João Inácio Kolling
PERFIL TEOLÓGICO-PASTORAL DO PAPA FRANCISCO
Introdução
O que transparece de inusitado no
modo de ser e de falar do nosso Papa Francisco?
É nítida a diferença se comparado
aos dois Papas que o antecederam, não apenas por questão de traços de
personalidade, mas, sobretudo pela notável diferença do papa Francisco em
termos de motivações, muito mais focadas na prospecção da Igreja, do que no seu
legado histórico e teológico.
Esta mudança de perspectiva deve
contar, evidentemente, com pressupostos que fogem dos parâmetros tradicionais de
reflexão teológica-pastoral a este que foi nomeado para animar este momento
histórico da Igreja Católica.
À parte das questões de simpatia, o
Papa Francisco surpreende por uma capacidade muito genuína, peculiar e original
na animação da Igreja católica. Mesmo lidando com contrariedades cotidianas, oriundas
das inúmeras adversidades procedentes do âmbito da própria Igreja, algo também
se torna notável: a espiritualidade lhe dá um elã de firmeza bem acima dos
padrões do senso comum de espiritualidade desta mesma Igreja.
Sabe-se que amplos setores da Igreja detestam
o Papa por razões ideológicas muito variadas. No entanto, ele dá sinais
evidentes de intuições profundas e capazes de mudar radicalmente a eclesiologia
católica, enrustida sobre si mesma.
Nosso Papa, como não poderia deixar
de ser, é fruto de um entorno cultural, político, econômico, filosófico e
teológico, aliado a um momento histórico e a uma peculiaridade da Argentina, ao
lado de todo âmbito latino-americano. Deste suporte decorre o substrato da sua
cosmovisão, da qual emergem riquezas humanas extraordinárias, mas, também,
balizas que o orientam para a vida cristã de forma tão distinta daquela que foi
insinuada durante os últimos séculos e explicitada pelos papas recentes que o
antecederam.
Desta diferença decorre uma
curiosidade imediata: que perfil teológico-pastoral subjaz às intuições e à novidade
do discurso do Papa? Seria a Teologia da Libertação? Ou algum ramo desta forma
de fazer Teologia?
No intuito de situar algumas rápidas
noções sobre pressupostos teológicos do Papa Francisco, fugimos da linguagem
rigorosamente acadêmica e científica, a fim de priorizar algumas noções que
consideramos importantes na gênese do pensamento deste Papa e para destacar a sua
fonte teológica, - com certeza, bem menos diabólica do que muitos católicos
presumem, - mas, é precisamente desta fonte que resulta esta originalidade
peculiar e a extraordinária capacidade profética para os tempos atuais da
Igreja.
1 – A inusitada emergência do cardeal Jorge Mário Bergoglio
como Papa da Igreja Católica
A proeminência da figura do papa Francisco
decorre especialmente da sua capacidade de ultrapassar o convencional, quer do
sistema econômico mundial, ou da hermenêutica, ou das praxes e formalidades que
a Igreja se acostumou a repetir, sobretudo, sobre si e sobre o mundo de suas
condições.
Tal capacidade intuitiva, também
rende ao Papa uma vigorosa adversidade de grupos, organizados sob outros
interesses teóricos, diversos dos que engendraram sua vida e seu modo de
pensar, e, que, além do mais, não querem perder nem sua segurança e nem sua
condição conquistada.
O simples fato de não ser originário
de lugar hegemônico do poder mundial, já surpreende. Basta lembrar que sua
nomeação em 13 de março de 2013, revelou um fato inédito, pois, há mil e trezentos
anos, não se nomeava um Papa não europeu.
O primeiro aspecto impactante de
Jorge Bergoglio, ao ser nomeado Papa, foi o da escolha do nome Francisco. Muito
mais do que o nome, Francisco reportava a alguém que causou um fenômeno
extraordinário na Igreja católica – há quase um milênio atrás - ao fazê-la
perceber que a dimensão mais importante a ser produzida no discipulado de Jesus
Cristo não era a do minucioso escrúpulo da execução de piedades e devoções,
mas, o de gestar fraternidade, o que enriqueceu a vivência cristã com a
elevação do aspecto psíquico-afetivo. O estar de bem com as pessoas,
configurou-se como mais importante do que executar escrupulosamente preceitos
religiosos intimistas.
Logo depois de empossado, o Papa
surpreendeu com posturas emblemáticas: a humildade de pedir orações; e, de
renunciar a morar no Palácio apostólico para residir na Casa Santa Maria, junto
com outras pessoas. Ao lado destes procedimentos, também não se pode ignorar a
escolha do nome, não ocorreu, certamente, por acaso: um religioso jesuíta,
argentino, escolher o nome Francisco, fundador da ordem franciscana, constitui
um referencial simbólico muito maior do que, à primeira vista se possa pensar.
