João
Inácio Kolling
ASPECTOS ABORDADOS
1
– Da homogeneidade de práticas religiosas
para a homogeneidade do consumo de produtos religiosos;
2 - Da rejeição de regras religiosas à
segurança das regras consumistas.
3 - Repercussões da globalização no imaginário
religioso urbano.
3.1 – O que é globalização?
3.2- Quando surgiu a globalização?
3.3– Antecedentes da globalização.
3.4– Explicações mais comuns sobre
globalização.
4 – Interpelações urbanas à ação evangelizadora.
4.1 –
Características evangelizadoras na cidade.
4.2 – O diferente
nas cidades de hoje.
4.3 – Como
evangelizar na cidade?
4.4 – A visibilidade
da ação evangelizadora nos espaços urbanos.
4.5 – Como
pensamos a cidade?
4.6 – Um modelo
de Igreja a ser construída.
5 – A religião midiática e o imagético.
5.1 – A onda dos “padres cantores”.
5.2 – O hipermercado religioso.
6 – Outras tendências
religiosas na vida urbana.
6.1 – O novo mapa religioso urbano.
6.2 – Da institucionalização para o
intimismo.
6.3 – O sincretismo religioso.
7 – Interpelações deste
quadro religioso atual.
PALAVRAS INTRODUTÓRIAS
O imaginário religioso envolve a condição dos seres humanos
desde que se sabe da existência de pessoas. Mesmo nas formas mais primitivas de
organização há evidências que remetem a aspectos religiosos.
As formas de expressão religiosa, como bem
sabemos, são muito variadas, pois vão desde grandes religiões, passando por
grupos menores, a formas individualizadas e totalmente subjetivas.
“Imaginário”
é um adjetivo que pode significar ilusório e fantástico, mas, o termo também
pode ser usado para referir-se a estátuas e imagens.
Outro significado da palavra
“imaginário” é o da figura humana, bordada ou pintada.
Em nosso uso, todavia, vamos usar este
termo “imaginário” com outra significação, mais aproximada do conceito
antropológico ou da Psicologia Social, que é o de “arquétipo cultural”.
Arquétipo cultural significa um esquema de
pensar ou um esqueleto cultural que perpassa a educação e a formação de novas
gerações. A partir deste sentido, usamos a expressão “imaginário religioso”
para destacar formas comuns e coletivas em torno da vivência religiosa.
Bem sabemos que os “imaginários
religiosos” variam segundo épocas e regiões. Por isso, se hoje constatamos
mudanças no modo de conceber a manifestação religiosa, é sobre este assunto que
desejamos alargar um pouco o entendimento.
As ofertas
do “imaginário religioso” recente apresentam um itinerário muito sugestivo, atraente
e fácil: cura, proteção, sorte, saúde, felicidade, êxito, sucesso, graça, paz,
bênção, intercessão divina, dons, caminhos secretos, objetos sagrados, poderes
extraordinários, alívio de problemas subjetivos, vantagens pessoais,
regeneração, libertação, prosperidade, proteção, ajuda contra inimigos, contra
adversários, concorrentes e expectativa de muitos milagres rápidos, mágicos e
sensacionalistas. Parece, no entanto, que este fenômeno tende a aumentar muito
a passividade religiosa e a dependência a líderes carismáticos.
Nossa breve abordagem não pretende
tratar dos aspectos relativos à origem, história e evolução do imaginário
religioso, mas quer somente chamar atenção sobre algumas formas recentes e
relativamente novas de
expressão da religiosidade na vida urbana brasileira. Portanto, sem intenção de
diminuir o valor de aspectos mais amplos e gerais deste tema, nosso propósito é
o de salientar modestos destaques de alguns aspectos que se apresentam no
âmbito da vivência religiosa das últimas décadas. Por conseguinte, não
abordaremos, aqui, elementos mais específicos da História das Grandes
Religiões, da Antropologia Teológica, da Eclesiologia ou da Escatologia.
Nossa rápida abordagem salienta somente
alguns tópicos mais evidentes desta mudança no modo de explicitação da vida
religiosa.
No primeiro capítulo damos ênfase a uma
mudança que vem ocorrendo na tradicional homogeneidade das comunidades cristãs
de ambientes rurais, para uma frenética busca de consumo de objetos religiosos
na vida urbana e que é orientada, não mais pela religião, mas pelo sistema de
mercado.
No capítulo II, tratamos da rejeição a
normas e prescrições doutrinais provenientes das organizações da Igreja. Ao
lado desta rejeição, ocorre uma maior predisposição para escolhas pessoais,
tanto de programas religiosos, quanto de entidades religiosas, ou ainda, crer
ou não crer segundo determinadas entidades religiosas. Parece que o imaginário
é o de que, em assunto de religião, deve ocorrer o mesmo que se faz numa ida ao
mercado ou à loja: cada pessoa escolhe livremente o que deseja adquirir,
segundo seus critérios de gosto.
No capítulo III, procuramos relacionar
alguns destes aspectos de liberdade para além das fronteiras estabelecidas pela
religião como consequência do fenômeno da globalização, pois além de romper
fronteiras territoriais, leva ao rompimento de fronteiras éticas, religiosas e
também de gênero e de papéis sociais, que uma vez eram claros, definidos e
delimitados. Com isso, sumiu a divisa ente o que é considerado certo, bom,
justo e digno de ser feito.
No quarto capítulo procuramos levantar
algumas interpelações que a vida urbana traz ao trabalho de ação
evangelizadora.
No capítulo V, salientamos o grande
efeito da religião midiática, isto é, dos programas religiosos, como missas,
cultos e outras celebrações, transmitidas através da televisão, que introduzem
um novo ícone em torno da pessoa que apresenta um programa religioso. Quando a
popularidade do programa aumenta, mais a pessoa apresentadora deste programa
cria dependências afetivas à sua simpatia.
No capítulo VI, ponderamos sobre outras
mudanças geradas, sobretudo, pelo ambiente urbano, como o sincretismo, a
teologia da prosperidade e outros.
Por fim, no capítulo VII, salientamos
algumas características que certamente não deveriam ser descartadas diante das
novas formas do imaginário religioso, tais como o respeito ao diferente, a
perspectiva mais mística do que emotiva e racional da fé, o valor das
narrativas de experiências de fé no lugar das explicações universalizantes
(entendidas como válidas para todas as pessoas do planeta), e a condição
simbólica da Fênix, ave que, segundo a mitologia egípcia, renasce e se recria a
partir das cinzas, quando é abatida...
I
DA HOMOGENEIDADE DE PRÁTICAS RELIGIOSAS
PARA O CONSUMO DE PRODUTOS RELIGIOSOS
Para muitos de nós, que fomos educados
na fé segundo a herança da cristandade medieval, herdamos um imaginário
religioso no qual predominou a busca da homogeneidade, como expressão de força
e de unidade religiosa.
Até poucos anos atrás, quando a maioria
das pessoas brasileiras ainda morava em ambientes rurais, o tempo e o espaço
dependiam fundamentalmente dos valores religiosos. Tudo parecia muito regular e
estável. Tempo de plantio, de espera e de colheita. O que mais alterava o ritmo
da vida eram os momentos litúrgicos fortes, como Natal, Páscoa, Pentecostes e
festas religiosas, especialmente as que envolviam nomes de santos e de santas,
escolhidos como padroeiros das comunidades.
A vida de uma comunidade dependia mais
do padre do que do prefeito, porque o padre orientava o tempo e o modo de
ocupá-lo no correr do dia, da semana, do mês e do ano. Em outras palavras, o
padre mapeava o comportamento da vida pessoal, familiar e comunitária. Todos
sabiam o que tinha que ser feito e o que significava pecado e seus níveis de
gravidade. Deste modo, a religião formava um universo de sentido para a vida
das pessoas. Por isso, as festas de padroeiros, e outros momentos importantes
também reforçavam a identidade e o sentimento de pertença das pessoas a uma
comunidade local. As lidas, como plantio, colheita, nascimentos, mortes e
festas, encontravam, nos ritos religiosos, uma força de unidade. Parecia que
tudo estava em conformidade com o que Deus queria e, assim, através das
orientações do padre – que tinha as respostas certas e prontas para tudo o que
viesse a ocorrer, - todos sabiam como agir para se sentirem pertencentes a uma
comunidade, através do batismo, da primeira eucaristia, da celebração do
sacramento da crisma, do casamento, das confissões, etc. Cada pessoa tinha conhecimento
claro do que a levaria para o céu ou para o inferno.
Certamente já pudemos perceber que este
modo coeso e uniforme está desaparecendo rapidamente na vida das cidades, para
onde vieram quase todas as pessoas que moravam em ambientes rurais.
Sob o quadro da homogeneidade, o
importante era a presença do maior número possível de pessoas de uma comunidade
em atos litúrgicos, celebrativos e festivos.
Mesmo com grandes aglomerações ou Igrejas
cheias, predominava o culto pessoal. A grande quantidade de pessoas não
necessariamente significava oração comum e coletiva, pois, muitos apenas
rezavam em torno de suas situações pessoais, ou iam para cultivar suas devoções
a santos e a santas.
Ao lado de grandes figuras humanas e
com grande riqueza de fé cristã, parte razoável dos que se reuniam para rezar,
nem sempre o fazia por consciência comunitária e celebrativa com os demais
membros da comunidade.
Aquelas estruturas de organização, a
partir da religião, cultivavam interessantes esquemas de comportamento para o
cotidiano. Um dos principais valores era o da reciprocidade: as pessoas se
sentiam bem ao partilhar algo para vizinhos ou para outras pessoas, como um
doce, frutas ou quaisquer outros produtos que as outras pessoas pudessem
consumir. Muita gente se sentia edificada ao poder ajudar com serviços ou
donativos para a construção de obras importantes.
Valorizava-se muito o gesto de dar, de
emprestar, de devolver. Até mesmo para as visitas, havia uma regra prática de
retribuição. Do mesmo modo, participar da festa de uma comunidade significava
que esta comunidade iria retribuir, à outra, uma visita no dia da sua festa. Basicamente, este mundo religioso que a
maioria de nós herdou do rico passado rural, vem desaparecendo nos ambientes
urbanos e, até mesmo, nos espaços rurais porque estes, atualmente, estão
estreitamente ligados ao modo de vida das cidades.
Hoje, longe da homogeneidade e do culto pessoal,
vemos predominar, em nossas cidades, uma grande variedade de orientações
religiosas e, com uma diferença profunda: já não é mais o controle e o poder
religioso que dá coesão à vida das pessoas na cidade, mas, a relação de
mercado. Enquanto que na vida rural, poucas pessoas das cidades de décadas
atrás compravam e vendiam produtos.
No cotidiano das cidades atuais,
revela-se o fluxo de espaços e lugares, nos quais todos compram e vendem e,
onde se compra e se vende de tudo... Por isto, constatamos que na vida urbana,
o lugar do poder religioso foi reduzido em seu antigo papel porque foi ocupado
por outro poder, o poder de mercado. Este poder do sistema capitalista é quem
mapeia o comportamento do cotidiano das pessoas nas cidades (é o mercado que
diz o que se deve fazer para preencher o tempo). Ele faz sonhar, ele desperta
necessidades e diz como se vestir, o que comer nas refeições, o que beber e
como se deve lidar com as outras pessoas. Assim, a própria religião acabou
transformada em produto, como quaisquer outros, para ser vendida e consumida.
Na prática, ocorre algo bem simples: no
lugar do poder divino, administrado pelos padres ou pastores, está o poder
terreno, que já não se preocupa com coisas divinas, mas que vai dizendo todos
os dias, através dos meios de comunicação, como preencher bem as horas dos dias
e das noites. Não estabelece tempo para exercícios de piedade, mas deixa isto
por conta de cada pessoa. Não estimula oração para pedir ajuda de Deus, mas
ensina como podermos ser fortes, poderosos, felizes e como podemos ser cada dia
mais bonitos, atraentes e bem sucedidos.
A vida material já não depende das instâncias
divinas, mas do sistema de mercado que oferece muitos pequenos deuses para a
vida íntima: são pílulas, são tratamentos, são anjinhos, figas, amuletos,
imagens, objetos poderosos, energias e rituais que salvam problemas interiores
e assim, o Deus salvador que Jesus Cristo anunciou, passa a ficar em segundo
plano, ou, totalmente de lado. Na cidade, é o mercado quem diz o que se deve
fazer para ser feliz e para salvar-se...
A cidade, ao contrário do que a
homogeneidade rural apresentava para a segurança da vida das pessoas, se
caracteriza por uma grande heterogeneidade. A começar pela qualidade de certas
avenidas, ruas, vilas, bairros, prédios e condomínios, podemos constatar
diferenças enormes. Umas encantadoras e ajardinadas, outras feias, esburacadas
e cheias de lixo.
Na
cidade também se manifesta uma enormidade de diferenças na qualidade e beleza
de umas casas em relação a outras, no modo de vestir das pessoas, no uso da
qualidade de carros, no aparato de clubes e associações, enfim, diferença de
classes sociais, de costumes de raças, de procedências regionais, de níveis de
estudo, de crenças religiosas e até de personalidade.
Diante da oferta quase infinita de bens
de consumo que a cidade oferece para deixar seus membros felizes, ela acaba
mudando seu jeito de ser. Em consequência, os membros da cidade passam a
considerar que não é importante pertencer a uma comunidade e trabalhar em favor
de obras comunitárias.
Vemos que a característica da homogeneidade
das pessoas cede lugar para uma quase infinita heterogeneidade. As pessoas
querem ser valorizadas como únicas, como singulares e diferentes. Não querem
ser vistas como iguais ou parecidas com as outras, nem mesmo no vestir. Querem
atenção ligada ao seu corpo. Por isto, também querem ver seu corpo envolvido na
expressão religiosa. Daí o interesse mais explícito por dança, ritmo,
ginástica, aeróbica, mas, igualmente, para exibir o corpo na veste, no
ornamento, nos perfumes e outros variados objetos de enfeite. Querem sentir
felicidade no corpo (pequenos deuses terrenos).
Podemos reparar, especialmente nos mais jovens
que não viveram o mundo rural, que o pouco de proximidade que mantêm com
espaços religiosos tradicionais, geralmente é apenas com os que podem
envolvê-los em festivais e shows.
O mundo
religioso tradicional, o da cristandade, dava muita importância para festas
religiosas e para momentos litúrgicos fortes, como Natal, Páscoa, Pentecostes,
dia do padroeiro e, para os ritos de passagem, tais como batismo, crisma,
casamento e morte. A organização hierárquica da Igreja procurava organizar e
também mobilizar esta grande unidade na homogeneidade.
Quanto a este aspecto religioso,
podemos constatar uma alteração muito grande na vida urbana, especialmente de
alguns anos para cá: as férias tomaram o lugar dos dias festivos e religiosos.
Assim, dias de festa ou feriados significam passear, curtir piscina, fazenda,
sítio e, pelo que mais se evidencia, a praia é o lugar mais adorado. O grande
templo de nossos dias atuais está sendo a beira do mar. É o lugar que agrega
maior número de pessoas neste planeta Terra.
Percebermos, talvez com certa estranheza, que
os momentos fortes de vida, de elevação ou de contemplação, já não acontecem
nas festas tradicionais de novenas, romarias e procissões, mas em outros
eventos sociais e turísticos. Muitas pessoas sentem-se gente apenas nestes
novos espaços da experiência de si e de Deus. Ainda que alguns setores da
Igreja, como movimentos e pastorais se empenhem na busca de êxito das festas
tradicionais, conseguem atrair e envolver poucas pessoas, porque elas se
dispersam movidas por interesses pessoais e pelo marketing turístico, mesmo que
seja para romarias a santuários e grandes eventos religiosos. Deste modo,
enquanto uns se mobilizam numa comunidade para organizar a festa do padroeiro,
outros, se organizam para sair em excursão, congresso, encontro, ou romaria a
algum lugar distante.
Em tempo de férias e de outros grandes eventos
sociais, como agrishows, exposições, rodeios e festas em torno do que mais se
produz numa região, a indústria do turismo encampa o espaço que uma vez era
reservado para o momento das celebrações religiosas. Predomina, pois, o ato de
“curtir” como expressão de felicidade, onde não vigoram verdades, nem preceitos
éticos, morais e nem religiosos, mas, os produtos da beleza, da saúde, do
vigor, da forma física, do regime, enfim, uma religião que adora o corpo e no
que ele pode alargar-se com posses e bens de consumo.
