O iluminismo
dos tempos modernos insistiu muito na desqualificação do passado: ele já não
existe mais, é o novo e o vindouro que importam! Nesta aposta obcecada pelo
futuro a relativização do passado pode também tirar qualidade de vida.
Mesmo sendo
seres culturais que mudam a cultura, e, se transformam com a cultura, o passado
certamente é mais importante do que se costuma pensar, especialmente quando se
lida com crises, porque é da memória que advém os melhores indicativos do que
fazer.
Tanto nas experiências de fé, quanto
afetivas e de organização da vida, podemos chegar a momentos de impasse e de
incapacidade de bom discernimento para tomar uma nova decisão. Neste caso, uma
volta ao passado, sobretudo, quando recordamos situações parecidas e similares,
- e vemos que em outras ocasiões já tivemos capacidade de tomar decisões que
deram saltos de qualidade à vida, - elas poderão nos ajudar a ponderar melhor e
a proceder com mais segurança.
O regresso ao passado não significa,
contudo, uma volta fundamentalista e de refúgio ao tempo que já passou. Ele
pode ser dinâmico quando se consegue perceber a forma como as dificuldades
foram superadas.
O saudoso teólogo brasileiro João
Batista Libânio usou uma imagem para ilustrar a importância do passado na boa
orientação da vida. Disse que a vida é como o voo de um pássaro. O equilíbrio e
a direção dependem da habilidade de pequenos e grandes detalhes das duas asas.
Não é possível imaginar o voo de um pássaro com o batimento de apenas uma das
asas. Assim, em nossa vida, teríamos que bater, necessariamente, duas asas: a
da memória e a do desejo.
Se batermos somente a asa da memória,
tornamo-nos desambientados e insuportáveis nas conversas. Muitas pessoas vivem
esta situação: falam apenas do tempo passado. “No meu tempo era assim; naquele
tempo tinha isso e mais aquilo...”.
São igualmente abundantes os casos em
que lidamos com pessoas sem memória, sem referência e sem consistência, porque
vivem obcecados pelos desejos. Vivem dos sonhos, geralmente não reais, mas,
produzidos para torna-los consumidores inveterados. Uma pessoa que apenas se
move por desejos também se torna insuportável porque é constantemente
insatisfeita com o que alcançou e com o que possui.
Por conseguinte, tal como um pássaro
consegue harmonizar o voo e adequá-lo para velocidade ou capacidade de não
sucumbir a ventos adversos e outros riscos, os seres humanos também precisam
descobrir esta difícil harmonização entre o que o passado deixou registrado na
memória, com os abundantes desejos, alargados e explorados ao infinito. Assim,
o bem-estar da convivência carece tanto da memória quanto do desejo. Imaginar
um voo com o batimento de apenas uma das duas asas permite fácil dedução do que
vai acontecer: ou cai logo ou se espatifa contra algum obstáculo! Assim, boa
consciência e integração do passado são indispensáveis para a capacidade de
orientar-se na vida com bom nível de satisfação.
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