É preciso lembrar que, em torno do
ano de 1200, momento histórico em que a Igreja perpassava sua fase mais negra
de obscurantismo e formalismo exterior, Francisco de Assis abriu uma saída
notável para a Igreja transcender aquele marasmo. Sob o conhecido lema “Paz e
Bem”, ele enalteceu o itinerário da cordialidade, como característica central
da relacionalidade entre as pessoas, e, nesta intuição ultrapassou a clássica
forma da espiritualidade individualista, hierárquica, própria de uma sociedade
decadente para lhe apontar um vigoroso processo de inovação.
1 - Da pedra ignorada que virou angular na Igreja
É de conhecimento geral que o Papa
Francisco veio da Argentina. Que mundo relacional e religioso estava vigente em
seu tempo de formação?
Bem sabemos que tendências
totalitárias tentavam alargar seus domínios, tanto econômicos, quanto
político-sociais e religiosos. E qual era a experiência marcante na América
Latina e, mais especificamente, na Argentina?
Não será possível entender este mundo
fora do contexto global do Liberalismo expansionista e explorador, da reação do
Socialismo de muitas correntes, como a do Marxismo, Leninismo, Trostkismo e de
tantas outras vertentes como a de Gramschi, Althusser e outros.
Ao lado da Filosofia clássica antiga,
Platônico-aristotélica, bifurcada em muitos ramos, expandia-se o Tomismo no
interior da Igreja católica e grandes convulsões a partir do pensamento
filosófico moderno. Cada corrente queria, melhor que as demais, ser universal e
captar com maior profundidade a explicação do que causava o agir humano, tanto
coletivo, quanto pessoal. Neste jogo, muitos estudiosos conseguiram ponderar
sobre aspectos realmente importantes da vida humana.
Na América Latina, além do avanço
das muitas correntes filosóficas advindas do continente europeu, havia um clima
de inquietação diante de muitos procedimentos que incidiam sobre a América
Latina. A análise marxista da sociedade era a que ia mais fundo na explicação
do porque desta crescente desigualdade entre os seres humanos e com tamanhas
crueldades de injustiça.
Como Karl Marx se debruçou sobre
esta questão da pobreza, chegou a uma conclusão impressionante, que aqui apenas
menciono através de uma forma muito simplificada: os pobres são fruto de duas
estruturas (a super-estrutura e a infra-estrutura). Exemplificando, o pobre
estaria na condição do queijo com presunto, entre duas fatias de pão, e duas
chapas quentes, a “de cima” e a “de baixo” estariam pressionando e “fritando” este
queijo com presunto. O ferro de baixo equivale à infra-estrutura das condições
de trabalho, como alimentação, higiene, tempo de trabalho, etc.; a chapa quente
de cima, equivalente à super-estrutura, estaria constituída pela Religião, Escola,
Estado e Ideologias, e funcionaria como alienadora das pessoas, pois, as levaria a suportar a espoliação mediante promessas
ilusórias de felicidade no céu e assim por diante, de modos que os indivíduos
operários não estariam recebendo pelo trabalho que produzem, mas, apenas pelo
sangue, músculos em desgaste, vegetando em vícios e na morte prematura por
inadequada e insuficiente alimentação.
A super-estrutura, devido à formação
do psiquismo humano era vista como muito mais perversa do que a
infra-estrutura. Resultado: se os pobres (queijo e presunto) aceitam este jogo,
a injustiça humana nunca será superada. Seria também evidente, que a religião,
no papel de esvaziar o miolo das pessoas com promessas ilusórias, não passaria
de um ópio, isto é, uma droga que aliena as pessoas de seus valores reais, a
fim de leva-las a vegetar neste submundo de exploração no trabalho e
compensar-se na degradação de vícios.
Imagina se cristãos e capitalistas
liberais iriam engolir tal explicação! No entanto, esta análise social levou
muitos latino-americanos a se darem conta de um dado elementar: onde são
decididos os rumos dos povos latino-americanos?
A constatação preclara que logo se evidenciou
como notória, foi a de que o dedo indicador das ordens sobre a América Latina,
não estava aqui neste continente, mas, ou na Europa, ou nos Estados Unidos.
A conclusão lógica que resulta da constatação
apontava logo a evidência: somos dominados, colonizados e espoliados, e, nesta
condição, como podemos decidir qualquer coisa para nós e relativa ao nosso
futuro e o dos povos desta América Latina?