Percebe-se, no entanto, que apesar de
toda a heterogeneidade que se apresenta nos costumes, nas práticas e nos modos
de ser das cidades, o consumo é talvez a única característica que foge da
heterogeneidade, isto é, a cidade apresenta uma extraordinária homogeneidade de
consumo. Basta reparar, dia das mães, dia dos namorados, dia da criança, Natal,
Páscoa, etc. Faz-se de tudo para transformar qualquer evento, seja religioso ou
profano, em ótimo momento de compra e venda. Um momento especial para consumir
mais do que o normal.
II
DA REJEIÇÃO DAS REGRAS RELIGIOSAS À SEGURANÇA
DAS REGRAS CONSUMISTAS
Diminui rápida e
progressivamente o número de pessoas que ainda sejam capazes de tolerar, ou que
ainda aceitam imposições doutrinais provenientes da religião. Talvez esta
mudança equivalha a uma força contraditória, parecida com o balançar de um
pêndulo de relógio. Depois de receber força de propulsão para se deslocar alto
para um lado, a propulsão da queda tende a fazê-lo subir ao extremo oposto.
Em boa parte, tal
fenômeno de distanciamento das regras religiosas decorre do sistema econômico,
pois ele estimula cada dia mais, a fazer escolhas pessoais diante das muitas
ofertas que se apresentam. Desta forma, tal como escolhemos roupas, doces,
salgados, eletro-domésticos e tantos outros produtos de consumo, também somos
levados a desejar escolher preceitos religiosos e adotar regras religiosas que
sejam do nosso agrado. Até ousamos, em nossa presumida liberdade, fazer uma
escolha entre ter ou não ter crenças religiosas identificáveis com religiões
ou, com o estilo de pessoas religiosas.
Constata-se, de forma geral, que a
religião perde a capacidade de estabelecer imperativos e normas para a crença
das pessoas, porque elas restringem este campo de regras gerais para todos e,
quando as admitem, procuram levá-las em conta, apenas para a esfera íntima e
privada.
Sem dúvida, esta mudança pode ser fruto
da onda consumista que nos envolve, porque estamos sendo induzidos e
chantageados a nos identificar com variados valores simbólicos e culturais.
Também nos sentimos estimulados a apropriar-nos do maior número possível de
bens materiais. Assim, acabamos adotando estilos variados, nem sempre originais
e espontâneos, porque eles, mesmo na sensação de que constituem algo
significativo para nós, aparecem como reflexo do que anteriormente foi assimilado
para ser consumido.
Em decorrência, certas imagens, certos
sonhos e certos sons, adotados em nosso mundo de fantasias como meios que nos
tornam heróis, importantes, originais e muito distintos dos outros seres
humanos, são, na verdade, imperativos econômicos. Nesta nova dependência,
revelamos um paradoxo, ou uma contradição, pois, tendemos a não aceitar regras
religiosas, mas, toleramos, com a maior facilidade, regras impostas pelos
ditames ou pelas prescrições do sistema de consumo.
Esta mudança de postura em relação aos
valores religiosos, mais do que uma incoerência das convicções pessoais, pode
representar uma estimulação maior de uma força aparentemente oculta que se
impõe pelo atual sistema de vida. Este nos coloca numa situação que pode ser
ilustrada com a imagem de quem vai tomar banho na piscina de um navio: a pessoa
pode estar optando por nadar no rumo norte da piscina, mas o navio a leva, com
a piscina, para a direção sul.
Como a rota do navio, ou a onda de
consumo estabelecida na sociedade apresenta uma força maior e se constitui num
imperativo mais categórico, radical e sugestivo do que o religioso a respeito
do que fazer para “sentir-se bem” pode, todavia, mover pela convicção de não
aceitar nenhum imperativo exterior e, mesmo consumista, nos mover sob a ação do
imperativo econômico superior, do qual não nos damos conta. Deste modo, assim
como pensamos estar na plena liberdade para experimentar tudo e qualquer coisa,
sentimo-nos no direito e nas condições de fazer nossas opções religiosas,
segundo critérios subjetivos. Todavia, podemos estar como frangos de engorda
nos aviários, sendo tratados para uma ilusória autonomia.
O que se pode, então, esperar da
religião? Certamente, grande parte dos que a procuram, a buscam apenas na
medida em que ela oferece prazer e emoção e vantagens econômicas. Se a religião
ainda pretende ajudar na construção objetiva de comunidades, na construção de
ambientes mais humanitários, de pessoas mais solidárias, de “EUS” importantes
para a convivência social, ela só encontra sucesso enquanto oferece satisfações
agradáveis. Daí a dimensão light, diet e soft de tantas ofertas religiosas que
se apresentam em programas televisivos, radiofônicos e até de celebrações
comunitárias.
Aparentemente as ofertas de consumo incorporam,
além dos impostos e das imagens hiper-reais dos produtos, outro importante
ingrediente: o do sentido de vida para as pessoas, pois, vêm associados a
prazer, a realização e a felicidade.
Por
conseguinte, encontramo-nos diante de um sistema de vida e de consumo que leva
a um deslocamento do eixo da religião. Ela perde a função de ser gestora de
vida pública e social, papel que exerceu intensamente ao longo de muitos
séculos em nossa sociedade ocidental, e passa a ficar restrita ao nível das
escolhas pessoais. Sem sua tradicional função socializadora, a religião fica
dependente da esfera das escolhas feitas por motivações subjetivas.
Tal fenômeno, evidentemente, provoca
crises nas religiões que se apresentam como universais e como únicas portadoras
da verdade e da salvação...
A entrada em cena das buscas e das manifestações religiosas
decorrentes da ordem pessoal de escolhas gerou, nos últimos anos, um
relativismo que pode ser aglutinado em duas formas já conhecidas:
a) a
espiritualidade difusa – que
centraliza emoção, o sentimento, a sensibilidade e a busca de identidade (a
minha religião sou eu mesmo); A espiritualidade difusa leva a uma prática
religiosa sem vínculos institucionais. Neste distanciamento, predomina a
religião subjetiva e intimista. Os outros, geralmente, sequer conseguem
perceber esta “minha religião”...
b) a espiritualidade performática – que é uma reação praticamente contrária à concepção difusa,
mas, que se situa no mesmo quadro emocional. Pelo menos aparentemente, é
saudosista, porque se apresenta como a mediação para recuperar o “paraíso
perdido”. Por esta razão argumenta com verdades categóricas e absolutas como
certezas de salvação. Como também se situa na perspectiva emocional e
sentimental, oferece o sagrado e o transcendente através de graças e de
milagres. Trata-se de uma re-institucionalização que tenta implantar o
imperativo doutrinal, porém, adaptado ao novo ambiente consumista;
Esta espiritualidade valoriza
particularmente dois elementos: o corpo e a linguagem persuasiva: tenta
fascinar, envolver por danças, ritmos e muitos gestos direcionados. É um
direcionamento sutil: “feche os olhos”, “faça isto”, “pense tal cena”; “diga
isto e mais aquilo para Deus neste instante...”. “Ele quer que você faça
isto...”; “repita comigo”; “ponha a mão sobre o coração”; “não resista a Deus...”;
“aceite o Espírito Santo” e tantas outras orientações que levam a estados de
transe.
Ao lado dos comandos direcionados, a
espiritualidade performática apresenta certezas religiosas, associadas a
técnicas psicológicas dos chamados “pios conselhos” para a vida familiar e
matrimonial. Tais conselhos apresentam forte conotação moralista e moralizante,
como bem se pode observar em muitos e variados programas apresentados em rádio
e televisão.
Estes discursos de certezas categóricas
misturam-se a técnicas psicológicas relativamente simples, por meio das quais,
contudo, se supõe que aconteça a manifestação divina: a intervenção forte e
imponente do sobrenatural, bem como, a ação milagrosa instantânea e eficaz do
Espírito Santo...
Esta espiritualidade performática
procura, por trás dos olhares sorridentes, artificiais e da linguagem
midiática, uniformizar e estereotipar o que espera dos fiéis: uma regeneração
moral, psíquica e comportamental. Pelo esforço de enquadramento, aparecem aos
desejosos de mudança e “conversão”, as promessas financeiras e, com a maior
facilidade, exploram-se casos individuais literalmente duvidosos, tais como:
“estava perdido e a graça de Deus me salvou; agora estou rico...”, “estava na
desgraça e Deus me resgatou...”, “estava na devassidão e o Senhor me
libertou...”; “estava perdido e Deus, mesmo assim, foi ao meu encontro...”;
“estava cego nesta vista, depois na outra e, agora, enxergo nas duas”; “estava
surdo num ouvido e de repente nos dois, mas, depois da graça, aqui nesta
Igreja, ouço nos dois”...
Na narrativa destas mirabolantes e
miraculosas interferências de Deus, ocorre, todavia, uma manifesta banalização
do milagre, pois sempre vem condicionada à assídua participação da pessoa fiel
na determinada Igreja ou em determinado movimento e diante de certa pessoa. Um
exemplo ilustrativo é o efetuado pelo padre Marcelo: o milagre acontece quando
se bebe a água que ele benze no referido programa...
Diante deste quadro, torna-se
importante lembrar uma insistência comum do teólogo João Batista Libânio: ele
costuma destacar que a fé cristã, ou é comunitária e eclesial, ou não é fé
cristã.
Por isso,
podemos indagar-nos a respeito dos desafios que se apresentam, hoje, à vivência
da fé cristã na vida urbana.
Um primeiro aspecto que podemos salientar
é o de que as conversas sobre religião não se centralizam, tal como acontecia
há décadas atrás, em torno do padre e da comunidade, mas muito mais em torno da
identidade e da razão de ser da Igreja. A simpatia pelas escolhas subjetivas da
religião traz aos cristãos uma real dificuldade para a vivência da
eclesialidade ou, da participação na comunidade.
As dificuldades relativas à pertença
numa comunidade envolvem ainda outras questões delicadas para a eclesialidade
da fé: seria o pecado e, a graça seria apenas uma questão da interioridade
individual? Afinal, que tipo de aliança supera o pecado?
As dificuldades também se alargam
quando tentamos pensar a Igreja: precisa ela renovar-se, isto é, adotar outras
formas, outras regras, ou precisa apenas reformar algumas grandes tradições
herdadas do passado?
Mais outro nível de dificuldades pode
aparecer quando pensamos no papel social da Igreja: precisa ela ser conformista
e conformada com o ambiente social ou precisa ela ser profética, tal como na
ótica de Jeremias, ser capaz de cortar, demolir para edificar algo melhor?
Ao lado das múltiplas dificuldades,
ainda temos que lidar com as muitas decepções em torno de infidelidades e de
muitos problemas criados em comunidades que, na verdade, acabam sendo adiados e
não resolvidos. Estas tensões e conflitos fazem com que muitas pessoas
realmente desanimem e se isolem da vida e da pertença a uma comunidade.
Evidentemente, quando pensamos em
Igreja na cidade, não aparecem apenas problemas. Certas críticas e fofocas não
passam de deslocamento de sintomas pessoais, projetados sobre outros ou sobre a
comunidade e, o menor nível de bom-senso é suficiente para contestá-las.
Podemos constatar, ao lado destes sinais
edificantes, incontáveis pessoas que nos enchem de admiração e de encantamento
pela sua constância, pela sua fidelidade e pela sua capacidade de ação para o
entendimento e o bem-comum e pela sua fortaleza na fé. Igualmente podemos
experimentar, em muitas situações, que a Igreja está sendo um eficaz sacramento
de salvação porque encarnada, ativa e eficiente, age para solucionar variadas
dificuldades sociais e humanas.
III
REPERCUSSÕES DA
GLOBALIZAÇÃO NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO URBANO
Neste capítulo
vamos salientar alguns elementos da globalização que nos ajudam a entender o
“porque” da rápida transformação religiosa nos ambientes urbanos. Especialmente
na quebra de fronteiras, a globalização mexe com nossas heranças e tradições religiosas.
As ciências sociais, especialmente
Sociologia, História, Psicologia e Antropologia, tiveram seu surto de afirmação
e notável crescimento no século XIX, momento em que o nacionalismo também se
encontrava no auge de sua capacidade de afirmação. Ainda hoje, a maioria dos
conceitos, problemas que aparecem e a consequente busca de interpretação e
entendimento destes fenômenos sociais, estão relacionados à concepção de
Nação-Estado, envolvendo política, economia, religião, problemas sociais,
autonomia, soberania, etc., em função da organicidade e coesão da própria
nacionalidade.
Este dado é
fundamental para pressupor que os pensadores clássicos das ciências sociais
tivessem pensado os problemas que os inquietavam, dentro de quadros
referenciais nacionalistas. Por esta razão, pensadores de nossos tempos, como
Octávio Ianni e Renato Ortiz, chamam atenção quanto aos discursos e conceitos
destas ciências sociais: estão se mostrando inadequados para explicar o
fenômeno da globalização de nosso tempo porque ela extrapola o parâmetro
nacionalista.
A
globalização não é um fenômeno totalmente novo das últimas décadas. Pode ser considerada
continuação de profundas transformações sociais e mentais realizadas há mais de
um século. Expressões de mais tempo indicavam esta mudança, como as de “aldeia global”, ‘fábrica
global”, “sistema mundial”, “mundo virtual”, “consciência cósmica”, “mundo
sistêmico”, ”racionalização do mundo”, “holismo”, etc.
3.1 - O que é
globalização?
A globalização é um conjunto de fenômenos culturais,
políticos e econômicos que ultrapassam as fronteiras de povos e de nações.
Atingem indivíduos, grupos, classes e sistemas de organização social.
A primeira pergunta que tal definição
certamente desperta, é relativa ao Estado-Nação: vai este desaparecer? Tal previsão se torna difícil de ser feita
devido às muitas contradições da condição humana. Entretanto, pelo que a
globalização está mostrando, vai continuar a ser uma “aldeia global” ocupando
vilas, povoados, estados, nações e irradiando cultura e civilização. Em outras
palavras, vai gerar novas formas de vida, de crença e de convivência humana.
Com certeza, vão continuar, e por muito
tempo, nações mais dominantes, mais desenvolvidas e mais industrializadas,
vivendo ao lado de outras mais modestas, problemáticas, contraditórias,
conflitivas, mas empenhadas na busca de superação das dificuldades. Vão lutar
pela sua pátria, pela sua identidade, por suas regras, por seu sistema
jurídico, por sua língua, seus traços religiosos, seus heróis e suas memórias
de conquista e superação. Mesmo assim, a progressão da marcha globalizadora no
planeta Terra, indica um gradual processo de aniquilamento dos Estados-Nações.
Convêm, todavia observar, que nenhum Estado vai aceitar desaparecer, sem
mecanismos de reação e ajustamento, para dar lugar à globalização: irá
certamente redefinir-se, rearticular-se e adaptar-se às novas injunções
globalizadas, e, não será em poucos anos que irão desaparecer os Estados com
sua história, sua geografia, cultura, tradições, crenças, símbolos, memórias e
monumentos.
Renato
Ortiz usa a expressão “novo patamar” para
caracterizar a globalização, uma vez que apresenta certa ruptura, mas
apresenta, simultaneamente, uma continuidade do sistema capitalista e da
revolução industrial dos últimos séculos, ou seja, constitui-se num degrau de
avanço sobre outras experiências anteriores.
O que se
pode observar de forma genérica, é que as nações já não interagem mais de forma
autônoma, e, nem tampouco se percebe que suas inter-relações são causadas por
um centro hegemônico, como até pouco tempo se pensava.
Segundo
Ianni, as características da globalização, além de numerosas, são também
poderosas e podem tornar o Estado-Nação anacrônico, e fazer da soberania
nacional uma quimera porque vão implantar outras regras e exigências de
ordenamento mundial: “com a mundialização
da economia, política e cultura, emergem desafios relativos aos mais diversos
aspectos da sociedade propriamente global: ecologia, ambientalismo, energia
nuclear, terrorismo, narcotráfico, máfia, xenofobia, etnocentrismo, racismo,
mercados, patentes, convertibilidade de moedas, moeda regional, moeda global,
telecomunicações, monopólios, oligopólios, produção e difusão de
informações...”
