direito de existência, propiciava razões para teologias políticas plurais. Esta questão realmente gera uma cosmovisão antagônica em relação à Teologia tomista clássica, pois, enquanto a Teologia do Povo, como a da Libertação, desejavam vida para todos os povos desta rica América latina, a outra – a fundamentalista – fitava a todas as distintas culturas como passíveis de incorporação à sua noção de universalidade.
            Embora o Papa Francisco não tenha ficado restrito à Teologia do Povo, desencadeada na Argentina, esta forma de leitura teológica ofereceu-lhe um rico aporte humanitário e uma peculiaridade muito especial para antever uma saída edificante deste momento de transição na Igreja.
            Se a noção de povo, do modo como a Teologia do Povo na Argentina o pensava, já envolvia o pressuposto de que é um sujeito ativo e dinâmico e que os pobres constituíam seu centro, este quadro humano e religioso não poderia ser simplesmente negado e sucumbir no anonimato de um poder universal veiculado como superior, mas evidenciado como perverso, que se fortalecia sob o sangue de muitos milhões de vítimas expiatórias.
            Se o ponto de partida da Teologia do Povo era constituído pela práxis histórica de busca da transformação estrutural da sociedade, uma atinente reflexão e uma ação pastoral libertadora e política aconteceriam através da conscientização de pequenas comunidades de base (CEBS) e pelas mediações da capacidade de diálogo com a tradição e com as análises de mediação sócio-analítica.
            Assim, a Teologia, desde povos latino-americanos, valorizou eminentemente a mediação histórico-cultural sob a noção de cultura explicitada pelo documento conciliar Gaudium et Spes (parágrafo 53).
            O padre Rafael Gera salientava muito a perspectiva da sabedoria popular católica como capaz de ajudar as pessoas a discernir a relação povo-evangelização. Decorria desta noção a motivação teológica de não somente se efetuar transformação de estruturas sociais sem que elas incorporassem os pobres. Nasceria dali também a importante noção da “opção preferencial pelos pobres”, pois, afinal, melhorar as condições somente de alguns lugares e de suas pessoas, o que significaria para a grande maioria das pessoas roubadas e espoliadas?


8 – Como ecoa o substrato da Teologia do Povo nas falas do Papa?

            Em primeiro lugar, o Papa não se alinha com o poder hegemônico e dominante. Visita países e recebe visitas de altos mandatários, mas, resiste às forças que se revelam contrárias ao povo das imensidões humanas sendo humilhadas e negadas em seus direitos.
            O Papa acentua o papel transformador da noção de “habitante” em “cidadão”; e a inovação do conceito “povo” em “povo fiel” que, pela fé, resiste às forças dominantes que o espoliam.
            Assim, povo deve ser processo peregrino, rumo ao bem comum que incorpora a todos, bem ao contrário do processo dominador que submete e elimina quem não obedece.
            Se neste contexto, a Igreja quer ser portadora de uma mensagem de salvação, cabe-lhe, segundo o Papa, o dever, na fidelidade das experiências religiosas da Bíblia, do serviço para liderar processos históricos que promovam caminhos efetivos de libertação e ajudem a incorporar excluídos no destino comum, não para o humilhante desfrute, mas, para a elevação da cordialidade humana.
            Em decorrência, pode-se entender a crítica clara que do Papa faz ao sistema econômico que idolatra o dinheiro, e para tanto, nega emprego, condição básica à maior parcela do gênero humano.

            A fonte do vigor e da originalidade do Papa, não lhe advém apenas da Teologia do Povo, um ramo da Teologia da Libertação. Sabe-se que haure forças da literatura sapiencial bíblica dos séculos que antecederam a irrupção da proposta do Reino anunciado por Jesus Cristo, como dos Provérbios, Livro da Sabedoria e Jó. Nosso momento histórico apresenta características muito próximas daquele contexto, que esvaziou o significado dos rituais celebrativos e religiosos. Como naquele momento, um cego formalismo de exterioridades desprovidas da carga simbólica anula a capacidade de libertação de quem não conta na condição humana.
            O Papa também deve ter assimilado algo do escritor russo Dostoyeski, sobretudo na sensibilidade pela alma da condição humana.
            Tampouco se pode ignorar que o Papa Francisco carrega em si as essências valiosas do Concílio Varicano II, especialmente Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes, e a decorrente capacidade de diálogo e de “aggiornamento” que o levam a vencer a diabólica tentação do fundamentalismo essencialista.
            Por fim, também não se pode deixar de vincular a ação do Papa Francisco à espiritualidade inaciana e à pessoa concreta de Jesus, tanto pela palavra, quanto pela coerência no modo de vida.
            Uma ponderação sobre a proposta geral do Papa Francisco para a “Igreja em saída”, diante das últimas décadas de avanço vertiginoso e aparentemente exitoso do imagético religioso, não resta dúvida de que sua intuição tem muito mais perspectiva de futuro e de êxito do que esta que vem descambando em fundamentalismos integristas de saudosismo e de retorno à anterioridade dos tempos do concílio Vaticano II. Indica que na voz quase isolada do Papa, há muito mais perspectiva de construção do Reino de Deus pelas mediações da Igreja, do que neste liturgismo pomposo, emotivista, e mágico, no qual o sagrado já não interpela por algo, porque virou vulgar produto de compra e de consumo.

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