Esta enganação dos povos
latino-americanos envolveria um fator de alienação e ilusão: aceitam continuar
subjugados? Esta perversidade só se tornava viável devido a um deslocamento do
foco das mediações de felicidade. Estaria funcionando um fetiche (significa, no
aspecto psicológico, um desvio que leva uma pessoa a excitar-se diante de uma
roupa íntima, sem, todavia, excitar-se com a pessoa real e completa), ou seja,
adora-se algo secundário, que não mereceria adoração. Este objeto deslocado
seria o capital, o dinheiro.
Os verdadeiros valores humanos,
ignorados e negados, estariam induzindo as pessoas a sonhar e a viver apenas em
função do capital. Neste quadro de
espoliação que extorquia dos latino-americanos do que lhes era essencial,
jamais seria possível a liberdade de escolha dos rumos, sejam políticos,
religiosos ou de outra natureza. Nasceria
desta constatação a razão básica da necessidade de libertação deste jugo
humano. A emergência da Filosofia da Libertação passaria a refletir
precisamente sobre esta realidade, altamente injusta e desumanizadora. Para que
latino-americanos pudessem decidir sobre seu futuro e seu modo de ser,
necessitariam, em primeiro lugar, da soltura do jugo colonizador que lhes
tolhia a liberdade de escolha e de ação.
2 - Pressupostos da Teologia da Libertação
Das deduções da Filosofia da
Libertação, muitos teólogos começaram a olhar a realidade latino-americana sob
um olhar novo e uma sensibilidade de ter que fazer algo em favor deste povo
sofrido.
Embora execrado e condenado aos
infernos, o modo de teologizar a partir dos referenciais da Filosofia da
libertação, fez desta Teologia um aporte conta as explicações universalizantes
da Teologia oficial da Igreja Católica, feitas sob a pressuposição de um lugar
hegemônico, superior e único da Teologia, a fim de ponderar sobre as
experiências religiosas locais.
Como filósofos, teólogos, economistas
e políticos, analisavam e interpretavam os
acontecimentos situados num ‘outro” lugar, - e, suas deduções eram necessariamente
impostas a todo o âmbito humano, - a Teologia da Libertação encontrou nas
raízes bíblicas do Êxodo e dos livros sapienciais a iluminação para agir a
partir da pequenez da fragilidade do povo latino-americano a fim de ajuda-lo a
traçar seu próprio rumo de vida. Evidenciava-se uma ação impreterível: inverter
esta ordem estabelecida e libertar-se do moderno jugo que incidia sobre a
América Latina, também no aspecto teológico. Afinal, porque somente valia o
proveniente do eurocentrismo? Não poderiam existir outros centros, em distintos
ambientes étnico-culturais, capazes de aprofundar as razões e as esperanças da
sua fé em Jesus Cristo?
Sob a sistemática acusação de estar
veiculando o “comunismo” marxista soviético, tanto a Filosofia quanto a
Teologia da Libertação, foram cerceadas ao silêncio, não somente pelo sistema
político-econômico vigente, mas também pela organização da ideologia criada em
torno do pensamento tomista no interior da Igreja, que se apresentava como via
única de salvação e de fidelidade a Jesus Cristo.
3 – Um pensamento revolucionário
Para o pensamento oficial tanto
político-econômico quanto religioso, a Filosofia e a Teologia da Libertação foram
rotuladas, sem demora, como subversivas. De fato, visavam uma subversão da
ordem estabelecida, porque sob a centralidade do poder oficial, milhões e
milhões de seres humanos estavam fadados a ter sua vida negada, não somente em
seus direitos mínimos, mas, até ao direito de existir. Estavam fadados a terem
que desaparecer de alguma forma, porque não interessavam em nada ao sistema
acumulativo e centralizador do capitalismo selvagem que ambicionava alargamento
progressivo dos lucros.
A Teologia da Libertação, como a
perspectiva teológica do Evangelho de Lucas, começou a ver os sinais e as
interpelações de Deus a partir de uma inversão dos históricos lugares de ação
de Deus: em Jesus Cristo, Ele tinha Deus tinha confirmado a inversão do
arquétipo cultural e religioso clássico, convencido de que as coisas aconteciam
de “cima para baixo” isto é, a ação de Deus sempre vem de cima. Dali decorreu
toda uma vasta ideologia de enaltecimento dos poderes elevados, pois através
deles é que Deus mais estaria agindo.