Uma segunda questão, que possivelmente emerge da definição
de transgressão das fronteiras, diz respeito a todo um contexto que permitirá
aos indivíduos circular em todas as direções do planeta, o que irá mudar
substancialmente suas identidades, porque vão absorver outros costumes e
aprendendo outras formas de relacionamento e de concepção da vida. A
internacionalização do trabalho, do mercado e da cultura, vai recriar espaços
físicos, culturais, políticos, econômicos e até turísticos. Sob este aspecto,
convém lembrar que a globalização não é uma realidade à parte, ou fora das
realidades nacionais. No entanto, ao entrar em todos os espaços, tanto
geográficos quanto culturais, vai gerar outro tipo de combinações, seja no
relacionamento ou na organização social e na manifestação das crenças religiosas.
3.2 - Quando surgiu a globalização?
O termo “globalização”
começou a ser usado em escala mais abrangente e larga, somente a partir de
1980. Nesta época as economias do Pacífico Asiático (Japão, Coréia e Taiwan),
os chamados “Tigres Asiáticos” estavam revelando um crescimento, que aparecia
aos olhos de muitos analistas como sendo quase perfeito. Segundo Dae Won Choi “com o Acordo Plaza de 1985 deu-se início à
globalização. Este período é caracterizado por uma crescente incerteza por
diversas razões. Primeiro, porque é um eufemismo para a liderança industrial do
Pacífico asiático em termos de epicentro da globalização. Segundo, porque o
desenvolvimento na materialização do conhecimento humano é alcançado em
detrimento de uma dramática relativização da variável tempo. Finalmente, houve
grande volatilidade causada pela nova e inesperada realidade”.
As incertezas, todavia, apresentam raízes mais distantes e
decisivas que vamos destacar no item que segue.
3.3 - Antecedentes
da globalização
A globalização propriamente dita foi antecedida por dois
fenômenos bem distintos, mas ao mesmo tempo, relacionados:
a) Internacionalização
- cresceu
espantosamente a circulação de produtos para além das fronteiras nacionais, a
partir do século XVI, e, sobretudo, com a revolução industrial no final do
século XVIII. Este fluxo de mercadorias atingiu praticamente todas as partes do
planeta.
b) Transnacionalização
– Este fenômeno
levou à produção de partes de máquinas e equipamentos em diferentes países. Um
exemplo ilustrativo foi o do automobilismo: as peças de um carro passaram a ser
produzidas em distintos lugares e montadas em outros. Segundo Choi, “transnacionalização significava produção
transferida do centro inovador, mas de alto custo, para as terras e trabalho
mais barato da Periferia quando o produto estava pronto para permitir
estandartização. Como o produto continuava a evoluir novas localizações
externas foram encontradas para uma combinação de fonte e acesso mais baratos a
novos mercados.”
A partir destas duas características, poderíamos concluir
que a globalização resulta apenas de um fenômeno de mercados, de tecnologia e
de comunicação. No entanto, a globalização também se dá em paradigmas
culturais, mesmo que não seja de forma tão explícita e vistosa como nos
mercados de capitais.
Num certo prisma, poder-se-ia também
pensar que a globalização está sendo uma mundialização da cultura ocidental.
Neste caso, significaria a morte das culturas locais e regionais. Por mais que
estas tentassem salvar suas particularidades e, por mais que pretendessem
independência e autonomia política, acabariam sendo desintegradas porque a
cultura do Ocidente, exportada, acabaria com os mundos culturais de povos,
etnias e identidades contextualizadas. Observa-se, todavia, que este processo é
dialético, revelando ascensão de novos elementos culturais, mas ao, mesmo
tempo, fenômenos de resistência e de negação do que é apresentado como novo.
Assim como alguém pode absolutizar a universalização de um mundo ocidental,
pode absolutizar um particularismo, talvez tão ou mais abstrato como o outro.
Sob a defesa da universalidade ou da particularidade local, esconde-se,
normalmente, uma postura ideológica e, também, conflitos éticos e políticos em
torno de poder e dominação.
A este respeito, não ocorre apenas uma
limpeza, como na linguagem da computação quando se fala em “deletar”, ou apagar
tudo o que estava escrito, desenhado ou gravado. O que se pode reparar é que,
ao lado da globalização, as culturas locais continuam assumindo seu passado,
suas tradições e não necessariamente são bloqueadas as suas tradições e nem
mesmo seus ideais. Podem nascer dali, passos para algo novo e diferente do
porvir cultural. De qualquer forma, estamos diante de uma adequação entre
contextualidade local e universalidade, na qual pode tornar-se mais saliente
tanto a universalização da cultura quanto a recuperação de culturas locais.
3.4 – Explicações
mais comuns sobre a globalização
Há diversas e distintas maneiras de explicar os recentes
fenômenos culturais, identificados com a globalização:
a) Um centro irradiador – Centros hegemônicos, como os Estados
Unidos e a Europa, estariam aumentando sua incidência sobre nações periféricas,
que antes estavam mais autônomas, independentes e isoladas. Neste caso, a
globalização poderia ser definida como uma moderna forma de imperialismo. Há
algumas décadas atrás, por exemplo, costumava-se fazer este tipo de leitura
aqui em nosso Brasil.
b) A globalização vista pela idéia de
uma “sociedade global”.
Tal leitura permite dar maior ênfase a tudo quanto implica em relações
macro-sociais ou planetárias. Sob este ponto de vista, já não estariam
acontecendo inter-relações de um País ou de uma sociedade com outras, mas, um
processo diferente de “intra-relação”, isto
é, não serviriam mais os referenciais de “centro-periferia”, ou “dentro e
fora”, mas estaria ocorrendo um novo modo de relações humanas.
Este novo modo de
ser implicaria numa “desterritorialização” dos espaços que, antes, estavam
delimitados, marcados e definidos por conceitos, regras e direitos. Nesta nova
forma, mundializada, ”faz parte do nosso
cotidiano, de nossos hábitos (fazer compras, ir ao cinema ou ao teatro, ver
televisão, olhar a publicidade, se deslocar pelas ruas, sair de férias, etc.) A
mundialização da cultura não é uma ‘falsa consciência’, uma ‘ideologia’ imposta
de forma exógena. Ela corresponde a um processo real, transformador do sentido
das sociedades contemporâneas.”
c) A questão do
“de onde” ler a globalização - Se o referencial das nacionalidades não é adequado para ler
a globalização, qual seria o perfil mais adequado para uma análise? O das
classes sociais?
Se
a globalização realmente se situa para além dos limites territoriais, então,
com certeza, não poderá ser lida adequadamente da referencialidade territorial.
Precisará, por conseguinte, o referencial de análise também ser
desterritorializado. Sob tal ótica, não poderíamos fazer uma leitura apropriada
da globalização, desde o Brasil, por exemplo, ou de qualquer outro País, porque
nos levaria a utilizar os velhos conceitos territoriais.
d)
Postura otimista diante da globalização
- Não são poucos os que veem na globalização uma primorosa
chance de possibilidades para que os excluídos da chamada “aldeia global”,
possam, através dos recursos da tele-informática, entrar num processo de
inclusão. Usando uma imagem bíblica, seria o momento de se implantar uma
linguagem capaz de superar a “Torre de Babel” da confusão de línguas, costumes
e separações classistas.
e)
Concepção pessimista da globalização - é a que supõe que
o fenômeno da globalização aniquila de vez as diferenças, os valores locais e
as conquistas históricas de minorias étnicas, para padronizar tudo num único
referencial de cultura. Seria algo parecido como comer em qualquer parte do
planeta um hamburger Mc Donald’s.
f)
Atitude desconfiada da globalização – integra uma
representação de pessoas que veem na globalização o risco contrário da
multiplicidade de valorizações locais, específicas e de resistência à
“uniformidade global”, e veem precisamente nisto o risco da “Torre de Babel”,
ou seja, incapacidade de entendimento, porque vão surgir tantos
fundamentalismos, e afirmações particularistas que os seres humanos já não
acharão caminho de entendimento. Com um pouco de bom-senso, certamente se
poderá perceber que a vida real ainda está longe, tanto da unidimensionalidade
quanto da multiplicidade cultural. Os extremos, portanto, não parecem
apresentar as ameaças mais sérias à vida humana.
g) O lugar que mais explicita a
globalização - Sem dúvida, é a grande cidade o lugar
que melhor explicita a globalização do mundo. Segundo Ianni, a cidade manifesta
o que existe de mais avançado e extremado em termos de possibilidades sociais,
políticas, econômicas e culturais e é ali que florescem os mais variados tipos
de experimentos filosóficos, artísticos e científicos.
Uma cidade revela,
simultaneamente, aspectos tradicionais, locais, regionais, mas também nacionais
e mundiais. Umas são mais artísticas, outras mais culturais, outras mais
tradicionais, outras mais religiosas, umas mais conservadoras e, outras,
extremamente abertas a qualquer tipo de novidade. No entanto, quanto maiores,
mais as cidades misturam diversidades e multiplicidades de características. Ali
se ampliam estruturas de grandes empresas que tendem a levar o nome e a
identidade da cidade para além das fronteiras políticas, religiosas, comerciais
e do poder local. Assim, cidades como São Paulo, Frankfurt, Cingapura, Nova
Yorg, etc., se revelam cidades mundializadas ou globalizadas, independente do
sistema político-econômico-social vigente em cada um de seus Países.
Segundo Ianni, “a cidade pode ser um caleidoscópio de padrões e valores culturais,
línguas e dialetos, religiões e seitas, modos de vestir e alimentar, etnias e
raças, problemas e dilemas, ideologias e utopias. Algumas sintetizam todo
mundo, diferentes características da sociedade global, tornando-se
principalmente cosmópoles, antes do que cidades nacionais”.
Ao
mesmo tempo em que uma cidade é global, ela se subdivide em subclasses,
famílias, vizinhanças, segmentos, bairros, etnias, em que se mistura de tudo,
desde problemas sociais, de saúde, habitação, educação, etc., mas também as
mais variadas formas de lida com vistas à superação de tais situações. Parece
haver lugar para tudo e para todos: mendigos, viciados, beberrões, beatos,
“rueiros”, fechados, isolados, etc. Ianni destaca que “é na cidade, metrópole ou megalópole, não só pela sua dimensão, mas
principalmente por suas articulações, que a globalização se revela um processo
de amplas implicações, novo e surpreendente, revolucionando a geografia e a
história, desafiando a prática e o pensamento de todo o mundo.”
O traço certamente mais
destacado da cidade global é o de revelar muito mais afinidade com problemas,
produtos e situações mundiais do que nacionais e regionais. Ali tende a
predominar o cosmopolitismo tanto de pessoas, quanto de objetos e de valores,
costumes e hábitos.
g) – O lugar da diferença na
globalização - Já salientamos que o processo da
integração humana se desenrola num processo contraditório, pois não é apenas
linear, porque desperta reações e resistências, mas também revela mudanças
contrárias a uma possível monocronia cultural.
Se
a cidade revela a dimensão globalizadora, a política parece revelar um fenômeno
que foge da compactação de tempo, de distâncias, de diferenças e de barreiras
culturais para tornar hegemônicas as características grupais e os interesses
locais. Basta ver que uma política nacional perde soberania, em relação aos
últimos séculos e se abre em duas manifestações bem nítidas, mas simultâneas:
a)
De um lado, a política absorve
dimensões transnacionais, como a preocupação por direitos humanos, ambientais e
ecológicos, e revela que as regras já não dependem tanto das políticas
nacionais como protagonizadoras do bem-comum e do “bem-estar geral da nação”,
mas dependem de organizações supra-nacionais. Basta lembrar o caso do
desmatamento da Amazônia... A preocupação parece ser mais internacional do que
propriamente um caso de preocupação da organização política brasileira.
b)
Ao lado da origem supranacional de
certas posturas políticas, aparecem cada dia mais os interesses por poderes
locais. Segundo Paula Monteiro, “o
ressurgimento dos poderes locais, a fragmentação do arcabouço jurídico-político
dos Estados nacionais, a movimentação das populações ao longo das linhas de
atração dos mercados de trabalho mundiais, são elementos que põem o problema da
revitalização da lógica particularista das diferentes culturas na ordem do
dia-a-dia da nossa reflexão.”
Uma ilustração do interesse local,
priorizado em relação ao nacional, pode ser verificado no interesse de
políticos por cargos em certas Prefeituras, como a de São Paulo, mais disputada
do que o de governador ou de cargo no Senado.
Ao
lado desta emergência local, aparece também muito evidente a política de grupos
e não mais a política da democracia. O pressuposto clássico da democracia, no
horizonte das nacionalidades, era o de que cada indivíduo é um agente político
na sociedade. Desta forma, as sociedades passariam a contar com muitas
instâncias de organização política para a soberania da nação. No entanto, o que
podemos observar, é que os políticos já não são porta-vozes de interesses
nacionais, mas, apenas, dos grupos que representam. E quando estão em cargos
hegemônicos, usam os recursos nacionais para os interesses do seu grupo, sem
maiores problemas de consciência. Deste modo, no lugar dos interesses
nacionais, emergem os interesses grupais, porque parece ter desaparecido a
margem da fronteira entre o público, o geral e o particular. Segundo Paula
Monteiro, “prevalece, portanto, nas
democracias contemporâneas, a prática da representação dos interesses
corporativos sobre os da representação política.”
Basta lembrar os recentes escândalos de desvio de verbas públicas, como no
caso do juiz Nicolau, caso Sudene, Jader Barbalho, caso do mensalão,
“sanguesugas”, “dossiê contra o PSDB” e tantos outros. Por conseguinte, falar
em democracia parece uso de um discurso vazio, porque subentende vontades
particulares, com acesso a lugares privilegiados da esfera pública. O Estado,
como mecanismo institucional, já não se revela o melhor instrumento para
interesses gerais.
A globalização, como tantos outros fenômenos
sócio-culturais, vem se mostrando uma realidade ambígua. Há mil coisas boas,
fantásticas e encantadoras, frutos deste movimento de integrar todo o gênero
humano numa mesma aldeia de valores, gostos e ocupações. Por outro lado, este
mesmo fenômeno de nivelamento das diferenças também envolve complicações e dificuldades
para quadros institucionalizados.
Um primeiro efeito
é o da “desinstitucionalização”
religiosa. Da rigidez das normas, que levavam incontáveis comunidades a
fazer as mesmas coisas nos mesmos horários ou a praticar os mesmos rituais, os
mesmos gestos e as mesmas atitudes éticas e morais, passa-se para uma dimensão
mais “soft” (suave), agradável, emocional e que não interfira nas estruturas
sociais, econômicas e políticas, por mais injustas e inadequadas que possam
apresentar-se para os membros de uma sociedade;
Um segundo aspecto
é que a globalização desperta uma ênfase para a busca de novas experiências. Parece que estamos num mundo onde tudo
e qualquer coisa podem ser feitas e experimentadas. Assim, ocorre um natural
estímulo para experiências novas, ousadas, que encantem e fascinem as pessoas,
isto é, busca-se viver, “aqui e agora”, a festa celeste.
A globalização
também quebra a hegemonia católica sobre
os setores populares. Uma vez em nome do carisma da instituição, da
autoridade e da vinculação com o divino, a Igreja tinha certo poder de
incidência sobre espaços populares mais modestos e pobres. Hoje, este carisma
da “função da Igreja”, por efeito da globalização, passa a incidir sobre o
“carisma da pessoa”, isto é, a pessoa entra numa Igreja, num grupo ou em algum
movimento, segundo simpatia ou afinidade com uma pessoa de referência (padre,
pastor, ministro da Eucaristia, catequista, etc.). Assim, como no geral, as
pessoas tendem a afastar-se do Estado, ocorre, também, o mesmo em relação à Igreja:
um distanciamento da instituição e um maior encantamento pelo perfil
carismático de pessoas, que, não necessariamente precisam convencer pelo
domínio ou experiência religiosa. Basta que tenham fama e que despertem
simpatia.
A globalização gera, igualmente, um
processo que desprende o campo
“religioso” do quadro institucional das Igrejas, e ajuda a criar uma
situação em que tudo passa a ser religião, mas, uma religião tão autônoma que
não tem mais vínculos com a origem, com a tradição e com o próprio passado.
Isto, impreterivelmente, gera uma autonomia religiosa que facilita a chamada
“religião difusa”.