A ação subversiva da Teologia da
Libertação foi realmente a de pensar a Teologia de “baixo para cima” e a de ver
que a verdade de Deus não estava nos textos oficiais, mas no amor, no movimento
em favor de maior solidariedade entre os seres humanos.
Desta leitura revolucionária de
“baixo para cima” evidenciou-se, sem demora, o porquê, de um continente tão
rico, ostentar uma população tão pobre. Na verdade, o pobre da América latina
era pobre não porque o destino de Deus o deixou fadado a esta humilhante
condição, mas, porque outro homem, similar, o espoliava. Viu-se que o aparato
superior da Europa, iniciou numa data precisa: 1492, quando a Europa se viu
livre das ameaças dos mouros e invadiu a América Latina. Os navios carregados
com preciosidades extraídas à custa da exploração, e do genocídio de milhões de
pessoas nativas com milhares de etnias, permitia a europeus, muito tempo para
ócio, festanças e produção de pensamento; e os colocava em nível superior. O
que era interpretado como quadro de atraso e de inferioridade constituía, na
verdade, o lado avesso de uma mesma moeda. A riqueza e a opulência, de um lado,
causavam a miséria humana e a negação do ser humano que aparecia no outro lado
desta moeda. Eram seres humanos explorando outros similares para seu proveito e
sua vantagem.
Enquanto que algumas ramificações da
Filosofia da Libertação penderam mais para as necessárias lutas armadas e de
guerrilha, as únicas saídas que do ponto de vista sociológico se mostravam
viáveis, a Teologia da Libertação, longe desta opção, optou pela revolução no
sentido de subverter a ordem estabelecida, mas, não pela violência, e, sim, pela
conscientização e pela mudança cultural. Nasceria dali a Filosofia do Povo, ou,
a Filosofia da Cultura, da qual o Papa Francisco hauriu fortes e boas
motivações para a sua ação pastoral.
4 - A Igreja sonhada pelo Papa Francisco
Em muitas conversas o Papa deixou
evidente o motivo do porque a Igreja católica motivar-se em torno da própria
conversão, mais do que à conversão de outras pessoas, pois, sob este novo
enfoque, a instituição Igreja teria que quebrar a forma mórbida de
centralizar-se sobre si mesma, com obsessões em torno de tradições e liturgias
e explicações filosóficas tomistas.
O Papa Francisco entende que o
Evangelho não pode constituir um recurso simplesmente próprio de uma ideologia
que assegura o funcionalismo e o clericalismo de padres. No lugar desta
tentadora e ferrenha defesa em favor do próprio engrandecimento, a Igreja teria
que conversar com o mundo atual e sair desta “Psicologia de Príncipe”,
meramente ornamental, a viver de bajulações em torno da precedência.
Esta reviravolta do lugar para o
Evangelho, também implica em necessária e profunda reforma da Cúria romana,
cada dia mais tentada a fugir da simplicidade e da condição de gerir uma
espiritualidade cristológica capaz de encantar o mundo. Ao invés disso tende a
isolar-se no engrandecimento da sua própria jaula de presumida capacidade acima
do bem e do mal.
5 - Uma “Igreja em saída”
Pensar numa “Igreja em saída” remete
de imediato, a duas perguntas: ir para onde e para fazer o quê?
Como Francisco de Assis, o padre
Jorge Mário Bergoglio (Papa Francisco) deve ter sentido que o caminho da Igreja
deveria ser totalmente outro do que aquele que se delineava. Por isso, intuiu,
de imediato, que a Igreja teria que fazer uma “saída de si mesma” e passar a
colaborar para a salvação do planeta e a fomentar uma “globalização da
solidariedade”, no lugar da “globalização da indiferença” e dos poderes pensados
como universais para o controle mundial.
O Papa também tornou largamente
visível uma realidade que vinha sendo ocultada: a dos grandes genocídios, com
milhões de migrantes, simplesmente ignorados. Acolheu uma família síria em sua
residência e começou a sensibilizar o mundo em torno da necessária
solidariedade com migrantes.
Neste “ir para onde”, o papa
Francisco já deixou muito evidente que é para as fronteiras humanas. Não as do
status, nem da ascensão social e, menos ainda, da precedência no poder.
Ali nas fronteiras humanas, onde
brada a fragilidade humana, deveria a Igreja manifestar-se próxima, animadora,
com serviços humanitários e com espírito revelador de uma grande misericórdia.
Inúmeras vezes o Papa já repetiu que gostaria muito de ver uma Igreja dos
pobres para os pobres.
Sob o encantamento da comunicação
simples, cordial e direta do Papa Francisco, foi possível perceber,
rapidamente, que sua linha de ação não era a de ratificar formalizadas
precedências e, nem, tampouco, a de endossar o papel de praxes oficiais e
pomposas do seu cargo.
O efeito da Igreja “em saída”,
expressão muito simpática, entretanto, implicaria em procedimentos de conversão
radical: mudar a forma de empreender a missão evangelizadora e atuar nas
“fronteiras da humanidade” em todos os sentidos, e, o que é mais exigente, que
a Igreja seja mais “próxima do sofrimento e da exclusão social, do que da
exclusão geográfica e física”. A Igreja teria que ser “pobre para os pobres”.
6 – Um Papa revolucionário
Na perspectiva do Evangelho a ação
de Deus interpela para deslocar o que está em cima e em vez de promover o bem
comum, o espolia e o suga para os seus próprios interesses. O Papa dá efetivos
sinais de que quer recolocar o Evangelho no seu devido patamar: fonte de amor,
de sensibilidade e de compaixão.
Em razão do foco nas ações de Deus
de “baixo para cima” o Papa aponta para outro cristianismo, porque este que se
manifesta, e, da forma como se manifesta, não alarga a boa notícia do Evangelho
porque realmente não amplia, ou amplia muito pouco os sinais do amor, da
sensibilidade e da compaixão. Embora grandes parcelas da Igreja católica
aspirem estas mediações por caminhos espiritualistas, intimistas e pela
mediação de ritos mágicos, como essas absurdas celebrações de libertação e
cura, o caminho proposto pelo Papa, é o caminho da mãe de Jesus: humilde,
discreto e solidário agir em favor do bem comum.
O Papa elencou duas listas de
dificuldades que estão a entravar a efetiva “Igreja Católica em saída”: a dos
sete pecados da Igreja e a das quinze tentações na Igreja. Estas listas são
suficientemente claras para transluzir um diagnóstico do Papa relativo às
resistências ao modo revolucionário de agir de “baixo para cima” no anúncio do
Evangelho em nossos dias.
Quanto às sete tentações, Papa
Francisco salienta:
a)
Fraca espiritualidade:
Oração fraca; só de alguns momentos;
pouca vida interior; superficialidade espiritual. Disso decorre que vivem como
se Deus não existisse; guiam-se pelo centralismo autoritário. Mesmo vivendo
crise de identidade, desprezam pobres, são superficiais na pastoral, não
expressam alegria e levam vida acomodada e fácil.
b)
Preguiça (ascédia
egoísta): Andam folgados, sem
motivação, fatigados e desiludidos e lamuriosos. Sem criatividade e ousadia,
vivem a mesmice e a “tristeza melosa” sem esperança (o elixir do demônio!).
Vivem a “psicologia do túmulo” que os torna “múmias de museu”. Reclamam de tudo
e estão distantes do povo. São pessimistas estéreis, sem discrição e sem
moderação.
Sua
maior ameaça é a do “pragmatismo cinzento pelo qual tudo é normal”; no entanto,
a sua fé não passa de mesquinhez.
c)
Pessimismo estéril: Vivem como “profetas da desgraça” e, com
“cara de vinagre”, pois, passam o tempo a lamentar-se numa ótica derrotista.
Sucumbem com seus talentos na ansiedade e na lamúria.
Vivem
da sensação de derrota que os transforma em pessimistas lamurientos e
desencantados.
d)
Isolamento da comunidade: Vivem distantes do povo e da
comunidade, pois, escondem-se e livram-se dos outros. Também vivem desejando
outro lugar! Isolados, priorizam o conforto, mas, acabam bebendo o “veneno
amargo” que os fecha sobre si mesmos.
Cultivam
uma preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia e relaxamento. O
complexo de inferioridade leva-os a esconder a identidade e as convicções. São
infelizes e não se identificam com a missão.
e)
Mundanismo espiritual: Trata-se de uma tentação perversa que leva a usar
Deus, a Igreja e o cargo, para se exibirem e se promoverem a si mesmos, movidos
por desejos de glória. Apegam-se a seguranças doutrinais e disciplinares. Ao
presumirem superioridade sobre os outros, controlam e se situam numa “elite
especial”. São mundanos espirituais através de liturgias ritualísticas e
exibicionistas com predomínio da vaidade.
f)
Ambiente de guerra: Vivem de brigas, ciúmes, invejas, contendas e geram
divisões por questões de espiritualidade e de visão pastoral. São carreiristas,
caluniosos, difamadores, vingativos, perseguidores e tendem a impor seu
pensamento.
Vivem
em guerra, porque apenas almejam prestígio, poder, prazer e vantagem econômica.