Pelo lado positivo, a globalização está
provocando um fenômeno de maior respeito em relação ao fenômeno ou à prática
religiosa, no sentido de que a religião se torne menos impositiva na vida. Tal
situação favorece a emergência de manifestações religiosas locais, que, antes,
eram abafadas, condenadas e até exorcizadas como manifestações demoníacas.
Portanto, se, de um lado, poderíamos pensar que o terreno religioso perde
espaço, especialmente diante de incertezas nos trabalhos de evangelização, é
também notória a percepção de uma grande mobilização humana em torno de mais
certezas, de mais realização e de mais vínculos que liguem as pessoas, umas com
as outras e estas, em comunidades ou organizações de movimentos eclesiais.
Outro aspecto da globalização que, no
entanto, parece ser altamente prejudicial para uma razoável vivência religiosa
é o do aumento da heterogeneidade provocada pela pobreza, desemprego e exclusão
das pessoas. Tais distanciamentos geram barreiras muito difíceis de serem
contornadas e criam formas agressivas, hostis e de fechamento a qualquer tipo
de possível diálogo. Como o sentido da vida de grande parte das pessoas depende
dos ideais da televisão, sua experiência religiosa se torna acrítica e
descomprometida com as condições das outras pessoas, porque a televisão leva a
uma perda de sentido e de compromisso com as questões locais, sejam
territoriais, culturais ou religiosas.
Para retomar: Que efeitos a globalização vem provocando
sobre o imaginário religioso?
IV
INTERPELAÇÕES URBANAS À AÇÃO EVANGELIZADORA
O título deste capítulo implica em necessário
esclarecimento inicial sobre as duas palavras chaves: o que entendemos por
“cidade” e o que significa “ação evangelizadora”?
Costumamos
falar de cidade para organizações humanas muito parecidas, mas que podem ser
muito diversas umas das outras. Basta comparar cidades pequenas a capitais ou
grandes metrópoles, como São Paulo, Nova Yorg, Tóquio, ou Pequim. Mesmo que
todas sejam chamadas de cidades, são extremamente diferentes umas das outras.
Ainda que todas estas e outras cidades sejam obra arquitetônica produzida por
seres humanos, o comportamento dos que fazem uma ou outra cidade não é o mesmo.
Há cidades modestas e menores que bairros periféricos de outras cidades; há
cidades que não passam de dormitórios de cidades vizinhas. É o que vem
ocorrendo em torno da maioria das grandes cidades brasileiras como Goiânia,
Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, etc. Há cidades que se auto-proclamam
cidades, mas que iniciaram há poucos anos; há outras cidades que começaram como
vilarejos e foram aumentando ao longo de séculos a ponto de se constituírem
grandes metrópoles. Assim a variedade de cidades nos permite observar que umas
parecem ser parasitas de outras, tal como carrapato que se aloja no couro de um
bovino, outras parecem ser mais auto-suficientes, outras mais acolhedoras,
outras mais humanitárias, outras ainda, mais enfeitadas, umas mais simples e
outras mais complicadas e difíceis.
Convêm,
pois, ter presente que cidades podem estar em fase inicial, em fase de mais
organização e com traços peculiares de seus moradores, cidades que se tornam
centro de outras cidades em redor, cidades que vivem de grande exploração de
mão-de-obra de outras regiões, cidades que estão viradas em burocracia para
controlar e dominar as pessoas e cidades que se encontram em verdadeiro
declínio e processo de morte, a ponto de se inventarem anedotas sobre quem vai
ser o último a desligar a luz, ao sair...
Há cidades
mais industriais, outras mais comerciais, outras mais habitacionais, outras
mais operárias, outras isoladas, enquanto outras intensamente interligadas com
outras por vias de asfalto, de mar, de rio, de aeroportos. Umas são horizontais
e outras verticais, isto é, umas são baixas e bem extensas, enquanto outras,
feitas de verdadeiros espigões que sobem aos céus, com 20, 30 ou mais andares
sobrepostos. Vemos, pois, que uma cidade, com dois mil habitantes, será bem
distinta de outra com 130 mil ou de 1.000.000 ou de 18.000.000 de habitantes.
Além destas diferenças, convêm ainda notar a diferença de uma cidade para
outra, no que diz respeito à valorização de seus membros. Onde ocorre
crescimento mais rápido, tende a ocorrer maior exclusão social. Nossa cidade
ilustra bem este aspecto: há vilas para muitos níveis sociais diferentes:
ricos, médios, medianos, pobres e miseráveis... Estes dados gerais já nos
apontam uma evidente dificuldade para alguém ser cristão autêntico e promover
sinais do reino de Jesus Cristo na cidade onde reside de modos que, numa imagem
ilustrativa, esta cidade venha a constituir-se em espaço humano e humanitário,
a ponto de se poder declarar que é uma “cidade de Deus”.
O segundo
aspecto do título acima nos interpela sobre o modo de fazermos nossa ação
evangelizadora, ou seja, como anunciamos Jesus Cristo na cidade? Sabe-se que
muitos o fazem da mesma forma como o fizeram em ambiente rural, outros, querem
evangelizar em cidade grande do mesmo modo como agiram em cidadezinhas bem pequenas,
e outros ainda pensam agir na cidade dentro do modelo medieval de espaço físico
determinado e medido por divisas. Querem forçar as pessoas de um determinado
espaço a fazer as mesmas coisas em termos de festas, ritos ou celebrações,
quando elas preferem ir a outros espaços, vilas, paróquias ou lugares de
encontro ou de oração.
Ao lado
destas marcas, podemos verificar um fenômeno na cidade: torna-se cada vez mais
comum, que, numa mesma quadra, encontremos mais do que três templos religiosos
diferentes. Outro traço muito destacado: as Igrejas matrizes ainda ocupam o
centro mais visível da cidade, normalmente rodeadas de praça, mas já deixaram
de ser centro irradiador de vida para a cidade. Basta reparar o lado visível
das Igrejas que apresentam torres altas. Já começam a ficar escondidas no meio
de outros prédios maiores.
De alguns
anos para cá, ocorreu uma notável mudança geral nas cidades quanto ao aspecto
religioso: já não é mais o quadro religioso cristão que dá o tom e o toque à
vida da cidade. Vive-se um colorido imenso e muito variado de incontáveis
ofertas religiosas. A religião deixou de moldar as cidades, mas, não está fora
das cidades. É só ver que as cidades estão cheias de espaços religiosos. Muitos
até roubam os espaços de cinemas, de grandes lojas, de modos que ocorre uma
grande concorrência entre ofertas de milagre, de salvação, de curas e de tudo
quanto se possa imaginar em termos de promessas de felicidade. Esta grande
variedade de ofertas de consumo religioso provoca verdadeiras rivalidades para
ver quem apresenta mais espetáculos e quem possa se sobressair em relação às
demais. Ao lado disso, a religião que promete mais satisfação, parece tornar-se
a mais frequentada. Seja do tipo que for, mesmo que logre as pessoas...
4.1 – Características da evangelização na cidade
O
que de forma geral se percebe, é muita inquietação e vontade de fazer algo
diante do fenômeno urbano, pois parece apresentar uma atividade semelhante a um
rolo compressor: compacta tudo quanto vem pela frente. A recordação do passado
de muitos agentes de pastoral faz com que se sintam inquietos. Foram marcados
por uma herança de outro jeito institucional. Este outro jeito, fortemente
marcado por traços rurais, deu certo durante um longo tempo histórico, mas,
atualmente, se revela insuficiente para os desafios novos que as cidades
apresentam aos que querem evangelizar, seja em atividades comunitárias de
catequese ou de outros serviços de ação evangelizadora.
Muitos
agentes parecem sentir a sensação de que não dá para esperar muito, ou primeiro
aprofundar-se em algum estudo, mas, que é mais urgente e importante agir.
Assim, antes mesmo de repensar sua atividade normal numa comunidade, sentem-se
cobrados ou impelidos a fazer alguma coisa para que a Igreja, suas obras e suas
atividades, não desapareçam. Esta espécie de precipitação, ou sensibilidade
prática para fazer pelo menos alguma coisa, na verdade, remete para outra
questão mais profunda: precisa a Igreja ainda ser o centro de organização da
vida na cidade?
A
precipitação, apesar da boa vontade e da honesta intenção de ajudar a fazer
alguma coisa pelo bem-comum, pode não chegar a produzir bons frutos quando
reproduz uma série de vícios que já há mais tempo se manifestam nos serviços
pastorais, tais como:
- Cada um tentar, por si mesmo, fazer
alguma coisa, sem envolver outras pessoas na mesma atividade;
- Trabalhar sem objetivos, sem plano, sem
previsão e, desta forma, avaliar apenas o resultado visível como critério para continuar
a fazer as mesmas coisas;
- Cada um sentir-se dono do que faz e,
fazer as coisas acontecerem do jeito que sua cabeça pensa, sem partilha, sem
troca de ideias, sem equipe de trabalho e sem discípulos;
- Cada um considerar-se o centro de tudo
quanto acontece, num setor de pastoral ou de um movimento, sem deixar espaço
para a ajuda de outros ou para qualquer coisa que possa ser diferente.
Nas formas um tanto desesperadas e
autônomas, corre-se o risco de esquecer-se que o Concílio Vaticano II, na
década de 1960, revelou ao mundo uma intuição muito rica do papa João XXIII: a
do diálogo com o mundo moderno.
Aquele Concílio também modificou um
conceito de explicação da Igreja: a de ela ser a hierarquia e clero. Pela nova
e feliz formulação, a Igreja passou a ser a ser entendida como a integração das
pessoas batizadas. Esta foi uma mudança profunda e muito significativa na
auto-compreensão da Igreja, porque passou a valorizar os leigos em nível de
igualdade aos serviços hierárquicos (embora muitos ainda hoje não queiram
perder o status de seu cargo ou o exercício de poder).
Outro aspecto muito importante daquele
Concílio foi o de recuperar a noção do anúncio do Reino de Jesus Cristo e não o
da Igreja, isto é, todos os batizados passaram a ser convidados para ser sinal
de Deus presente na vida, a partir das quatro características do grande sucesso
dos primeiros cristãos: pelo anúncio, pelo diálogo, pelo serviço e pelo
testemunho. Significa, em outras palavras, que uma das grandes interpelações ou
tarefas da Igreja é a de promover a justiça do Reino, anunciado e vivido por
Jesus Cristo.
4.2 – O diferente
nas cidades de hoje
Existem cidades desde há milhares de anos. Enquanto a
maioria das cidades era de pequeno ou médio porte, continuou a prevalecer nelas
a força dos laços de parentesco, de religião e de raça.
De um tempo para cá, no entanto, ocorre
algo diferente em nossas cidades. Elas quebram o tipo de laços tradicionais que
vieram de raça, parentesco e religião e oferece combinações de raças, cores,
gostos de todos os tipos imagináveis. A cidade começa a tomar distância destes
antigos vínculos de pertença, e desperta maior autonomia das pessoas, de modos
que elas procuram livremente outras pessoas para convivência, passatempo ou
esportes, sem ligar tanto para parente, raça e religião.
O teólogo Comblin chama atenção de que
é preciso distinguir o que é próprio da cidade, uma vez que cada uma enfrenta
seus próprios e variados problemas, como vem acontecendo ao longo da história;
e, o que é produzido pela cultura pós-moderna e globalizada do ocidente e que
exige, da nossa parte, um novo tipo de lidas para a ação evangelizadora no
ambiente urbano. O que poderia estar se evidenciando como mais saliente nas
cidades de nossos dias?
Talvez seja o do cotidiano do domicílio eletrônico. A profunda transformação da vida
urbana vem sendo promovida principalmente pela comunicação eletrônica e dos
sistemas de informação. Eles alteram a relação do espaço entre as pessoas para
as funções rotineiras. O domicílio eletrônico também muda o jeito de trabalhar,
o jeito de comprar, de pagar contas, de divertir-se, de conseguir consultas
médicas, muda o jeito de aprender, o jeito de lidar com as coisas públicas,
especialmente, taxas e impostos (ex. declaração de imposto de renda via
Internet, os serviços chamados “on line”, etc.).
Nota-se que a proximidade das pessoas já não é
mais tão importante como era em tempos idos. Quase tudo pode ser feito à
distância. Por isto alguns cientistas chegam a pensar que a cidade vai
desaparecer daqui a algum tempo. Pode-se morar no mato, no interior e ter todas
as informações e acessos tal como na cidade... Isto certamente não será um
critério geral, porque as cidades não seguem as mesmas regras e padrões e outro
aspecto: umas se desenvolvem de forma bem diferente do que outras por questões
ligadas ao seu passado, ou ao espaço territorial ou, até mesmo, ao tipo de
regras que implantam para seus moradores.
Outra coisa importante que se pode
notar nas cidades, de certo tempo para cá, é o da perda de um centro único para
apresentar muitos novos “fluxos”, ou
seja, ocorrem muitos espaços por onde as coisas e as decisões mais circulam.
Basta pensar em telefônicas, agências, bancos, provedoras de Internet, mas
também certos lugares sociais, como lojas para ricos, bares e restaurantes para
muitos níveis de pessoas, vilas, clubes e ambientes, etc., que reúnem pessoas e
as orientam para certo tipo de vida. Tal fenômeno representa uma mudança
profunda em relação de algumas décadas atrás nas comunidades do interior ou em
cidades menores: as ordens, opiniões e decisões partiam, normalmente, de um
único lugar. Por exemplo, na Igreja: tudo vinha da matriz...
O grande avanço da micro-eletrônica e
dos modernos sistemas de informação gerou em praticamente todo ocidente, uma
cultura que já não precisa ser buscada, mas que entra nas casas e nas cabeças
das pessoas através de recursos como televisão, telefone, etc., Esta cultura,
classificada como “indústria cultural”, porque é produzida por grandes redes de
informação, invade as cidades e os espaços do meio rural e faz com que a
maioria das pessoas pense a mesma coisa sobre certas situações.
Mesmo que muitas questões urbanas possam ser
resolvidas com atitudes e procedimentos até bem simples, os desafios da
cultura, chamada “indústria cultural”, provoca um modo de sentir, pensar e agir
das pessoas muito diferentes do que estavam acostumadas a viver. No lugar de
heranças comunitárias, de parentesco ou de outras raízes tradicionais, são
apresentados outros comportamentos ideais. Contra esta oferta, nossas antigas
formas de evangelizar parecem perder a capacidade de encantar as pessoas e
vemos que já não produzem mais muitos e significativos frutos.
Podemos reparar que na cidade parecem
agir duas forças contrárias ao mesmo tempo: de um lado, a invasão de
informações que faz todas as pessoas pensarem de maneira muito similar sobre as
coisas; mas, ao mesmo tempo, a busca de lugares, de espaços de referência, ou
pontos de fluxos de informação diferente daquela que vem da televisão e que faz
uma vila apresentar um jeito diferente da outra e que leva as pessoas a pensar
muito conforme o grupo, ou clube ou ambiente que mais frequenta.
O efeito da
nova cultura e o dos diferentes fluxos de informação atinge não apenas os
espaços religiosos, mas também entra na vida, de formas a mudar hábitos,
convicções e práticas de vida, e leva a maioria destas pessoas a não se
submeter mais às orientações religiosas tradicionais e ao tipo de prática
religiosa que era comum à maioria dos católicos. Assim a “indústria cultural”
leva a buscar coisas novas e diferentes. A quantidade de novas Igrejas que
aparecem nos espaços urbanos é um ilustrativo sinal desta mudança.
Ao lado desta constatação, nota-se, também,
que, mesmo no interior da Igreja católica, aumenta a resistência para aceitar
algo que venha do lado das hierarquias estabelecidas, dos bispos e do clero,
que uma vez tinha exclusividade para administrar toda a atividade religiosa
(até mesmo as associações leigas).
Já não se espera que um determinado
grupo, como o de padres ou de religiosos, possa resolver os problemas da
sociedade, apresentando soluções meramente religiosas. No lugar do discurso
religioso e das propostas religiosas, apareceu um novo concorrente: a oferta de êxito, através do dinheiro,
fala mais alto e estimula as pessoas a procurar ciência e tudo quanto é avanço
da tecnologia, para conseguir mais dinheiro. Significa, pois, que a busca do
dinheiro vem ocupando um lugar mais importante no desejo coletivo do que a
vivência de certas práticas religiosas. Geralmente, até mesmo a busca de espaços
religiosos ou de celebrações, vem sendo motivada muito mais por questões que
envolvem desejos de dinheiro, do que, propriamente, por motivações de cunho
religioso. Com isso, a religião católica depende, cada vez menos, dos padres e,
cada vez mais, de outras pessoas, que, nem sempre estão muito ligados a
hierarquias superiores na Igreja.
Já não
resolve apelar para a autoridade, para o exorcismo, para a ameaça de
ex-comunhão, ou para a demonização do que não se submete à hierarquia. A nova
cultura faz com que a religião escape do controle do clero, dos religiosos, dos
catequistas e ministros extraordinários e até dos movimentos religiosos. Em
função da busca do dinheiro, interessa mais a novidade, a luta, a conquista e a
inovação.
Esta
problemática permite formular uma pergunta muito séria: como evangelizar no
âmbito desta nova cultura? Alguém foi preparado para isso? Os que foram mais
preparados foram preparados para outras coisas: para administrar sacramentos,
para pregar, para organizar movimentos, pastorais e grupos devocionais. Agora,
o que mais se espera deles e, de tantos outros evangelizadores, é outra
capacidade: a do talento e de certos recursos para lidar com pessoas, a fim de
encantá-las para algo importante.
Bem sabemos
que na corrida pelo êxito, através do dinheiro, surge o maior contraste da vida
das cidades: a separação e o distanciamento das classes sociais e o grande
número de pobres. Já não são apenas pobres isolados que pedem esmola, mas são
vilas e imensos bairros extremamente pobres, porque não tem o mesmo acesso à
ciência, a recursos e ao que lhes pode fornecer mais dinheiro. Dali aparece um
dos novos desafios para a evangelização na cidade: como ser solidário ou, católico, com comunidades mais pobres?
A matriz ou a comunidade mais rica, como todo
mundo ocidental, busca dinheiro e recursos para melhorar seus espaços, mas,
para muito poucas sobra algo que possa ser democraticamente repartido a outras
comunidades. Muitas vezes há rivalidades e competição para ver quem arrecada
mais dinheiro, mas isto não atrai os pobres e nem lhes abre mais espaço. Pelo
contrário, fecha e distancia os caminhos de proximidade. O novo desafio requer
da própria Igreja, um dolorido processo de conversão, para que tudo quanto a
sociedade espera de governantes e autoridades de serviço possa ser mais
democraticamente distribuído, interpela também a Igreja, para que se torne mais
democrática, sensível à necessidade de grupos periféricos e menos
privilegiados. Mexer neste assunto tende a irritar muitas pessoas que prestam
serviços de animação e diretoria.
4.3 – Como evangelizar na cidade?
Cada um de nós certamente gostaria de encontrar respostas
prontas e fáceis de serem diretamente aplicadas. A tarefa, no entanto, é um
pouco mais penosa, mas não impossível.
Tal como no capítulo 10 do Apocalipse,
cabe-nos devorar o pequeno “livrinho aberto”. O que seria isto? Apropriar-nos da mensagem do Cristo
Ressuscitado, tarefa esta, que, no começo, parece doce como mel de abelha.
Quando nos defrontamos com a mensagem de Jesus Cristo, de modo semelhante ao
dos primeiros cristãos, ficamos encantados, mas, na hora de fazer a digestão
deste conteúdo ou, ao fazê-lo, tornar-se força de transformação da vida, aí, o
sabor parece mais amargoso que cafezinho sem açúcar.
No referido
capítulo aparece (no versículo 11) uma frase de ordem: você precisa ainda profetizar... Como naqueles tempos difíceis das
primeiras comunidades cristãs, nossa vontade, ante as novas dificuldades da
vida urbana, também é a de procurar mais repouso.
Como naqueles tempos iniciais da Igreja, pode
nos ocorrer, de vez em quando, a conclusão de que já fizemos muitas coisas para
a comunidade ou para a cidade e que outros também podem fazer a sua parte e,
quem sabe, dar pelo menos um período de contribuição para agir e fazer algo de
bom.
O
agir ainda significa que muitas coisas podem e precisam ser melhoradas no
espaço urbano, não só na apresentação exterior da cidade, mas, especialmente,
no modo de vida das pessoas.
No mesmo versículo se fala de profetizar contra povos nações, línguas e
reis..., uma rica simbologia para os nossos dias, pois significa a cidade.
Ali estão estas forças. Ali se difundem forças de línguas, de reis e de nações,
que, de modo geral, não apresentam os valores de Jesus Cristo.
Sobretudo ambição
e poder são as forças devastadoras da vida na cidade. Com certeza, muita
gente de nossas famílias também se move atrás destes valores da riqueza e do
poder insaciável.
Profetizar contra estas formas, tão
adoradas em nossos dias, e que nos seduzem a todo instante para o mesmo
caminho, faz com que o livrinho aberto
comece a apresentar um sabor amargo e provoque uma vontade de “cair fora”...
O referido
texto também se refere à cidade prostituta, materialista, que vai cegando,
embriagando e hipnotizando as pessoas para coisas que não são as mais
importantes, porque nelas predomina o espírito imperialista. Esta prostituta
(nós, que hoje nos estragamos indo atrás desta sedução imperialista), no
entanto, poderia converter-se em cidade esposa, cidade humana e fraterna. Tal
transformação, evidentemente, supõe discernimento, ou seja, precisa fazer-nos
perceber que a idolatria, que se desenvolve na cidade, é menos importante do
que o testemunho e a atenção em favor das pessoas humanas.
Se olharmos
concretamente para nossos lares ou para nossa vizinhança, poderemos,
possivelmente, constatar que a tendência mais forte da maioria parece ser a de
entrar na onda imperialista, que nos prostitui para a honra, para o poder e
para certas modas de consumo e de aparência. Isto leva a trabalhar além dos
limites, a ambicionar cada vez mais coisas, casas, carros, fazendas e outros
encargos, mas elas tornam a convivência diuturnamente mais difícil e mais
complicada. Portanto, a profecia que convida a deixar “reis, raças e línguas”,
representa um desafio duplo para nós: o de pensar como nós vamos agir como
indivíduos e como participamos da comunidade maior que é a cidade.
A
convivência conosco mesmos é um dos primeiros grandes desafios da vida urbana
moderna: não basta adotar todas as modas ou imitar a imensidão de novidades e
propostas que todos os dias estão sendo sugeridas.
É preciso descobrir um ritmo pessoal de
momentos em que possamos fortalecer a auto-estima e nossa auto-aceitação. Nesta
busca, certamente faremos experiências da presença divina em nós. Se nos
descuidamos um pouco, encontramos tantas ocupações e tantas solicitações para
trabalhar, que, simplesmente, não achamos o mínimo de tempo para nosso
auto-cultivo. No entanto, por meio deste cultivo podemos tornar-nos tão humanos
como o próprio Jesus Cristo, revelando, nisto, a grandeza e a divindade do
mesmo Cristo.
O outro
aspecto importante é o de manter-nos bem informados a respeito do que vem
acontecendo no mundo e perceber as transformações que vem se realizando no
interior da cidade e da própria Igreja Católica. Há muitos movimentos de
transformação que abrem novas luzes para a vivência da nossa fé e para a lida
com o diferente que é a vida da cidade. Nem tudo é símbolo de “reis, nações e
línguas”. Há incontáveis sinais da “cidade-esposa” e fraterna...
4.4 – A
visibilidade da ação evangelizadora nos ambientes urbanos
Já vimos acima que a cultura urbana anula os efeitos da
evangelização tradicional. Como, então pensar a ação da Igreja na cidade?
Em primeiro lugar, a facilidade de mais
encontros, de conversas, festas e das mais variadas formas de aproximar as
pessoas na cidade moderna, introduz na vida na organização da vida urbana, a
chamada “ética do instante”.
Ocorrem tantos apelos, convites e chances para
coisas novas, diferentes e imprevistas, que grande parte das pessoas já não
consegue implantar um programa ou um ritmo pessoal de vida.
Há convites a todo instante para passar
dos limites, seja na bebida, na comida, nos doces, no namoro, na fidelidade,
nas festas, etc., e tal fenômeno quebra até mesmo nosso ritmo biológico. Basta
ver a dificuldade que muitas pessoas, em regime de emagrecimento, encontram
para se manter sob um controle alimentar. É desafio complicadíssimo. Por isso
vemos algumas pessoas animadas quando perdem alguns quilos, mas quando soltam
um pouco a auto-censura, já recuperam o
mesmo peso de antes e lhe acrescentam outro tanto, porque não conseguem dizer
um “não” ante as mil ofertas e convites.
A “ética
do instante” não muda apenas o ritmo biológico de alimentação, de repouso,
de lazer e de sono, mas nos leva a quebrar também os horários, os hábitos, os
costumes e certas práticas regulares, como participar de Missa, de Culto, etc.
Há tanta proposta para curtir coisas diferentes, que começamos a encontrar
dificuldades para nos acertar conosco mesmos em termos de auto-escuta, de
cultivo e programas de oração, ou simplesmente, de descanso e sono.
Se as solicitações muito variadas nos
roubam a regularidade dos tradicionais programas de Igreja, elas também nos
despertam sentimentos de ansiedade e de angústia e, para aliviá-los, talvez,
antes mesmo de pensar num programa religioso, vamos à procura de incontáveis
alternativas que não sejam as do espaço religioso das Igrejas católicas. Há incontáveis
terapias, massagens e outras formas ocupacionais que, como a religião, prometem
aliviar estes dificuldades e problemas. Isto, naturalmente, fragiliza os
vínculos com uma comunidade ou com momentos celebrativos de Missa ou Culto.
Em algumas comunidades o horário dos
encontros catequéticos vira um pesadelo, porque as crianças já têm, para aquele
momento, uma previsão de outras atividades: aulas de Inglês, de teclado, de
dança, de teatro, de natação e por aí afora...
Deste modo, a Igreja fica mais invisível e, quando ela quer estabelecer
muitas obrigações, então é a vez que as pessoas somem mais ainda... O efeito
será o de prevalecerem opiniões religiosas pessoais sobre normas diocesanas ou
paroquiais.
O policentrismo das cidades (quanto
mais elas crescem, mais elas apresentam muitos centros de organização) faz com
que cada vila, associação ou grupo de interesse se organize em torno de algumas
lutas e reivindicações. Uma Igreja, mesmo que ainda esteja no meio da praça, já
perde a capacidade de ser o centro da cidade ou da vida ou do exercício de
controle territorial sobre os moradores de uma determinada área geográfica como
paróquia ou capela. Mesmo visível como espaço físico das construções, a Igreja
perde a capacidade de tornar-se visível em obras humanas e ações humanitárias.
Ao lado da dificuldade de manter-se
visível na cidade, a Igreja também sente a dificuldade de conviver com o
contínuo desafio de “inovação”.
Parece que na cidade a palavra que exerce mais força e impacto é “inovação”.
Tal fenômeno leva a um rápido esquecimento do passado, da tradição e de bons
valores porque tudo parece que precisa ser trocado, melhorado e ampliado.
Um efeito colateral da inovação é o da
“exclusão”. No emprego ou até na
chance de emprego, na vila, ou simplesmente na rua, aparecem sinais diários de
exclusão, de violências, tanto físicas quanto simbólicas. Uma simples
propaganda de alto-falantes revela bem esta forma de discriminar, mentir,
iludir e agredir as pessoas, pela acústica dos amplificadores, onde quer que
estejam no espaço urbano.
Uma das
formas atualmente mais valorizadas para tornar visível a ação da Igreja nas
cidades é a dos Movimentos. Mesmo que, de um lado, apontam sinais animadores,
geram também muitas dificuldades e vem perdendo rapidamente a capacidade de
articulação. Por que isso?
De forma
geral, os movimentos têm origem estrangeira e foram criados em cidades com
problemas específicos daquelas cidades. Sabe-se que uma cidade não é igual à
outra, porque cada uma tem maneiras distintas de se organizar, de produzir,
sejam alimentos, matéria-prima para o comércio ou modo de edificar a cidade ou
de símbolos culturais. Desta forma, muitos movimentos, valendo-se do fenômeno
da globalização, supõem que tudo é igual em qualquer parte, e que, todos são
consumidores potenciais do mesmo jeito. O resultado é que as normas e
orientações dos movimentos ignoram as peculiaridades e as diferenças de uma
cidade para outra bem como os níveis de vivência da fé. Além disso, muitos
movimentos apresentam uma tendência fundamentalista: pensam e valorizam mais um
jeito do passado e pouco apostam em perspectivas novas para o futuro. Tal marca
desperta outra pergunta:
4.5
– Como pensamos uma cidade?
A
história bíblica do Antigo Testamento, tal como a história da Igreja, ao longo
de mais de dois milênios, revela uma constante oscilação na interpretação da
cidade. Em muitos momentos históricos a cidade foi vista com pessimismo,
negativismo, a tal ponto que passou a ser identificada como “prostituta”. Da
mesma forma, em outros momentos, foi classificada de “cidade do alto, onde Deus
mora”. Hoje, numa mesma cidade, misturam-se as duas concepções. Se tivéssemos
um pequeno aparelho capaz de captar a posição dos católicos, certamente
veríamos que grande parte deles interpreta a cidade pela ótica pessimista e
negativa. Fala tanto mal da vida urbana que passa a concebê-la como ainda
inferior a uma prostituta. Tal fenômeno, presente em movimentos e também
acentuado em outras manifestações religiosas ao lado da Igreja católica, tendem
a demonizar excessivamente a cidade (veem diabo solto por toda a parte e em
tudo) e se tornam românticos, saudositas e fundamentalistas ao pretenderem uma
volta a um jeito do passado.
Talvez
fosse mais interessante se pudéssemos pensar a cidade, com objetividade, para
perceber muitos sinais de “prostituta”, mas, também, com sinais gradualmente
crescentes de que ela vem se tornando a cidade do alto, onde Deus mora. Por que
assim?
A
cidade, mesmo com tanta gente próxima e se cruzando apertada de todo lado, por
natureza, obriga as pessoas a depender cada vez mais umas das outras. Se
imaginarmos o mundo rural e mais antigo, alguém podia viver com enorme
autonomia em termos de não precisar muito dos outros para sobreviver. Por
exemplo, a vida no meio rural: as pessoas não precisavam ir a toda hora ao
mercado, ao médico, à farmácia, ao banco, porque todos aprendiam outras formas
para contornar casos imprevistos e lidas diárias... A cidade moderna, ao
contrário, faz todos depender de muitos encontros com outros. Para qualquer
coisa, se precisa da mediação de outras pessoas (até mesmo para dar um
“jeitinho”!).
4.6 – Um modelo de
Igreja a ser construída
Em
nossos espaços de Igreja predominam duas modalidades mais comuns de
interpretação do papel, da função e da missão da Igreja. Uma destas modalidades
consiste em pensar a Igreja como Corpo místico – Sociedade Perfeita. Esta
interpretação tende a valorizar muito a instituição, a hierarquia e as ordens
que vem de cima para baixa. É também uma concepção que supõe que os
procedimentos importantes na vida de fé de uma pessoa devem partir do centro
para a periferia. O pano de fundo desta ótica é o de pensar a Igreja com a
missão e a capacidade de espiritualizar o mundo e que, por isso mesmo, precisa
difundir-se e alargar-se através de outros continentes, ou seja, precisa
internacionalizar-se intensamente. É o que podemos perceber na rápida difusão
de movimentos, transpostos de um país para outro...
A outra modalidade, fruto do espírito do
Vaticano II, entende que a Igreja é uma Comunhão do Povo de Deus. Destaca, por
isso, mais o valor da comunidade; é mais descentralizada; é mais criativa e
valoriza pequenos núcleos; é aberta para a criação de novas estruturas de
organização em função do que se constata na vida real. É uma modalidade de
entendimento que valoriza muito a dimensão ética e tende a valorizar mais a
história concreta do que uma espiritualidade a ser transmitida.
Se
procurarmos conhecer e entender mais as primeiras comunidades cristãs, que se
alargaram em meio às enormes adversidades, podemos constatar que elas se
nortearam mais pela segunda modalidade.