Isolam-se em grupos especiais. Não aceitam perdão e reconciliação.
g)
Omissão pastoral: Não se envolvem nas prementes questões em torno da
mulher, do protagonismo dos jovens, do enfraquecimento da vida religiosa e da
falta de atenção aos idosos.
Sua entrega à Igreja é
débil. Não são felizes e, tampouco, se identificam com a missão. Fogem de
qualquer compromisso com vistas ao seu tempo pessoal, mas, acabam num desânimo que
os paralisa. Falta espiritualidade capaz de mover à ação.
Na
abordagem dos grandes pecados, evidencia-se igualmente como o poder religioso
“de cima para baixo” faz mal e distorce a razão de ser da Igreja.
Ante um grupo de eminentes e
vistosos cardeais e presumidos rivais do projeto
de transformação da Igreja, o papa elencou os seguintes pecadores merecedores de conversão. Primeiramente
falou:
“Seria
bonito pensar a Cúria romana como um pequeno modelo de Igreja, como um corpo
que cuida seriamente e cotidianamente de estar mais vivo, mais saudável, mais
harmonioso e mais reunido com Cristo”. Mas, uma Cúria que não pratica a
autocrítica, nem se atualiza, e tampouco trata de melhorar sempre, é um corpo
doente. Em seguida, relacionou como pecados situações que impressionam por
serem literalmente diversas das listas de pecados veiculadas nas orientações
catequéticas e nas orientações espirituais de movimentos eclesiais da Igreja:
1 – A doença de se sentir imortal ou indispensável: Acomete os que se sentem superiores a todos e
não “a serviço de todos”. Estes deveriam visitar um cemitério, e lembrar
pessoas que agiram como se fossem imortais, imunes ou indispensáveis.
2 – A doença do excesso de trabalho: É própria dos que submergem no trabalho,
descuidando da melhor parte, “sentar-se aos pés de Jesus”. Estes deveriam
descansar um pouco, pois o descuido com o repouso leva à agitação e ao
estresse.
3- A doença da fossilização mental e espiritual: Acomete os que se escondem atrás de pilhas de
papel e se tornam “máquinas de práticas” em vez de homens de Deus. Perdem a
capacidade de chorar com os que choram e de se alegrar com os que se alegram.
4 – A doença do excesso de planejamento: Embora seja importante planejar para fazer as
coisas, não cabe impedir ou pretender dirigir a liberdade do Espírito Santo.
5- A doença da má coordenação: Acomete os que “perdem a comunhão com os outros” e se convertem em
“orquestra que produz ruídos dissonantes, porque não vive o espírito de
equipe”.
6- A doença de “Alzheimer espiritual”: Consiste na diminuição progressiva das
faculdades espirituais, geradoras da perda de memória e do encontro com o
Senhor. O apóstolo ergue ao seu redor “muros e hábitos, quase sempre
imaginários” e se torna dependente de suas paixões, caprichos e manias.
7- A doença da rivalidade e da vaidade: Quando a aparência se torna o primeiro
objetivo da vida!
8 – A doença da esquizofrenia existencial: Acomete os que “abandonam o serviço pastoral
e se limitam a tarefas burocráticas, perdendo o contato com a realidade e as
pessoas de verdade”.
9 – A doença da fofoca: É própria
dos que não tem coragem de dizer as coisas abertamente e falam pelas costas das
pessoas. Ao fazer isso, semeiam a discórdia, como satanás!
10 – A doença de divinizar os chefes: Própria dos que cortejam os superiores, são
presos ao carreirismo e ao oportunismo. Vivem a serviço daquilo que querem
obter e não do que querem dar ao próximo.
11- A doença da indiferença com os outros: “Quando só pensamos em nós mesmos e perdemos a sinceridade e o calor das
relações humanas. Quando por inveja, ou astúcia, sentimos alegria em ver o
outro cair, em vez de ajudá-lo a se levantar”.
12 – A doença da cara de enterro: Acomete as pessoas que consideram que, para ser comprometido e
consistente, necessitam encher o rosto de melancolia e de dureza, assim como
tratar os outros com rigidez e arrogância. Uma dose de humor saudável poderia
fazer-nos um bem enorme.
13 – A doença da acumulação:
Quando o apóstolo, para encher um vazio existencial em seu coração, só pensa em
acumular bens materiais.
14 – A doença dos círculos fechados: Quando integram parte de uma panelinha se
torna algo mais forte do que ser parte da Igreja como um todo e até mesmo ser
um só com Cristo!