V
A
RELIGIÃO MIDIÁTICA E O IMAGÉTICO
A cidade
vem revelando, cada dia mais, sua capacidade de romper com antigas tradições de
parentesco, de religião e de relações com a comunidade e a natureza, próprias
de ambientes rurais.
No lugar
dos antigos valores rurais que ainda persistem e sobrevivem em menor escala no
ambiente urbano, passa a vigorar um progressivo preenchimento do dia com o
ambiente eletrônico: sites, chats, correio eletrônico, bate-papo e tantas
outras formas identificadas com a Internet.
A
eletrônica desperta novos fluxos de ocupação, de lazer e de entretenimento. Ela
rouba o lugar dos momentos de passear, de fazer serenata, de preparar
coletivamente certas comidas típicas ou de conversar simplesmente.
Se nos
ambientes rurais a auto-estima resultava da constatação dos sentimentos de
pertença, de amparo e de acolhida, o ambiente eletrônico faz com que já não se
liga mais para o valor do parentesco, da autoridade, dos avós, dos vizinhos,
mas induz à afirmação da identidade pessoal, a partir de sentidos e sonhos,
ligados a superação, ao êxito e ao sucesso.
A oferta se
sentidos e de esperanças para o futuro está sendo propiciada muito mais pela
televisão do que pela religião. Isto não significa que a religião perdeu sua
função ou que não esteja fazendo o que é da sua competência, mas outras formas
de organização social lhe roubam este papel social.
A televisão, através de seus programas,
especialmente os interativos, oferece incontáveis promessas para “EUS”
solitários, e lhes apresenta um vasto campo de soluções para todos os tipos de
problemas. Neste aspecto, serve a imagem da pensadora Hannah Arendt que falava
em “cultura da auto-perdição”. E o grande desafio desta nova forma religiosa
está o grande desafio de arrancar das mãos o comando que as leva a se
interessar apenas por si mesmas.
O deslocamento das ofertas de sentido e de
esperanças messiânicas da religião para outros espaços da organização social
implica em fortes insinuações de adoração do corpo. Basta reparar o que se
mobiliza em torno de certos desfiles de moda. Os locais de desfile são erigidos
como verdadeiros templos e com muitos rituais e fetiches de adoração do corpo.
Tal fenômeno de novos referenciais de adoração levou Frei Beto a concluir que
para a televisão o “pum-pum” vale muito mais do que a cabeça; que a estética
vem ocupando o lugar da ética e que a aparência tomou o espaço do real. Grande
parte de programas versa sobre a vida dos personagens que viveram papéis
fictícios de um filme ou de uma novela ou algum esporte e que, por isso,
passaram a ser identificados como heróis. Já não importa muito a vida real, mas
se eleva ao auge o imaginário fictício do que alguém viveu e sobre como se
sentiu ao encenar certo papel ou fazer certa jogada...
De fato, se
reparamos o conteúdo a respeito do qual se fala numa entrevista, realmente
parece não interessar reflexão objetiva, ampla, profunda, perspicaz e
filosófica, mas o banal em torno do que gosta, do que veste e do que faz em
certas situações, isto interessa muito mais. Um “pum-pum” protuberante parece
tornar-se assunto muito mais relevante do que a sumidade de um pensador, seja
cientista, teólogo ou filósofo. Em valores, destacam-se, sobremaneira, aspectos
estéticos, como hábitos, gostos e, especialmente, gostos que sejam exóticos e
diferentes. Disso também decorre o mundo de aparências; de pinturas que
disfarcem o real; de maquiagens que encubram as rugas, de roupas que dão
aparência mais vistosa; de penteados que realcem a eterna juventude, enfim,
faz-se um verdadeiro encobrimento do real.
Todo este
fascínio pelo campo midiático pode ser visto como sintoma de uma nova doença
social urbana: a de pessoas narcizistas que se identificam com apresentadores
narcizistas, para se afirmarem e se auto-realizarem. A referência a Narciso vem
da mitologia grega e conta-se que Narciso, certa vez, ao perceber seu rosto
refletido na água translúcida de um lago, ficou tão encantado com a beleza que
constatava refletida na água, que resolveu casar-se consigo mesmo.
Narciso
representa a pessoa fechada sobre seu mundo pessoal e que se presume realizada
na medida em que se identifica com certos apresentadores midiáticos, ou com os
conteúdos por ele veiculados, sejam verbais ou simplesmente não verbais como
gestos, cortes de cabelo, modo de vestir-se, e, especialmente, traços exóticos,
porque os tomam como modelo de imitação. Só que estes apresentadores também se
movem como Narcisos para poder impressionar e manter certa audiência. Daí a
comparação de Narcisos apresentadores e de Narcisos assistentes.
Como na mídia eletrônica apresenta resposta e solução para
tudo, já não há mais muita necessidade para um encontro com outros ou para
aprender de um padre, de um bispo, de um catequista ou qualquer outro agente
evangelizador.
5.1 – A onda de
“padres cantores”
Ao lado desta
caminhada para o individualismo intimista e narcísico, podemos ainda verificar
outros aspectos relacionados a esta mudança do fenômeno religioso. Um deles é o
dos padres cantores como Padre Marcelo Rossi, Jonas Adib e uma série de outros
(convêm não incluir o padre Zezinho e outros padres cantores mais antigos neste
grupo...), que transformam as celebrações de Missas em verdadeiros shows e,
assim, despertam uma mudança muito grande no significado litúrgico da Missa.
Esta passa a constituir relevância não mais pelo seu referencial de memória,
mas apenas pela sua instrumentalidade com vistas a propiciar emoções
agradáveis.
Bem sabemos
que há traços pessoais de animadores de celebrações, padres e de agentes leigos
que, pelo seu modo de rezar, de cantar ou de animar, envolvem toda a comunidade
celebrativa e atraem multidões para os momentos celebrativos. Há também
presidentes de celebrações que favorecem a intospecção, a catequese, o memorial
de Jesus Cristo, pois nos remetem para o grande significado da Páscoa e, com
isso, se tornam uma grande fonte de vitalidade para uma comunidade cristã.
Desde muitos séculos, padres privilegiados com
uma voz boa e agradável, cantaram solo em partes da Missa e o povo cantava os
refrões ou outras partes.
O fenômeno
recente de padres cantores apresenta uma conotação um tanto diversa: aparecem
em muitos programas de televisão, divulgam seus CDs, valorizam eminentemente o
clima emocional e incitam à participação com movimentos de ritmo corpóreo. Esta
forma de cantar teve origem no movimento de Renovação Carismática.
Ao lado dos inegáveis benefícios deste
movimento e de pessoas animadas pela participação nestes movimentos, a novidade
dos chamados “padres cantores” é a de envolver os participantes das celebrações
em intenso ritmo de gestos, mímicas, movimentos e danças, mas, que,
simultaneamente fogem das formas tradicionais de celebração da Eucaristia.
Muitas pessoas vêem nisto uma coisa muito boa, simpática e apreciável, pois faz
com que mais pessoas se animem a participar das celebrações; e, até faz com que
outras, já afastadas, retornem “ao bom caminho”...
Como catequese suave e inicial, tal
procedimento pode até ser interessante. No entanto, ele leva a um sério risco
de esvaziamento de toda a riqueza simbólica do culto cristão, pois, reintroduz
dados da piedade popular, praticamente esquecidos, e os estabelece no lugar da
simbologia cristã.
Tanto o
conteúdo quanto a forma de animação de canto destes “cantores de Deus”
transforma os dados do memorial de Jesus Cristo em simples momento de louvor a
Deus, mas que, na prática, nem é tanto de louvor, mas muito mais de súplica e
leva os intercessores e a assembléia a repetir insistentemente expressões
conduzidas e na perspectiva de haurir forças e ajudas do além. São novas formas
de apropriar-se do desafio da “boa notícia do Evangelho” e das formas
celebrativas e comunitárias, para torná-las suaves, fugazes e de respostas para
o mundo subjetivo.
A ação de Jesus Cristo avivada e
atualizada pelos ritos da Missa torna-se secundária, pois importa a força
repetitiva do intercessor que quer dobrar Deus, a qualquer preço, para que o
atenda e aumente sua popularidade.
Tal forma de piedade popular já foi contestada
pelo próprio Cristo como forma pagã de rezar, multiplicando palavras para
convencer Deus e, em última instância, mover-se pela pretensão de querer ser
mais forte do que Deus, pois insiste em convencê-lo a mudar seus planos...
Não
pretendemos, aqui, fazer uma defesa de Missas, consideradas secas, frias,
formalistas e meramente lidas, mas, salientar que as sugestivas missas
transformadas em shows, esvaziam a dimensão celebrativa dos encontros eucarísticos
para transformá-los em momentos de “transe leve e descontraído”, ou então, em
“fast-food religioso” (como se fosse uma loja especializada que oferece
produtos importados, onde se pode escolher o que se quer, segundo interesses
diversos). Padre Marcelo Rossi, por exemplo, revela uma extraordinária
capacidade de transformar a mensagem celebrativa de uma Missa em suave e leve
forma de passatempo, que, aparentemente inofensiva, descompromete as pessoas
para as causas do Reino de Deus, pois se torna muito mais uma hora de ginástica
rítmica, de aeróbica e de animação musical do que momento para se fontalizar e
se fortalecer na tarefa missionária da Igreja.
É claro que tais momentos podem ser muito
benéficos para as pessoas, mas, quando ocupam o lugar da celebração do memorial
de Jesus Cristo e transformam a Missa em simples momento de confraternização,
esvaziam toda a dimensão bíblica, eucarística, trinitária, eclesial, profética
e simbólica dos grandes sinais cristãos e realçam apenas traços de uma piedade popular
superada há séculos, mas apresentada como o que há de mais novo e moderno, tal
como repetir “anjinho para cima e anjinho para baixo”, “erguer as mãos, erguer
os pés...” e criar toda uma mística de se olhar para a “hóstia”, para a imagem
de Maria ou de repetir à saciedade certas frases, tal como se fazia na Idade
Média.
O risco
destas missas dos “padres cantores de Deus” é o de perder-se a fé na dimensão
de desafio para o amor e o culto cristão descambar num novo paganismo em que
predomina a crença no poder pessoal para conseguir aplacar Deus, onde o forte
já não é o poder de Deus, mas o de quem consegue convencê-lo pela insistência
da súplica. Tal concepção apresenta à dimensão celebrativa cristã o risco de
torná-la suave, tênue, gostosa e até de transformá-la num momento de relax,
onde já não importa catequese cristã, nem formação litúrgica e onde Jesus
Cristo deixa de ser o agente principal das celebrações.
Para retomar o conteúdo:
Que riscos as “missas shows” podem apresentar às comunidades
cristãs?
Quais são as principais características das missas dos
“padres cantores de Deus” em relação às outras que fazem o memorial de Jesus
Cristo?
5. 2 – O
hipermercado religioso – Se
os apresentadores de programas religiosos, pela sua simpatia, determinam gostos
religiosos, também exercem influência decisiva
para o consumo de produtos que oferecem e indicam para os telespectadores e ouvintes.
Alguns
poucos minutos de programa religioso de nossos canais de televisão permitem
observar o quanto os apresentadores sugerem para a felicidade de consumo. Se
hoje nos escandalizamos que uma vez se vendiam direitos e tempos de salvação
eterna através das famosas indulgências, hoje, se oferece crucifixo, com água
do Rio Jordão, se oferece sal do Mar Morto, terra que foi pisada por Jesus
Cristo, resíduos de madeira que teriam sido da cruz de Cristo, fragmentos de
roupa que eram de santos e de santas, viagens turísticas a lugares chamados de
santos e de peregrinação religiosa e uma infinidade de objetos dourados, prateados,
mas todos eles, associados a poderes extraordinários de curas e de milagres.
Provavelmente estes milagres somente ocorrem nas contas dos que promovem tais
vendas, pois tudo indica que acumulam muito. Imagine-se só que um simples
santinho de Santo Expedito, quando se imprimem trinta milhões por mês, produz
um milagre e tanto nas contas da editora que os divulga. E por que precisam ser
tantos para a promessa dar certo?
Da mesma
forma, incontáveis novenas e orações poderosas estão sendo espalhadas aos milhões
e sempre com a mágica receita: adquirir pelo menos tantas cópias e deixá-las
numa Igreja...
Ao lado das
livrarias que vendem imagens, figas, amuletos, escapulários, terços, santinhos,
e uma imensidão de outros artigos chamados “religiosos”, percebe-se que estamos
sendo invadidos por uma mensagem sorrateira de uma religião de consumo e que
passa muito distante do projeto proposto por Jesus Cristo para a construção do
Reino...
VI
OUTRAS TENDÊNCIAS RELIGIOSAS NA VIDA URBANA
Não precisamos fazer grandes análises
para observar que nos ambientes urbanos as expressões religiosas passam por
outros caminhos do que os das tradicionais festas, romarias, novenas de
ambientes rurais.
6.1 – O novo mapa
religioso urbano
A vida predominantemente urbana é um dos grandes fatores de
mudanças no fenômeno religioso porque não se move mais pelo eixo religioso de
unidade e uniformidade, mas precisamente, pela multiplicidade cultural, racial,
religiosa e de níveis e classes de pessoas. Ocorre outro tipo de relações. Com
isso, as paróquias, as Igrejas e capelas perdem a capacidade de congregar e
reunir as pessoas. Nem mesmo para casos de batismo, casamento ou morte, os
espaços ocupados e procurados para tais momentos celebrativos já não são mais
os espaços religiosos. Clubes, empresas, funerárias, etc., encarregam-se de
oferecer tais serviços.
Os novos lugares de festa, de encontro, de
partilha, sem dúvida, roubam os tradicionais momentos para catequese,
celebrações, festas e momentos litúrgicos variados. Uma Igreja Matriz, por
exemplo, perde gradualmente seu poder de influenciar sobre o âmbito geográfico
de uma paróquia.
A praça já não é mais da Igreja e nem o bater
do sino um sinal e um convite para algo sagrado e religioso. Assim, a religião
deixa de ocupar o lugar central numa cidade e deixa de constituir-se em
referência e fonte das coisas originais da tradição. Revela-se, deste modo, um
sentimento religioso diferente, mais voltado para a interioridade da pessoa e
para o que elas escolhem em meio a uma grande concorrência de ofertas, não
somente oferecidas através de propagandas, mas que entram na casa via televisão
e rádio, vídeos e CDs. Assim como se compra uma ou outra mercadoria, opta-se
por uma ou outra forma de vivência religiosa.
Segundo Fortunato Mallimanci, o mapa
religioso urbano é um labirinto de crenças. Ocorre uma particular disputa entre
católicos e evangélicos, envolvendo seitas, místicas e experiências de Igreja
que não se ajustam adequadamente umas às outras.
a)
No âmbito católico – Salientam-se muitos conflitos e tensões
no interior de suas comunidades. A Igreja, como um “todo” perdeu a força de
cristianizar a sociedade, tal como fazia em outros tempos. As comunidades
tornaram-se eminentemente emocionais. Ocorre até mesmo uma disputa entre distintos
movimentos e, estes, competem entre si pela conquista dos fiéis. Cada um quer
tê-los no seu quadro. No entanto, muitos movimentos apresentam uma relação
ambígua com o mundo moderno, isto é, usam os mais modernos recursos de
comunicação, mas apresentam um discurso tradicional, conservador, rígido e
anti-moderno. Aparecem até mesmo distintos tipos de catolicismo: uns, mais
emocionais, outros, mais categóricos e de certezas absolutas e, outros ainda,
variando numa grande diversidade de manifestações. Assim, a busca da Igreja ou
da celebração religiosa, não se move por Cristo, seus sacramentos e em torno
dos rituais que mais o atualizam, mas pela busca de remédio para preencher
“vazios existenciais“ que os desencantamentos de tudo quanto já foi experimentado,
e, normalmente, antes do tempo, deixaram impregnados na vida. Neste caso, a
busca religiosa pode configurar-se como um sintoma, uma morbidez ou uma doença
provocada pela forma de vida dos tempos modernos.
b)
No âmbito evangélico – Percebe-se que certas manifestações
evangélicas aparecem mais em público e procuram espaços para alargar seu campo
de influência. Entre si, no entanto, não vivem de forma lá muito harmônica.
Normalmente se unem apenas quando estão em jogo aspectos para assegurar e
legitimar o campo evangélico.
Ao lado destas características, convêm
lembrar que estamos envolvidos pelo fenômeno da globalização neoliberal do
mercado, este que tende submeter sempre mais os povos às leis do capital
financeiro e que coloca os ideais capitalistas acima do respeito elementar à
vida humana.
Quando o interesse central é o de
produzir, vender e levar outros a consumir tais produtos, coloca as questões do
lucro acima dos interesses de vida da maioria das pessoas do planeta. Tal
fenômeno vem gerando este desagradável quadro de exclusão de grande parte da
humanidade do acesso às questões básicas como educação, moradia, saúde, lazer,
etc. Esta insensibilidade nos acostuma a não ligar para o que outras pessoas
estão precisando e nos torna cínicos e preconceituosos porque cada pessoa é
levada a pensar apenas em si mesma, não se importando com o que se passa com as
outras. Afinal, os outros podem ser concorrentes que ameaçam as aspirações
capitalistas pessoais...
As consequências deste processo
capitalista afetam particularmente as experiências espirituais, porque levam a
priorizar apenas o cotidiano e o interesse imediato. Em vez de regras éticas e
morais, passam a prevalecer os interesses do que é melhor e mais útil. Nisto,
reforça-se o cultivo do individualismo, pois não interessa o que possa
beneficiar uma comunidade ou outras pessoas.
Questão para refletir: Quem realmente cristianiza e, que
forma de cristianismo ou de religião socializa para melhores níveis de vida em
nossos dias?
A vida
urbana apresenta como tônica muito destacada a manifestação do pluralismo. Este
é um fenômeno que sempre ocorreu nas relações humanas, mas não de forma tão
intensa como vem ocorrendo nos últimos tempos. Cabe, então, a pergunta: por que
isto ocorre nesta intensidade?
O mundo de
nossas raízes, o da cristandade medieval européia, era fortemente marcado pela
organização, ordem e determinação de como o comportamento de uma pessoa deveria
ser. Os especialistas falam em mapeamento
do cotidiano, para referir-se a esta situação, porque as determinações
religiosas e as regras sociais determinavam como cada pessoa deveria passar
suas 24 horas de um dia. Isto dava coesão social e um forte sentimento de
pertença, ou seja, uma identidade coletiva ou comunitária.
O progresso
técnico-científico dos últimos tempos quebrou muitas destas fronteiras do
mapeamento cotidiano e, com isto, diminuiu a rigidez das regras de pertença,
seja na família, na Igreja, na comunidade ou no País. O efeito passou a ser
imediato, pois, alterou a identidade das pessoas crentes, porque as levou a se
abrirem para inúmeras chances de participação em grupos diferentes. Uma
ilustração desta situação é perceptível em nossas comunidades paroquiais: nelas
já não ocorre um rumo, orientado por um padre, mas organizam-se muitos tipos de
grupos distintos de pastoral, de movimentos de Igreja e, tudo isto implica em
muitos problemas de rivalidades. Tal como na organização de uma cidade, ocorre
no interior de uma comunidade, vila ou paróquia, a concorrência de muitos
grupos. Esta diversificação gera sempre mais novidades e avanços que alargam o
pluralismo. Se um grupo espetaculariza mais uma missa do que outro, as pessoas,
segundo seus gostos, optam por um, ou, por outro, e, na hora que aparecer outro
ainda mais diversificado, são capazes de deixar aquele e entrar neste. Este
quadro leva os indivíduos a escolherem a partir de si mesmos, de suas
motivações, de suas simpatias ou outros fatores subjetivos, segundo o que mais
lhes agrada, o que gera uma manifestação religiosa, chamada difusa.
Uma tendência que parece aumentar muito
no fenômeno religioso do espaço urbano é o das religiões difusas. São formas de expressão e vivência religiosa
que, praticamente, não apresentam instituição. Não tem um código ético, nem
catecismo, nem comunidade e, nem mesmo, Igreja. Pelo lado católico, uma
ilustração deste caso é a de muitos auto-denominados católicos, mas que, com
tal referência, apenas explicitam uma
questão de nome ou um certo status social, pois não apresentam nenhum vínculo
com qualquer Igreja local, nem de serviço e nem de participação em celebrações
ou outros eventos.
A grande variedade de formas de vida e
de manifestações religiosas, provocadas pelo intenso pluralismo das últimas
décadas, não elimina a dimensão religiosa das pessoas, mas faz com que seja
procurada de outras formas e, em outros lugares. Isso provoca a chamada “volatização do sagrado”. O termo vem do
latim, volare, que significa voar ou
diluir-se. Olhando para o passado, vemos que tudo quanto era visto como
sagrado, enquadrava-se em instituições, como Igreja, família, poder da
autoridade, etc. Com o pluralismo recente, o “sagrado” parece ter-se deslocado
ou “voado” para outras áreas não sagradas e até mesmo fora da religião. Deste
modo, encontramos propostas sagradas por todo lado, em folhetos, em santinhos
de novenas milagrosas, em anúncios de jornais, sobre conselheiros espirituais,
futurólogos, sortistas, astrólogos, videntes e até massagistas e eróticos,
todos com propostas “sagradas” para trazer paz e felicidade.
Diante de um quadro tão variado de
ofertas do sagrado, o discurso, seja o do Papa, do Bispo ou do Pároco, se perde
entre os incontáveis outros discursos que também oferecem e “vendem” coisas
como sendo sagradas. Tal fenômeno faz com que as normas das Igrejas, das
autoridades, ou dos pais, vão perdendo gradualmente, o valor, o que gera
conflitos.
A religião
difusa, ou implícita encontra-se particularmente presente em profissionais
liberais, como professores, empresários, jogadores. Embora defendam o sagrado ou
o religioso, parece que cada um estabelece tal relação com o transcendente de
uma forma própria e particular. Observa-se, pois, que continua havendo uma
apropriação do transcendente e do sagrado, mas cada pessoa monta e desmonta sua
identidade com experiências muito diversificadas. Não é como no tempo em que
toda uma comunidade rezava a mesma coisa na mesma hora. A religião difusa leva
as pessoas a criar e a transformar suas próprias crenças. Não espera isso de
autoridade, ou de catequese. Mistura um pouco de tudo quanto ouve e
experimenta. Ilustrando o caso: em tempos idos, uma paróquia inteira escutava o
sermão do pároco e ele repassava certos valores de uma concepção religiosa. Nos
tempos mais recentes, cada um alimenta sua concepção e do seu jeito pessoal e
particular. Surge, assim, a “minha
religião” e, segundo “as minhas
necessidades”...
Outra tendência notória de nossos
tempos de pluralismo urbano é a da “religiosidade
flutuante”. Trata-se de uma nebulosa místico-exotérica em que aparece certa
busca mística, ou seja, um acesso direto e particular com instâncias
superiores, especialmente para propiciar harmonia de nervos, de tensões e
outras perturbações emocionais. É certa busca de paz através de novidades da
medicina ou de novas terapias, sobretudo alternativas, visando bem-estar. Como
a palavra “flutuante” já deixa conotar uma espécie de deslizamento para o
fácil, o agradável e o encantador e há ofertas incontáveis para escorrer até o
infinito, mesmo que seja em fantasias, drogas e ilusões.
Ao lado destas duas tendências, como se
posicionam as religiões tradicionais, tal como a da nossa Igreja Católica?
Muitas novas manifestações religiosas estabelecem, como nas religiões mais
antigas e estruturadas, uma hierarquia parecida com a dos ritos religiosos cristãos,
porém, parece que esta analogia tende mais para o Deus do mercado, isto é, a
experiência do sagrado e a administração religiosa do sagrado movem-se
intensamente por questões econômicas de lucro... Assim, festas e rituais de
intercessão, de bênção e de cura, se constituem menos para o contato com o
sobrenatural, como êxtase e transe, e, mais no movimento de seguir um herói ou
heroína, de um líder de grupo musical, de um artista ou apresentador de
televisão. Já não vigora o ideal do santo, do intercessor, da pessoa pobre,
dedicada, piedosa e simples, como em tempos antigos. Hoje, o que parece
encantar mais, seduzir e atrair é o “carisma do campeão”, do vencedor, do
curandeiro, do galã, da atriz, do “boa-pinta”, enfim, do sucesso.
Segundo o teólogo Alberto Antoniazzi apresentam-se duas
escolhas mais comuns àqueles que estão buscando uma experiência religiosa: ou a
participação numa seita ou o refúgio
no individualismo. Indo um pouco
mais longe neste aspecto, podemos reparar uma mudança de inquietações. Há
alguns séculos atrás, no meio da revolução industrial, o sociólogo francês
Émile Durkheim alertava sobre o risco de ANOMIA na sociedade. Este termo
sociológico significa a falta ou ausência de regras. Pensava-se que a sociedade
apresentava tantas revoltas, protestos e ameaças de convulsão social, porque
estavam faltando regras sociais. Hoje se fala não mais em anomia social, mas,
de ANOMIA INDIVIDUAL, isto é, o individualismo chegou a tal ponto que as
pessoas querem liberdade total, ampla e irrestrita para tudo o que pensam, e
não aceitam regra de nada e de ninguém que deva ser respeitada por elas.
Esta anomia
individualista implica em algumas características que bem conhecemos: começa
com uma radical desconfiança na capacidade do poder público. Ao lado da
desconfiança de que o poder público possa resolver problemas, também não se
aceita qualquer norma que venha do poder público. Uma análise de conjuntura
feita por uma equipe da CNBB em novembro de 2005, destacava como evidências
desta tendência anômica, o modo como os brasileiros votaram a favor ou contra o
desarmamento no Brasil. Aparentemente todos querem desarmamento, mas, ao mesmo
tempo, cada sujeito quer possuir o fundamental direito de possuir e portar arma
para sua auto-defesa.
Quando falamos em seita, pensamos,
normalmente, em outros não católicos. É preciso reparar, todavia, que também no
interior da Igreja Católica há uma forte incidência do fenômeno de seita, no
sentido de separar uma parte e considerá-la melhor que o “todo” deixado de
lado. Sectare, do latim, significa cortar um pedaço. Seria como dizer que vamos
cortar uma fatia de queijo e concluir que ela é melhor do que o resto do queijo
que ficou. Os movimentos e as congregações religiosas podem ser lidos, também,
pelo prisma de seita, não necessariamente no sentido negativo e reacionário,
mas como formas de organização que arregimentam em torno de um aspecto da
religião e supõem que este seja melhor do que aquilo que os outros fazem.
A seita também pode envolver uma tendência de movimentos
fundamentalistas, ao afirmar a verdade
com extrema segurança e apresentá-la aos membros de forma autoritária e
impositiva. Ao mesmo tempo em que tenta envolver as pessoas, a seita quer
afastá-las da sociedade. Nisto reside seu aspecto ambíguo em relação à
modernidade.
A outra
tendência, a do individualismo, é a que reduz a religião a um fato privado,
íntimo e subjetivo.
A seita e o
individualismo não constituem apenas os únicos caminhos. Ocorrem também formas
intermediárias, tanto nas Igrejas tradicionais, como na católica e em algumas
Igrejas Evangélicas mais históricas.
Tanto o
fenômeno das seitas quanto o do individualismo podem ser vistos como reações a
um excesso de relativismo que se manifestou intensamente nos últimos tempos,
especialmente motivado por filósofos. O relativismo, como a palavra já diz,
ameniza as afirmações categóricas, seguras e dogmáticas, no estilo “é... pode!” “é, mas também...”.
Estas
manifestações religiosas tiram das Instituições religiosas sua força e
capacidade de agregação social, porque as move para uma busca de satisfação de
necessidades e de desejos imediatos. Bem sabemos que o milagre de uma mudança
palpável numa comunidade requer muita dedicação, muito trabalho e também muita
paciência para não sucumbir em desânimo.
A busca
mais intimista e pessoal faz que a religião deixe de ser uma busca do Absoluto
e se torne um mero instrumento de satisfação dos indivíduos, muitas vezes
movidos por sofisticado marketing do mercado da fé.
Podemos
também reparar que nem tudo é propensão para seita e individualismo. No Brasil,
particularmente, podemos encontrar, em todas as comunidades, muitas pessoas de
fé e que fazem um maravilhoso trabalho de evangelização, embora também se possa
perceber um aumento de pessoas que se dizem católicas de “adesão parcial”, pois
frequentam apenas alguns sacramentos e não aceitam grande parte das normas e
orientações da Igreja.
Ao lado de
todas estas manifestações, podemos ainda reparar que parece aumentar o número
de participantes em devoções populares, como visitas a santuários e
participação em romarias, procissões e liturgias penitenciais.
Afinal, o
que este quadro religioso nos coloca? Parece que nos indica que devemos
procurar novas atitudes, pois a religião não pode constituir-se apenas em
normas e regras proibitivas na comunicação com os que procuram cultivar ou
celebrar a fé. É preciso admitir que a experiência religiosa também é capaz
de impregnar-se da virtualidade de
constituir-se em bom caminho para um posterior amadurecimento na fé.
Para retomar: O que mesmo se destaca nas manifestações
religiosas difusas e flutuantes?
6.2 – Da institucionalização para o intimismo
A Igreja
vem passando por uma mudança que passou da dimensão institucional para
comunitária e, desta, vem tomando o rumo da subjetividade. Ocorre o
deslocamento do primado da Instituição
para a primazia ou elevação do indivíduo.
Este fenômeno cultural é acompanhado por um deslocamento da orientação de
uma vida para Deus e que acaba se
expressando mais em buscas mágicas e
imediatas de soluções dos problemas do dia-a-dia. Tal deslocamento teve uma
lenta, mas, gradual mudança que pode ser dividida em quatro etapas:
a)
Igreja – Instituição sólida: onde praticamente todos os fiéis
aceitam a autoridade eclesiástica como orientadora de sua fé. Isto foi muito
forte nas décadas de 1940 a 1960, até mesmo nas Igrejas ortodoxas e
evangélicas;
b)
Igreja – Comunidades: normalmente pequenas e de relacionamento
direto e próximo, como as CEBS. A experiência da fé passa a depender dos rumos
do grupo e acaba levando à diminuição da valorização da palavra do Papa, dos
bispos, padres etc., para valorizar mais a idéia do movimento;
c)
Igreja – Individualismo:
na qual parte dos integrantes dos movimentos se isola rumo ao subjetivismo.
Para estas pessoas, o referencial da fé passa a ser o outro, na medida em que sua experiência encanta. Este movimento
leva ao desaparecimento da necessidade de partilha com o grupo, pois cada
pessoa procura seguir outra pessoa inspiradora seja santo, gurú ou milagreiro.
d)
Igreja- Experiência interior: na qual o indivíduo busca a fonte da
experiência de fé dentro de si mesmo. Centraliza-se o sentimento subjetivo. Com
isso, a minha religião sou eu mesmo.
A comunidade passa a ter um valor momentâneo e relativo. É como um produto na
prateleira do mercado: só interessa em certas ocasiões de necessidade, como
batismo, unção, bênção de corpo, etc.
Desafios deste quadro introspectivo: este quadro pastoral apresenta fortes
tendências à massificação, na qual triunfa o individualismo religioso. Todavia,
estádios e praças cheias ainda não significam qualidade de religião... Um dos
elementos centrais certamente terá que ser o da revalorização da comunidade eclesial, para que as comunidades possam
ser re-situadas na sociedade.
Para refletir ou conversar: Que passos fizeram a experiência
religiosa chegar ao individualismo?
Outras questões:
Que Igreja nós constituímos? Que traços e mística dão rosto às nossas
comunidades? Que tipo Igreja pode ser prevista para o futuro?
6.3– O sincretismo
religioso
Todas as questões envolvendo religião invisível, intimista,
emotiva, flutuante e subjetiva, esvaziam as raízes do cristianismo
institucional que aprendemos a conhecer, mas também estão repletas de outro
aspecto do fenômeno religioso, que é o do sincretismo.
A palavra
“sincretismo” pode confundir-nos pela sua estreita relação com o termo
“inculturação”, este que nos remete ao respeito dos traços culturais de outros
povos e raças, bem como ao seu aproveitamento para integrá-los em nossos modos
de rezar, de celebrar e de vivenciar a fé cristã. São Paulo, por exemplo, já
lembrava que deveríamos observar tudo e reter o que fosse bom... É um assunto, de
fato, complicado, pois nem sempre sabemos adequadamente o que é bom e até onde
convêm introduzir formas de outras culturas, ou então, colocar limites para não
envolver em riscos os fundamentos que nos movem na fé cristã. Na verdade,
sempre ocorre absorção de novidades e cruzamento de informações culturais ou
religiosas.