15 – A doença do prazer mundano: Quando o apóstolo transforma seu serviço em poder para obter mais
proveitos mundanos e acumular ainda mais poder. São pessoas capazes de
caluniar, difamar e desacreditar os demais para se exibirem e se mostrarem mais
capazes do que os demais.
Se este
quadro de tentações e pecados é elucidativo para mostrar a dimensão visionária que
antevê outra maneira de ser Igreja católica, o Papa Francisco, em outros
pronunciamentos, também salienta outro entrave da Igreja para visibilizar-se
“em saída”: problema sério e que requer profunda mudança no processo formativo
que é o da autorreferencialidade de bispos e padres, meramente focados em
seguranças doutrinais e disciplinares.
Trata-se
de um quadro que o teólogo João Batista Libânio identificava como “volta à
grande disciplina” num escancarado processo integrista e de reação
fundamentalista. Esta febre carreirista tende a valorizar excessivamente os
cargos de prestígio e a influência através da facilidade que canonistas e
moralistas encontram para serem promovidos a cargos de bispo ou de outras
representações importantes da Igreja.
Um dos
efeitos visíveis da autorreferencialidade é o do avanço de padres e bispos no
domínio do espaço da Igreja, através de grande exibicionismo litúrgico, com
rituais mais para si mesmos do que para uma eficaz celebração litúrgica da
assembleia dos agregados em torno de Cristo.
Estes
aspectos abordados pelo Papa Francisco já delineiam um vislumbre relativo a
alguns pressupostos teológicos, que, em hipótese nenhuma, poderiam advir de um
continente norte-americano ou europeu.
Basta
lembrar a reação polêmica e furiosa do cardeal norte-americano Burke,
nitidamente encantado com a teologia oficial e fundamentalista, muito adequada
à visão hegemônica do pensamento único para todos.
7 – A Teologia do Povo
A
expressão “Teologia do Povo” foi criada pelo teólogo uruguaio Juán Luís
Segundo, mas, tornou-se divulgada e alargada em seu significado por outro
teólogo, o argentino e jesuíta, Juán Luís Scannone.
Enquanto o
teólogo uruguaio abriu estradas a partir da Filosofia da Libertação, para
direcionar a Teologia da Libertação fora dos parâmetros marxistas, Juán Luís
Scannone também abriu estradas, mas, numa outra perspectiva de libertação.
Scannone –
que foi professor de Filosofia e de Teologia do Papa enquanto era estudante,
tinha sua leitura teológica mais vinculada ao teólogo alemão Karl Rahner e à
síntese do Vaticano II. Nasceria dali a defesa da enculturação da Teologia e a
análise sócio-histórica-cultural, em vez de meramente social.
Outra peculiariedade
fundamental de Juán Luís Scannone foi a de utilizar o método VER-JULGAR-AGIR e
não a análise marxista da realidade ou a análise oficial
colonialista-expansionista. Por outro lado, enquanto a Teologia da Libertação
tinha correntes que assimilavam o conceito “povo” pela condição de classe, a
teologia de Scannone assimilava “povo” na perspectiva de nação.
Scannone
não assumiu a mediação sócio-avaliativa da Teologia da Libertação, mas, deu
ênfase à práxis pastoral através da ética antropológica. Esteve muito alinhado
com outro pensador brasileiro, Hugo Asmann, muito culto e tido como sóbrio e
moderado da Teologia da Libertação.
A Teologia
do Povo de feição argentina foi especialmente alargada por outro jesuíta italiano
na Argentina, Rafael Gera e o padre Raffael Tello. Desta forma a “Teologia do
Povo” foi assumida pelos bispos da Argentina em 1969.
Situada na
perspectiva contra-cultural dos movimentos sociais da América Latina, o foco da
Teologia do Povo era favorável às minorias culturais e que, pelo seu direito de
existência, propiciava razões para teologias políticas plurais. Esta questão realmente
gera uma cosmovisão antagônica em relação à Teologia tomista clássica, pois,
enquanto a Teologia do Povo, como a da Libertação, desejavam vida para todos os
povos desta rica América latina, a outra – a fundamentalista – fitava a todas
as distintas culturas como passíveis de incorporação à sua noção de
universalidade.
Embora o
Papa Francisco não tenha ficado restrito à Teologia do Povo, desencadeada na
Argentina, esta forma de leitura teológica ofereceu-lhe um rico aporte
humanitário e uma peculiaridade muito especial para antever uma saída
edificante deste momento de transição na Igreja.
Se a noção
de povo, do modo como a Teologia do Povo na Argentina o pensava, já envolvia o
pressuposto de que é um sujeito ativo e dinâmico e que os pobres constituíam
seu centro, este quadro humano e religioso não poderia ser simplesmente negado
e sucumbir no anonimato de um poder universal veiculado como superior, mas
evidenciado como perverso, que se fortalecia sob o sangue de muitos milhões de
vítimas expiatórias.