O termo
“sincretismo” pode ser usado com sentidos variados: para alguns significa, em
concepção bem geral, ajuntar coisas que não se combinam; para outros, significa
absorver coisas negativas ou ruins de outras religiões ou culturas; e, para
outros ainda, é algo bom e rico da condição humana, pois, somente com
sincretismo se torna possível inculturação da religião.
Diz-se que a origem do termo “sincretismo”
ocorreu no tempo de Plutarco, quando cidades cretenses, que eram inimigas entre
si, tiveram que ser amigas. Nós hoje, diríamos “amigas entre aspas”. No campo
religioso, pode o sincretismo ser visto como algo equivalente a misturar café
com leite, que dá uma boa combinação, ou então, à mistura de leite com vinho, o
que provocará um leite coalhado, de paladar nada agradável. Entretanto, será
que alguém escolhe algo sabendo que é ruim ou pior? Algo certamente aparecerá
como pior para alguém quando vê que o leva a perder ou diminuir a imagem da sua
identidade, seja ela pessoal, ou comunitária ou coletiva. Por esta razão, é bom
não considerar o termo “sincretismo” como sendo algo ruim ou negativo, ainda
mais, se o relacionamos com o fenômeno da inculturação.
Pelo simples fato de estarmos vivendo
numa sociedade altamente pluralista, onde se cruzam não apenas raças e
componentes de diferentes culturas, mas até de regionalismos e de informações
de quaisquer partes do mundo, não conseguimos ficar alheios ao sincretismo. O
sincretismo acontece tanto na relação com outras religiões, quanto com outras
culturas e, seguidamente, nos interpela ou nos desafia para novas sínteses.
Significa, pois, que quanto mais nos tornamos sincréticos, mais nos tornamos
capazes de nos inculturar e de inculturar nossa religião. Todavia, se olhamos
para o passado humano, vemos que a nossa forma de entender e explicar a
religião já está ligada a certo quadro cultural de uma determinada raça ou
região. Nasce dali um impasse: se, por exemplo, estamos inseridos numa sociedade
que revela uma cultura consumista, de busca do prazer e de “curtição”, ou
altamente egocêntrica, até onde convêm assimilar tais valores para não perder
as raízes da fé que conhecemos?
O problema
se torna ainda mais agudo quando os valores divulgados, por exemplo, pela mídia
eletrônica, não se adaptam ao nosso modo de vivenciar o cristianismo e sequer
nos oferecem espaço para avaliarmos se nos convêm ou não, pois a repetição é
tão intensa que não os incorporamos a partir de avaliações, mas, simplesmente, os
ajuntamos. É algo como misturar arroz, feijão, macarrão, polvilho, café,
vinagre, sorvete e açúcar no mesmo saco.
Outra
realidade ligada ao sincretismo é que ele afeta nossa identidade social, isto
é, nós pensamos e nos sentimos ligados à sociedade a partir de concepções
religiosas já assimiladas a partir da herança de certa cultura, como a
européia, por exemplo. Assim também, do ponto de vista estritamente religioso,
para nós católicos, as outras formas religiosas podem representar uma ameaça à
nossa identidade ou ao nosso modo de ser e, quando nos vemos ameaçados por
todas as partes, o mecanismo poderá ser o de condenar exageradamente tudo
quanto é diferente e de pretender impor nossa concepção religiosa a partir de
um quadro cultural que nos marcou e, assim, desrespeitar e agredir o que é
distinto no nosso modo de interpretar as coisas. Por outro lado, se nos
tornamos demasiadamente abertos a tudo quanto é novidade ou diferença, acabamos
perdendo nossa identidade e isso desmorona nossa vida e nossa identidade
religiosa. Ocorre que a identidade sempre é fruto de uma pertença social.
Partindo
para uma ilustração mais concreta, o assunto “sincretismo” coloca uma questão
séria ao desafio cristão que é o da missionariedade, ou seja, à tarefa de
evangelizar: como entrar em contato com outras religiões, culturas, sem perder
nossa identidade, mas, ao mesmo tempo, sem provocar medos e resistências
excessivas nos outros? Estamos, por conseguinte, diante de um assunto muito
complexo, que vai além do ato de defender algumas coisas e condenar outras.
Seguidamente somos interpelados por situações que mexem com nossa vida e nos
provocam crises que nos remetem para situações novas e diferentes. A busca da
acolhida do diferente força-nos a modificar certas ideias ou posturas que
consideramos sagradas e absolutas. Isto gera crises, mas, ao mesmo tempo, nos
envolve num processo dinâmico. Saber deste processo pode nos tranquilizar. A
religião não é apenas um acréscimo de algo simpático ou bonito à nossa vida,
mas é algo bem mais profundo da nossa própria existência, pois é ela que nos dá
referências de interpretação e significação da vida. Mesmo assim, é
significativa a frase de São Pedro, de que devemos saber dar as razões de nossa
fé. Portanto, sempre vamos encontrar certo jogo de resistências ao nosso modo
de pensar e de explicar as coisas, assim como nós tendemos a resistir ao modo
de ser e explicar de outras manifestações culturais e religiosas; mas, se não
vamos ao encontro das outras expressões religiosas e culturais, como poderíamos
alargar a proposta do Reino de Deus, anunciada por Jesus Cristo como a Boa
Notícia?
Como a
questão vai além de defender categoricamente algumas coisas e condenar outras,
teremos que saber lidar com desafios que nos obrigam a constantes crises de fé,
mas, que podem tornar-nos mais humanitários e nos levar a descobrir que, tal
como acontece com a comida ingerida, o processo digestivo e metabólico não
absorve tudo o que se come. Por vezes um desarranjo intestinal ou de fígado
pode levar à eliminação rápida de tudo, mas em situações de normalidade, parte
do que ingerimos é absorvida e outra parte é eliminada... Talvez isto nos ajude
a entender que no campo do sincretismo, algo parecido ocorre conosco no aspecto
religioso.
Para reflexão: - O que o sincretismo tem a ver com
inculturação e evangelização?
- O que o sincretismo nos ajuda a entender
no trato com as diferenças religiosas?
VII
INTRERPELAÇÕES DO
IMAGINÁRIO RELIGIOSO
Se em alguns séculos recentes do passado a Teologia
costumava combater qualquer forma diferente de vivência religiosa, nos dias
atuais, sua tendência parece ser muito mais a da não confrontação, mesmo que
aponte para horizontes que vão além das nossas condições atuais.
Há uma sensibilidade sócio-cultural que
deve ser respeitada nas buscas de vivência da fé. No entanto, isto não quer
significar que se deva, por parte da religião, tolerar tudo e qualquer coisa.
Mesmo assim, na diversidade das formas religiosas e na multiplicidade de modos
de entender o sentido religioso na vida, ocorrem muitos bons “sinais dos
tempos” e que nem sempre sabemos aproveitar adequadamente.
Um dos
efeitos das profundas mudanças da vida recente é a do policentrismo cultural e
teológico. Já não se adota tudo e apenas o que é emitido a partir de Roma ou de
outro ponto importante. Há muitos centros de reflexão que relativizam o
discurso religioso clássico, e este discurso é como um ruído a mais entre
tantos outros que vem sendo divulgados no mundo atual e que chegam aos ouvidos
de milhões de seres humanos. Já não há mais um único discurso para todos.
O discurso
religioso clássico, infelizmente, esteve muito estreitamente ligado ao
imperialismo cultural europeu e, por isto, se tornou rígido, ortodoxo e sem
muita capacidade de diálogo e respeito às diferenças culturais. Aliás, estas
diferenças, normalmente, eram vistas como inferiores e que, necessariamente,
precisariam desaparecer para que a concepção cristã oficial pudesse prevalecer.
O clima pós-moderno é avesso a formas
categóricas e impositivas. Tal perspectiva nos remete para as origens cristãs,
que, por sinal, se mostraram extraordinariamente maleáveis e capazes de
respeitar o distinto, tanto cultural, quanto religioso e pessoal.
A concepção atual, portanto, nos ajuda a
recuperar importantes raízes do cristianismo primitivo e nos leva, também, a
repensar nosso modo de ser, o que, evidentemente, pode ser benéfico, pois, nos
leva a respeitar mais o diferente. Tal perspectiva mexe com o sentido de nos proclamar
católicos: o que é mesmo ser católico hoje? Não seria entrar em todas as
culturas deste mundo de Deus?
O
pressuposto de um cristianismo católico nos leva a pensar na maior parte da
população humana que não é de origem e de cultura européia. Como chegar a estas
diferenças? Mesmo sem respostas imediatas e cabais, a interpelação dos tempos
atuais parece indicar para uma teologia menos monocultural e mais capaz de
respeitar a diferença, tal como a teologia da libertação, intuições de dos
denominados leigos, uma teologia mais feminina, etc.
Com certeza, tal horizonte vai ajudar para que
a Teologia recupere novamente uma dimensão mais mística e menos racional e
abstrata. Se a Teologia é uma importante palavra sobre o mistério da vida e
sobre Deus, ela certamente deverá repassar um pouco desta experiência tateada
nas buscas de fé. Com isso, se deixará de explicar o que Deus é ou não é, e se
passará a experimentar muito mais e melhor um Deus que se revela gerador de vida
e de motivação para a solidariedade humana. Será, pois, uma teologia mais
fruitiva e que “curte” mais a experiência de Deus.
Uma teologia
mais mística também ajudará a testemunhar melhor a experiência de que Deus é
Pai que ama, pois será uma abertura ao mistério que Cristo nos legou da parte
Dele.
Outra
influência marcante, que os tempos atuais exercem beneficamente sobre a
Religião e a Teologia, é a de ajudá-las a serem mais narrativas, isto é, em
lugar de narrações universalistas e absolutizantes e cheias de dogmas, regras e
exigências, pode considerar mais os relatos da memória, tal como foi feito
sobre Jesus Cristo nos Evangelhos.
A dimensão
narrativa não exige argumentos, sejam eles pró ou contra algo, ou provas
racionais, mas apenas um ato de atenção e de escuta. A dimensão narrativa,
aspecto relevante da vida de Jesus Cristo, é altamente subversiva porque
“subverte” (altera) e muda uma ordem estabelecida para que possa acontecer o
novo do Reino de Deus.
Portanto, mais do que preocupar-nos com
legitimações das grandes explicações universalistas, que favorecem muito pouca
gente neste mundo, fica conveniente pensar o modo que requer mais escuta e
atenção...
O teólogo
Carlos Palácio destaca que vem ocorrendo uma grande mudança do lugar da
teologia brasileira, nestes últimos anos, especialmente a partir da década de
1990. A teologia teria se deslocado da vida concreta das comunidades para o
espaço acadêmico, o que pode revelar dois aspectos bem distintos: poderia a
teologia estar fugindo da vida concreta e tornar-se mais teórica; mas, o mesmo
fato poderia estar indicando outra realidade muito positiva, que é a da busca
por parte de cristãos leigos, de cursos de reconhecimento oficial. Eles constatam
a necessidade de uma preparação teológica mais aprofundada, o que certamente
será benéfico e fundamental para o futuro da Igreja e, mais do que isto,
importante “para a construção comum do sentido numa sociedade secular”.
Para retomar: Que diferença existe entre uma explicação
universalizante ou universalista e uma narrativa local?
Salientamos, até aqui, diversos aspectos envolvendo mudanças
no perfil do fenômeno religioso e muito disto se deve a aspectos
sócio-culturais da vida de cidade.
A cidade,
de certa forma, envolveu o fenômeno religioso. Não o eliminou, mas lhe deu
outro contorno, outra forma de apresentação e a desafia para que encontre
outras razões que justifiquem sua existência. Nesta busca poderão revelar-se
formas novas, atrativas, mas nem sempre preenchidas pela recordação dos frutos
da síntese do passado. Se um camundongo se vê constantemente vigiado pelo gato,
vai acabar fazendo coisas que não seriam naturalmente da sua vontade. Assim,
também o campo religioso e teológico, pode estar sendo afetado pela cidade.
Pedro Carlos Cipolini destaca que a
cidade, dado ao fenômeno da rápida urbanização, desafia o âmbito religioso e a
teologia para que se abram mais à
dimensão antropocósmica e cyberespacial
e usa uma imagem muito rica e interessante para ilustrar esta interpelação:
A cidade representa a águia, que é uma
máquina voadora, veloz, poderosa, de um olhar agudo e telescópico, mas não
deixa de ser uma ave enigmática porque é uma ave sedentária e tende a esgotar
até mesmo as condições de sua vida. Se ela, de vez em quando, migrasse para
outros lugares, não terminaria o seu alimento e, certamente, acharia
alimentação mais rica e saborosa...
A cidade já não pode ser vista pela
idéia pré-moderna e antiga de ser o lugar do caos e da desordem. Podemos ver
que isto também existia e ainda existe nos meios rurais e não urbanos.
A Religião, no ambiente da cidade, que
representa a águia capaz de controlar tudo e exaurir as últimas gotas de sangue
para alimentar-se, atrai as pessoas, mas também ameaça as condições de futuro e
de bem-estar destas pessoas, porque as leva a esgotar tudo o que existe e o que
se inventa.
A Religião certamente poderia aprender
muito do que se diz de outra ave: a Fênix, uma ave misteriosa, tomada como um
dos primeiros símbolos cristãos, nos primórdios da Igreja Católica. É uma ave
noturna, que se confunde com a cor do solo ou da cinza e emerge do lugar onde a
gente sequer supõe que possa ter estado. Segundo a mitologia egípcia, se esta
ave fosse morta e queimada, acabaria renascendo das próprias cinzas. Este dado
se presta para uma analogia de nossa experiência religiosa e teológica na
cidade.
A Religião e a Teologia já foram muitas
vezes expulsas das instituições universitárias, mas sempre de novo, voltam à
luz e chegam a ocupar espaços acadêmicos, tal como vem ocorrendo nos últimos
anos da vida brasileira. Se ela enfrentou crises, depreciações e se muitas
vezes chegou a ser banida do espaço público, parece que está se reerguendo
novamente das cinzas, isto é, brotando e vicejando, como uma tênue plantinha,
de lugares que parecem ser impossíveis de fornecer condições e credibilidade
para fazê-la desabrochar e irradiar vida. O renascer das cinzas nos leva a
suspeitar que a renovação religiosa possa emergir dos lugares onde sequer
esperamos que uma Fênix possa bater asas, possa reerguer-se e voar com
vitalidade e força impressionante. Quem sabe, possa a nossa vivência religiosa
repetir esta imagem mitológica e tornar-se um grande serviço para mais sentido
de vida na sociedade.
Se a organização religiosa parece ter
assimilado demasiadamente as características da águia, exaurindo a vida com
afirmações muito categóricas e radicais sobre Deus, como a águia, tornou-se
incapaz de descortinar novos horizontes, porque não se liberou para voos
imprevistos e para a possibilidade de uma elevação a partir das cinzas. Mas, se
das cinzas urbanas o vigor de comunidades religiosas atuantes pode reerguer-se,
qual uma Fênix, porque não sonhar que possa, ali mesmo, devolver toda uma nova
energia (um voo imprevisto a partir das cinzas do que já não conta nada) para
comprometer mais pessoas com a justiça, com a promoção da vida e, com um rosto
mais feminino, engrandecer a vida ao invés de exauri-la?
Se o fenômeno da cidade produz homens e
mulheres, que do ponto de vista religioso se apresentam como “light”, bem
informados e com opiniões pragmáticas sobre tudo, mas muito pouco formados na
dimensão humanista e humanitária, por isto, superficiais, voláteis e
permissivos, a imagem da Fênix pode nos indicar que o seu cotidiano, um dia,
pode ser muito mais edificante, especialmente, para que este cotidiano não se
restrinja à solidão, ao vazio e à ansiedade. A volta de valores esquecidos, que
se encontram nas cinzas da cidade, poderá dar a surpresa de um voo inesperado
para a experiência religiosa.
Para retomar: O que pode significar para nós a comparação da
Religião ou da Teologia com a Fênix em relação à Águia?
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