Se o ponto
de partida da Teologia do Povo era constituído pela práxis histórica de busca
da transformação estrutural da sociedade, uma atinente reflexão e uma ação
pastoral libertadora e política aconteceriam através da conscientização de
pequenas comunidades de base (CEBS) e pelas mediações da capacidade de diálogo
com a tradição e com as análises de mediação sócio-analítica.
Assim, a
Teologia, desde povos latino-americanos, valorizou eminentemente a mediação
histórico-cultural sob a noção de cultura explicitada pelo documento conciliar
Gaudium et Spes (parágrafo 53).
O padre
Rafael Gera salientava muito a perspectiva da sabedoria popular católica como
capaz de ajudar as pessoas a discernir a relação povo-evangelização. Decorria
desta noção a motivação teológica de não somente se efetuar transformação de
estruturas sociais sem que elas incorporassem os pobres. Nasceria dali também a
importante noção da “opção preferencial pelos pobres”, pois, afinal, melhorar
as condições somente de alguns lugares e de suas pessoas, o que significaria
para a grande maioria das pessoas roubadas e espoliadas?
8 – Como ecoa o substrato da Teologia do Povo nas falas do
Papa?
Em
primeiro lugar, o Papa não se alinha com o poder hegemônico e dominante. Visita
países e recebe visitas de altos mandatários, mas, resiste às forças que se
revelam contrárias ao povo das imensidões humanas sendo humilhadas e negadas em
seus direitos.
O Papa
acentua o papel transformador da noção de “habitante” em “cidadão”; e a
inovação do conceito “povo” em “povo fiel” que, pela fé, resiste às forças
dominantes que o espoliam.
Assim,
povo deve ser processo peregrino, rumo ao bem comum que incorpora a todos, bem
ao contrário do processo dominador que submete e elimina quem não obedece.
Se neste
contexto, a Igreja quer ser portadora de uma mensagem de salvação, cabe-lhe,
segundo o Papa, o dever, na fidelidade das experiências religiosas da Bíblia,
do serviço para liderar processos históricos que promovam caminhos efetivos de
libertação e ajudem a incorporar excluídos no destino comum, não para o
humilhante desfrute, mas, para a elevação da cordialidade humana.
Em decorrência,
pode-se entender a crítica clara que do Papa faz ao sistema econômico que
idolatra o dinheiro, e para tanto, nega emprego, condição básica à maior
parcela do gênero humano.
A fonte do
vigor e da originalidade do Papa, não lhe advém apenas da Teologia do Povo, um
ramo da Teologia da Libertação. Sabe-se que haure forças da literatura
sapiencial bíblica dos séculos que antecederam a irrupção da proposta do Reino
anunciado por Jesus Cristo, como dos Provérbios, Livro da Sabedoria e Jó. Nosso
momento histórico apresenta características muito próximas daquele contexto,
que esvaziou o significado dos rituais celebrativos e religiosos. Como naquele
momento, um cego formalismo de exterioridades desprovidas da carga simbólica
anula a capacidade de libertação de quem não conta na condição humana.
O Papa
também deve ter assimilado algo do escritor russo Dostoyeski, sobretudo na
sensibilidade pela alma da condição humana.
Tampouco
se pode ignorar que o Papa Francisco carrega em si as essências valiosas do
Concílio Varicano II, especialmente Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes,
e a decorrente capacidade de diálogo e de “aggiornamento” que o levam a vencer
a diabólica tentação do fundamentalismo essencialista.
Por fim,
também não se pode deixar de vincular a ação do Papa Francisco à
espiritualidade inaciana e à pessoa concreta de Jesus, tanto pela palavra,
quanto pela coerência no modo de vida.
Uma
ponderação sobre a proposta geral do Papa Francisco para a “Igreja em saída”,
diante das últimas décadas de avanço vertiginoso e aparentemente exitoso do
imagético religioso, não resta dúvida de que sua intuição tem muito mais
perspectiva de futuro e de êxito do que esta que vem descambando em
fundamentalismos integristas de saudosismo e de retorno à anterioridade dos
tempos do concílio Vaticano II. Indica que na voz quase isolada do Papa, há
muito mais perspectiva de construção do Reino de Deus pelas mediações da Igreja,
do que neste liturgismo pomposo, emotivista, e mágico, no qual o sagrado já não
interpela por algo, porque virou vulgar produto de compra e de consumo.
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